Como a maternidade social transforma vidas de filhos não biológicos na periferia de Fortaleza
Para este dia das mães, o Diário do Nordeste conta a história de três mulheres, que unem maternidade e luta em um só propósito: plantar sementes de mudanças dentro das periferias
Na periferia, a maternidade é uma batalha diária. As mulheres enfrentam o descaso, a falta de apoio e a desigualdade. Mas elas não se deixam abater, sabem que têm o poder da transformação. E usam todos os aprendizados da maternidade, para lutar por um futuro mais justo e igualitário.
Lutam como Chiquinha Gonzaga, que quebrou tabus e abriu caminhos, e nos ensinou que a arte é resistência, e que a luta é sempre uma forma de carinho. Lutam como Nise da Silveira, que acreditou no poder da arte e da terapia, e transformou o mundo dos hospitais, oferecendo um tratamento mais digno e mais humano. Lutam como Marielle Franco, que com sua voz forte e corajosa, lutou pelos direitos das mulheres negras, e pela igualdade social tão desejada e tão necessária.
Essas mulheres são exemplos de luta e de resistência, e inspira a seguir em frente, enfrentando as dificuldades e as injustiças, com a coragem que só a maternidade dá. Elas ensinam que a transformação é uma jornada constante.
E que é possível construir um mundo mais digno, onde a maternidade seja um direito garantido e respeitado. Assim como elas, existem outras milhares de mulheres nas periferias do Ceará, que conseguem transcender as questões particulares e desafios que toda maternidade impõe.
Para este domingo, 14, dia das mães, o Diário do Nordeste conta a história de três mulheres, que unem maternidade e luta em um só propósito: plantar sementes de mudanças.
Com amor incondicional e força de vontade, Katiana, Rebeca e Aila transpõem laços consanguíneos e desafios nas jornadas dentro da periferia de Fortaleza.
Mãe artista
Katiana Pena, 40, garante que a maternidade vai para além do status: é uma missão. “Não existe um perfil de mãe. Existe a mãe, da maneira que ela pode ser e pelo que pode oferecer”.
A bailarina carrega consigo uma generosidade que perpassa gerações. Foi encontrada pela arte, tornou-se artista para ser agente de mudança e, através dela, é mãe de mais de mil crianças na região do Grande Bom Jardim, periferia de Fortaleza.
Katiana começou como contorcionista do Circo Escola do bairro, aos cinco, mas foi a dança que a deixou encantada, anos depois, quando foi descoberta pela Escola de Dança e Integração Social para Criança e Adolescente (Edisca). Animada pelo sucesso, tendo se apresentado em palcos do País e do mundo, tentou convencer outras ‘Katianas’ a seguirem o seu exemplo.
Todo dia acompanha as atividades realizadas no instituto que leva o seu nome. Um espaço construído na sala de casa, que era para ser apenas um estúdio. Ali, ao qual tem como espécie de doação e opção de vida, Katiana é professora, é mãe. O local oferece dança, música, futebol, lutas marciais, alimentação e reforço escolar.
Katiana herdou da mãe o prazer de compartilhar. O primeiro cachê que recebeu entregou para ela. E até hoje faz isso. A bailarina é do coletivo. Nunca quis que a instituição fosse um universo restrito apenas aos alunos e, por isso, estendeu-se a toda comunidade. A maioria do público encontra-se em estado de vulnerabilidade social extrema, o que demanda atenção e qualidade no atendimento. Para isso, não mede esforços. Foi assim que conseguiu os primeiros parceiros, seja para alimentação, seja para o acompanhamento psicossocial, seja para atenção à saúde. Virou a referência no Bom Jardim.
O envolvimento com a comunidade mostrou a Katiana o quanto o espaço é imprescindível para a integridade física das crianças. Por isso, as portas do instituto estão sempre abertas, funcionando nos três turnos, matando a fome e garantindo segurança.
A mulher não quer que os padrões dados ao povo periférico se repitam. Ali marcou o início de uma nova fase no bairro. Ensinar que os pobres podem realizar os sonhos é o que motiva a querer continuar. Já cansou de perder os seus para a violência.
Mãe de fé
A fé e a religiosidade foram importantes para o trabalho de Maria Aila Uchôa de Sousa, 54, a ‘tia Aila’, no Conjunto Ceará. Desde cedo, tinha em si um compromisso com outras crianças, muito por conta da infância que não teve. Nem tinha cinco anos quando teve paralisia infantil e, por uma década, ficou internada numa das alas do Hospital Geral de Fortaleza (HGF), na busca pela cura.
A capela de São Francisco deu força para que esse sonho se realizasse. Por falta de uma cadeira de rodas para se deslocar até o templo, Aila começou a dar aulas de catecismo na sala de casa. Muitos vinham por causa do lanche que era servido durante os intervalos.
A demanda aumentou, o que estimulou Aila a ampliar o projeto. De um terreno cheio de entulho, transformou em um instituto. Usando a influência no bairro, buscou apoio externo e se envolveu pessoalmente na construção do espaço, mobilizando amigos e familiares numa espécie de mutirão. Pronto em um ano, fez a divulgação pelas ruas do bairro. Virou patrimônio da região e, hoje, atende cerca de 130 crianças.
Aila salienta que, além das atividades realizadas e da alimentação, é importante a promoção da saúde mental dos que chegam ao instituto. O contato diário coloca a mulher defronte aos comportamentos, dificuldades e sentimentos das crianças. “Eu sinto quando estão com fome, quando estão com dores, quando estão com problemas em casa”, frisa.
Apesar das limitações físicas, Aila conta que nunca perdeu o ânimo para conseguir realizar o trabalho. Na maioria das vezes, esquece de si por conta desse amor que, para ela, não tem explicação. “É um amor que não tem palavras. Hoje eu vivo para eles. São filhos que foram gerados do meu coração. É um amor tão grande, que eu esqueço de mim. Não tenho limitação, essa cadeira só falta voar para pegar essas crias e trazer para perto de mim”, se emociona.
Mãe de luta
A umidade e o calor não são os problemas mais graves enfrentados pela líder comunitária Rebeca da Silva, 32, na Associação da Rosalina, no Parque Dois Irmãos. O equipamento é o desafogo dentro da comunidade.
O trabalho de Rebeca seria muito menos complicado se o número de doações fosse maior. No dia anterior à entrevista ao Diário do Nordeste, faltou comida. Ela precisou desmarcar as atividades. Chora.
Se fome e violência estão presentes na região, falta o básico para uma vida com dignidade. O posto de saúde não suporta a demanda do território, por carência de profissionais. Durante a pandemia, a associação virou, também, um equipamento de saúde. Lá, foram realizadas campanhas de vacinação. As paredes ainda estampam os cartazes.
Rebeca é encarregada de cobrar e se intitula ‘briguenta’ por isso. Não tem medo das consequências e é respeitada pela firmeza como trata as questões sociais.
A líder comunitária luta por uma vida melhor para todos e, as crianças, as mais vulneráveis, são as que mais se envolve. Nada a incomoda mais que a falta de oportunidades, principalmente porque sentiu na pele durante a infância. E sempre deixa a filha Laura, 6, ciente das dificuldades que passou. A pequena é uma das 40 crianças que participam do balé. Outras 30 fazem capoeira, 25 jiu-jítsu e 50 muay thai.
Rebeca sabe que o mundo pode ser melhor e que sua luta será um legado para os que passam por ela. Tem medo de falhar, porque carrega em seus braços, não só Laura e os pequenos da Rosalina, mas também uma causa. “É renúncia, doação, paciência e, acima de tudo, muita luta”, enfatiza.
Na sexta-feira, 12, em evento realizado no ginásio Aécio de Borba, Rebeca foi empossada como agente de cidadania e controle social (ACCS), representando a Rosalina junto à prefeitura na função de mobilizar e participar das decisões acerca dos trabalhos que serão realizados no território.
Ela foi eleita após votação, em urna eletrônica, realizada entre os dias 13 e 28 de março deste ano. Ao todo, 37.069 pessoas participaram do pleito que ocorreu em 54 locais de votação distribuídos nas 12 regionais de Fortaleza.