Gestão do Sistema Penitenciário no Ceará 'se pauta pela proteção à prática de torturas', diz juiz

A Secretaria da Administração Penitenciária respondeu que 'considera as acusações infundadas e repudia a tentativa de ataque coordenado contra as políticas de ressocialização em larga escala da população privada de liberdade do Ceará'

Escrito por Messias Borges , messias.borges@svm.com.br
Uma das práticas de tortura denunciada pelos detentos é chamada de 'taturana', que consiste em ficar de cabeça para baixo, apoiado com a cabeça no chão
Legenda: Uma das práticas de tortura denunciada pelos detentos é chamada de 'taturana', que consiste em ficar de cabeça para baixo, apoiado com a cabeça no chão
Foto: Reprodução/ Relatório da Defensoria Pública

Um magistrado, integrante do Grupo de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário e de Execução de Medidas Socioeducativas (GMF), do Tribunal de Justiça do Ceará (TJCE), fez críticas à gestão do Sistema Penitenciário Estadual durante uma audiência pública na Assembleia Legislativa do Ceará (Alece), na última segunda-feira (2).

O juiz de Direito Raynes Viana de Vasconcelos afirmou que, devido a episódios ocorridos nos presídios cearenses desde 2019, "não se pode mais circunscrever os episódios de tortura constatados ou investigados no sistema prisional a meras condutas isoladas de agentes públicos dissonantes do cumprimento de suas obrigações".

Não. Todo o panorama observado faz parte de um modelo de gestão, que se pauta pela proteção – senão pelo estímulo – à prática de maus tratos e torturas em face dos presos a ele submetidos."
Raynes Viana de Vasconcelos
Juiz de Direito

A Secretaria da Administração Penitenciária e Ressocialização do Ceará (SAP) respondeu, em nota, que "considera as acusações infundadas e repudia a tentativa de ataque coordenado contra as políticas de ressocialização em larga escala da população privada de liberdade do Ceará, bem como a forte valorização que a polícia penal cearense tem recebido do Governo do Estado nos últimos anos".

No seu discurso, o juiz Raynes de Vasconcelos citou relatórios elaborados pelo Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCP), em abril de 2019, e pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), em novembro de 2021 - após vistorias a presídios cearenses - que apontaram indícios de práticas de maus tratos e tortura, entre outras irregularidades.

"É interessante notar a profunda coesão entre as conclusões exaradas no relatório do Mecanismo Nacional e no relatório do Conselho Nacional de Justiça – inspeções realizadas com intervalo superior a 2 anos. E algumas perguntas deles exsurgem: depois das consignações firmadas por esses dois órgãos de forma contuNdente, a) algo mudou no sistema prisional cearense quanto a esses pontos?; b) foram instauradas investigações pelos órgãos de controle competentes?; c) alguém foi destituído de algum cargo de confiança em razão das conclusões desses relatórios ou de investigações que deles tenham advindo?; d) foi implementado algum mecanismo de controle eficaz no Estado do Ceará?; e) alguém pode alegar desconhecimento sobre o quadro conjuntural do nosso sistema prisional?", questionou.

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O juiz exemplificou com um caso de denúncia de tortura, ocorrida na Unidade Prisional Itaitinga IV (antiga CPPL IV), em junho deste ano, que resultou no afastamento por 90 dias do corpo diretivo da Unidade: diretor, diretor adjunto, chefe de segurança e disciplina e gerente administrativo, assim como de outro policial penal. Entretanto, o diretor já voltou às atividades, o que gerou revoltas no Sistema Penitenciário.

"Por todos esses fatos é que cabe dizer que o estado de coisas a que se assiste no sistema prisional do Estado do Ceará não é mero acidente, mas faz parte de um método de gestão, de uma escolha realizada pelas autoridades que detêm concretamente os poderes discricionário de alterar a trilha adotada. Trilha esta que, é bom que se diga, vulnera o Estado Brasileiro perante organismos internacional de proteção e garantia de direitos humanos, visto os compromissos assumidos na seara alienígena", concluiu o magistrado.

O discurso foi aplaudido pelos participantes da audiência pública, entre eles representantes da Assembleia Legislativa, do Ministério Público do Ceará (MPCE), da Ordem dos Advogados do Brasil - Secção Ceará (OAB-CE), da Pastoral Carcerária e do Sindicato dos Policiais Penais e Servidores do Sistema Penitenciário do Ceará (Sindppen-CE), além de familiares de presos.

O que diz a SAP?

Em resposta às críticas feitas pelo juiz, a Secretaria da Administração Penitenciária e Ressocialização do Ceará disse, em nota, que "considera as acusações infundadas e repudia a tentativa de ataque coordenado contra as políticas de ressocialização em larga escala da população privada de liberdade do Ceará, bem como a forte valorização que a polícia penal cearense tem recebido do Governo do Estado nos últimos anos".

"A SAP reafirma seu compromisso prático de valorização da pessoa humana em números transparentes e incontestáveis e informa que recebe visitas regulares de instituições fiscalizadoras, como Poder Judiciário, Ministério Público, Defensoria Pública, além de entidades de controle social. Além das instituições fiscalizadoras, a Pasta mantém uma Ouvidoria própria, com reconhecimento nacional, é vinculado a Ouvidoria do Governo do Estado do Ceará para qualquer tipo de reclamação e colabora de maneira célere e transparente junto à Controladoria Geral de Disciplina dos Órgãos de Segurança Pública (CGD)", garantiu.

A SAP afirma que "o sistema prisional do Ceará virou um modelo de referência nacional em vários aspectos, com destaque para a ressocialização e a segurança física e emocional da sua população privada de liberdade. Entre os anos de 2009 até dezembro de 2018, os presídios cearenses tiveram 210 presos assassinados. Desde que a SAP foi criada, em 2019, esse número caiu para 2 vidas perdidas de forma violenta, justamente nos primeiros meses de criação da Pasta quando houve reação do crime perante a reorganização do sistema penitenciário cearense e assim permanece até hoje, prática concreta de respeito as Regras de Mandela".

A Pasta destaca ainda que "os telefones celulares foram todos retirados das unidades prisionais" e considera "que as organizações criminosas perderam qualquer capacidade de poder no sistema prisional cearense".

"A lógica do crime e sua rotina de assassinatos, estupros, extorsões e tráfico de drogas nas unidades prisionais foi substituída por um cotidiano de pessoas privadas de liberdade com fardamento do Senai em diversos cursos de capacitação, capacete de construção civil por conta do trabalho digno, além de livros, cadernos e canetas pelos milhares de presos em salas de aula e com seus diplomas de aprovação em diferentes exames nacionais como Encceja e Enem PPL."

Números de ações de ressocialização foram listados pela Secretaria da Administração Penitenciária. Confira:

  • Nos últimos 4 anos, em parceria com o Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (Senai), foram capacitadas mais de 21 mil pessoas de liberdade em diversos cursos de capacitação nas áreas de construção civil, mecânica industrial, tecnologia entre outros.
  • Na educação, são mais de 8 mil pessoas privadas de liberdade em cursos regulares de alfabetização, ensino fundamental e médio.
  • Uma parceria com a Secretaria de Educação do Estado do Ceará (Seduc) gerou resultados concretos como a aprovação de quase 6 mil internos e internas no último Exame Nacional para Certificação de Competências de Jovens e Adultos (Encceja) e a inserção da metade da população carcerária do Ceará no projeto Livro Aberto, que provoca remição de pena de 4 dias para cada livro lido e avaliado em resenha pela Seduc.
  • Conforme a SAP, a segurança e tranquilidade do atual sistema prisional cearense também estimulou a entrada de 9 indústrias de grande porte de unidades prisionais, nos segmentos de confecção, gráfica, alimentação e bebidas, que gera ocupação, qualificação, remição de pena e renda para os internos e seus familiares fora dos muros.
  • A Pasta destacou ainda que realizou, nos últimos quatro anos, em parceria com a Defensoria Pública do Estado do Ceará, mais de 158 mil revisões processuais entre os internos do sistema penitenciário do Ceará. Esse trabalho contribuiu na redução de 30 para 20 mil pessoas privadas de liberdade - a maior redução do Brasil.
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