“Brincantes da Jandaiguaba” comemora seu primeiro ano
Gandhy Piorski
especial para o Regional
Estive caminhando pelas ruas estreitas da pequena Jandaiguaba, em Capuan, Caucaia, num dia chuvoso e sentindo o cheiro dos jasmins, citronelas e rosas-meninas que habitam os terreiros da gente com traços fortes de povos índios, ditos Tapeba. Quem se permite abstrair numa tarde chuviscada de sábado encontra caminhos agradáveis naquele povoado, encontra olhares antigos, com ar de ancestralidade, gestos nobres como os de um arqueiro na caça, vistos hoje nos meninos com suas espingardas de estilingue e suas setas de talo. Encontra palavra boa e tradição oral disfarçada de simples conversa, café quentinho e canjica. Encontra também sementes das mais variadas e seus poderes medicinais, afrodisíacos, enfeitiçantes e protetores.
Assim como é bem possível caminhar pelas ruas da pobre Jandaiguaba com o olhar de sempre. Ver ruas enlameadas de barro e chuva, botequins e seu magnetismo perverso regido pela cachaça, gente sem trabalho, abandono escolar, necessidades muitas. Mas esse é o olhar de sempre, velho e cansado, desprovido de poesia, onde a existência é delineada por princípios do ter.
Entretanto, continuemos nas ruas da rica Jandaiguaba, distrito quase esquecido de Caucaia, em que os meninos e meninas se divertem com as brincadeiras dos dias de chuva. Chuva aqui é objeto lúdico dos mais fluídicos, liso, deslizante, risível o tempo todo. Jandaiguaba de mulheres vividas, maduras não apenas pela idade, mas por algo mais que antes já havia no olhar. Como é Dona Isabel, com seu coração amigo, com sua casa grande, do quintal de todos. Quintal da missa, do futebol, dos artesanatos e dos festejos. Neste quintal já vi Dona Isabel marejar os olhos buscando na memória histórias de seu amor índio de outrora.
Não posso mais deixar de ver Jandaiguaba sem a poesia que saltou-me aos olhos quando mestre Zé Pio, do Boi Ceará, apeou com sua tropa brincante. Foi ele brincar naquela noite especial na casa de Dona Isabel. Com o sentido mais puro da brincadeira popular: honrar o amigo Potengi Guedes pelo seu mais novo filho que um ano festejava. Não bem um filho, mas uma cria. De nome Brincantes da Jandaiguaba a tal cria é um singelo projeto com vigor da arte popular transmitida por quem desta fonte faz parte.
Mestre Zé Pio, assim que chegou a mim, anunciou de maneira discreta, o boi que trazia como estrela principal, somente se apresentava em dias especiais, em viagens mais distantes. Revelando ali sua consideração ao amigo Potengi e seu projeto. Demonstrando também sua sensibilidade de mestre na transmissão do conhecimento tradicional, pois aquele boi especial, bem acabado, com cabeça de touro preto e ar misterioso era uma aula do mestre aos jovens do projeto aniversariante. E que aula especial! Tantas crianças e velhos reunidos naquele sábado de aleluia em torno de uma pequena quadra a céu aberto. Depois de uma chuvarada que fez o povo correr, o tempo abriu. Todos voltaram e Zé Pio começou uma louvação à Maria Santíssima e a seu filho crucificado. Com sua presença altiva de Capitão do Boi ordenou que todos, Mateus, Vaqueiro, Índias, Príncipes e Princesas, Calungas e brincantes se curvassem em silêncio e saudação à memória de Mestre Juca do Balaio. Em seguida, ouvimos uma salva de palmas uníssona, ressonando alta e demorada, como se todos ali quisessem alcançar em louvação o balaieiro brincante de maracatu do outro lado do grande rio da vida.
Sob um cinza escuro carregado do céu ainda respingando, tambores, maracás e ganzás calaram os pássaros da noite que por ali farfalhavam. Do brilho dos cetins de cada personagem em movimento reluzia tons diversos nas faces de tantas crianças admiradas com aquela estética do alegrar. Mestre Zé Pio regia sonoros couros e cordas dos amigos que fazem questão de se juntar ao mestre, como os brincantes do Cordão do Caruá. Gente de olhar atento e zeloso por semente como esta da Jandaiguaba que começa a brotar. Estava por lá também a banda Quilombo Soure com seu maracatu do baque virado fazendo um passeio a novos ritmos com a turma de percussionistas dos Brincantes da Jandaiguaba.
Potengi ali, na festa, estava num encontro consigo mesmo. Aquele fruto de um ano é raro, fez o Potengi mirar-se no espelho daquele novo trabalho e querer renovo para si. Quis simbolizar este renovo com a apresentação de sua companhia Mamulengo Estrela do Norte, criada desde 1980, e um ano parada por conta de sua dedicação ao projeto. Projeto este que começou com uma pequena oficina de bonecos e tambores de poucas horas. Os jovens da comunidade abraçaram aquilo com vontade e fizeram o Mestre Potengi se virar pelo avesso na busca de ampliar o trabalho. Com trejeito de passarinho que traz a casa nas asas, o mamulengueiro logo migrou pra Jandaiguaba pousando com sua mala velha de bagagem preciosa. Bagagem de compositor e tradutor do cancioneiro popular, de ator, dançador de coco, reisado e boi-bumbá. Pertence ao rol dos grandes mestres do Mamulengo tradicional brasileiro. Conviveu próximo com Pedro Boca Rica (CE), Antônio do Babau (PB), Solon (PE), Irmãos Relâmpago e Chico Daniel (RN), Garrafinha (RN), Saúba (PE), muitos outros.
Aquela mala velha da qual falava traz este testemunho: um pequeno raro e diversificado acervo de mamulengos presenteados por seus amigos mestres do brinquedo de bonecos. Acervo este coletado desde 1977 em suas reentranças por cidades e povoados do norte, nordeste e sudeste do Brasil, convivendo, construindo espetáculos e brincando em festivais pioneiros do boneco tradicional. Como é o caso do I Festival de Casimiro Coco do Ceará, organizado em 1980 pelo pesquisador e documentarista José Carlos Matos, num pequeno teatro vizinho à Igreja de São Raimundo, no bairro Rodolfo Teófilo. Neste festival estavam presentes diversos bonequeiros, dentre eles, Boca Rica, Joaquim Bonequeiro, Carlos Babau, Raimundo Bonequeiro, Potengi e tantos outros. O próprio Carlos Babau, da Carroça de Mamulengos, morando atualmente em Juazeiro, com o qual Potengi Guedes, desde cedo, realizou uma forja de brincância, traz um perfil virtuoso do artista popular que está presente na trajetória do mamulengueiro. A capacidade de pousar numa comunidade despertando poesia, envolvendo, ensinando, organizando as pessoas em torno do encantamento da brincadeira. Por isso os meninos e meninas de Jandaiguaba não deixaram o bonequeiro passarinho bater asas. Acolheram o mestre para juntos reaprenderem o que muitos de seus antepassados já haviam brincado. E foram eles, somente eles, com sua simplicidade que creditaram o devido valor àquele trabalho.
Por oito meses construindo precariamente um espetáculo músico-teatral, de qualidade indiscutível. Uma artesania comunitária que envolveu os jovens, seus familiares e amigos. Instrumentos musicais, figurino e personagens, confeccionados numa experimentação artesanal, musical e teatral que uniu o grupo em torno da pesquisa folclórica. Formou-se o espetáculo Boi-bumbá Tambores e outras Loas com elementos e personagens do auto do boi, reisados tradicionais nordestinos e cancioneiro popular. Com limitados recursos, porém com empenho e rigor num fazer substancial da brincadeira popular, o espetáculo, hoje com cinqüenta jovens envolvidos, vem crescendo e sendo valorizado. Instituições como o Sesc começam a perceber o rico potencial de uma comunidade que, em pouco tempo, se apropria de maneira valorosa desta arte que, antes de tudo, traz a consciência do valor incalculável de nossa memória coletiva. Desta arte que tem a força de despertar para o meio mais profundo da participação comunitária, o conhecimento de nossa alma, de nossos tesouros imateriais.
Assim, o que Potengi Guedes propõe com e para os seus Brincantes de Jandaiguaba é um sonho muito maior, o de ver o fazer artístico como ato contínuo de construção própria, de crescimento e expressão ampla do ser. Trazer do encantamento próprio da brincadeira popular, a capacidade de encantar-se com o novo, de abrir caminhos próprios e ser partícipe da vida, como quem faz e contribui para a melhoria do viver.