Com hospitais lotados, cearenses têm dificuldade de acesso a leitos de UTI mesmo sob ordem judicial
Rede de assistência esgotada não dá conta de atender a liminares da Justiça determinando disponibilização de vagas, e pedidos já se acumulam entre pacientes de Fortaleza
O colapso do sistema público de saúde já é realidade, de novo, em Fortaleza. Pedidos de transferências de pacientes com quadros graves de Covid-19 a leitos hospitalares de UTI ou enfermaria se acumulam sem respostas, mesmo quando vêm em forma de decisão da Justiça do Ceará.
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A ocupação de leitos de UTI para adultos chega, na manhã desta quinta-feira (4), a 92,7%; das vagas infantis, 61,2% estão ocupadas; e das neonatais, 80,7%. Já as enfermarias para adultos têm 75% da capacidade já esgotada, taxa igual à de leitos infantis ocupados.
Esperando desde domingo (28) e com a liminar judicial na mão desde a última terça-feira (2), a dona de casa Meire Rose da Silva, 38, amargava, até a manhã de hoje (4), uma espera indefinida por transferir o pai de uma Unidade de Pronto Atendimento (UPA) a um leito de UTI.
José Adeodato Alves da Silva, 73, chegou à UPA com virose e suspeita de AVC – até que contraiu Covid e teve o quadro agravado. “Ele tava fazendo tratamento pra pneumonia em casa, mas piorou, começou a sentir falta de ar. Levamos pra UPA e já ficou internado. Está entubado, só nas mãos de Deus, porque o médico e a juíza já pediram transferência de extrema urgência, porque meu pai tem risco de morrer”, lamenta.
A decisão judicial, obtida por Meire através da Defensoria Pública do Estado, sequer estabeleceu prazo para a Secretaria da Saúde do Ceará (Sesa) transferir o paciente: o processo deveria ser imediato, diante do “altíssimo risco de morte”, como cita o documento.
“Sei que não tem leitos, tá muito difícil pra todo mundo. Mas todo dia a gente vai lá e o médico pergunta se estão agilizando a transferência do meu pai, que tem que fazer o quanto antes, senão ele vai morrer. Estamos fazendo tudo o que pode e até o que não pode. Eu tô desesperada”, desabafa a dona de casa.
Após nossa entrevista com Meire, na manhã de hoje (4), a filha de Adeodato nos informou de que ele havia acabado de conseguir uma vaga no Hospital Leonardo Da Vinci (HLV), para onde foi transferido, depois de cinco dias aguardando.
‘Estão matando meu marido’
Situação semelhante, mas que ainda não teve o desfecho positivo, é vivenciada por Maria Josely Silva, 32, que aguarda um leito de UTI para o esposo há quase uma semana. Francisco Airton de Albuquerque, 45, foi acolhido no Hospital Municipal de Pacatuba sábado (27), e desde então espera por vaga em uma unidade mais complexa.
A situação de Airton iniciou com febre e mal estar, sintomas que o fizeram buscar atendimento em um posto de saúde do município. Após o médico verificar que a oxigenação estava em nível muito abaixo do ideal, encaminhou o vigilante a uma UPA da cidade, de onde foi transferido ao hospital – mas a unidade não comporta casos graves como o dele.
“Meu marido só piora. O médico chegou a me ligar dizendo que ele está muito mal, que o próximo passo é entubar, porque a saturação dele tá muito baixa. Já não sei mais o que fazer, estão matando o meu marido”, debafa Josely.
‘Muita gente vai partir’
Para a gestora ambiental Massilia Albano, 37, a espera teve o pior desfecho possível: com pedido por leito de Covid também concedido pela Justiça, o esposo dela, Francisco das Chagas Albano, morreu aos 60 anos, na quinta-feira passada (25).
Ao ser diagnosticado com coronavírus por meio de um teste rápido e tendo sintomas como falta de ar, o idoso peregrinou por postos de saúde e UPAs em busca de atendimento, e chegou a tomar antialérgico sob orientação médica. Por fim, foi internado na UPA de Messejana, em Fortaleza, no domingo (28).
“Foi a última vez que vi ele na vida. Ele se internou, ficou no oxigênio, teve um AVC e entubaram ele. Cinco dias depois, surgiu leito no Hospital Geral (HGF), e ele foi transferido. Mas não chegou nem a se internar, não resistiu. Morreu na madrugada”, relembra Massilia.
Albano deixou, além da esposa, com quem vivia desde 2009, uma filha de 7 anos. “É muito dolorido ficar falando de ‘se’. Já que ele chegou com o resultado (do exame de Covid) na mão e falta de ar, se tivessem transferido ele pra um hospital especializado a chance seria maior. Ficou na UPA de domingo a quinta-feira. A situação de Fortaleza eu vi de perto: tá em colapso. Muita gente vai partir.”
O que diz o poder público
Em nota, a Secretaria da Saúde do Ceará (Sesa) informou apenas que “a Regulação Estadual recebe e acata ordens judiciais para liberação de leitos UTI”, e que as vagas “são liberadas seguindo ordem de prioridades definidas por critérios médicos”.
Já a Secretaria de Saúde de Fortaleza (SMS) explicou que "a transferência dos pacientes de uma unidade básica para um leito de UTI depende do seu quadro clínico, assim como sua estabilidade para o translado".
Além disso, "os pacientes com indicação para internação em UTI são regulados através da Central de Regulação de Leitos do Município para hospitais de alta complexidade que são referência para o atendimento de pacientes com casos mais graves da Covid-19".