Centenário de Paulo Freire: por que o educador é alvo de ataques do governo Bolsonaro?
Na última quinta-feira (16), o presidente foi proibido de atentar contra a “dignidade” do intelectual; ataques são parte do governo desde o início
O dia 19 de setembro de 2021 marca o centenário do educador Paulo Freire, Patrono da Educação Brasileira, mas a data, celebrada em todo o País, não ganhou a mesma atenção do governo do presidente Jair Bolsonaro (sem partido). Não foi divulgada nem pelo Palácio do Planalto nem pelo Ministério da Educação nenhuma homenagem ou comemoração.
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Pelo contrário: apenas três dias antes, na quinta-feira (16), a Justiça Federal do Rio de Janeiro expediu liminar para que a União "se abstenha de praticar qualquer ato institucional atentatório à dignidade do Professor Paulo Freire na condição de Patrono da Educação Brasileira".
A ação foi movida pelo Movimento Nacional de Direitos Humanos, que argumentou que há "movimentos desqualificadores" por parte de "agentes do Governo Federal".
Diante de um histórico de investidas contra o intelectual, analistas políticos apontam que este embate em torno do nome de Paulo Freire - incentivado por setores conservadores da classe política - envolve uma disputa de visão de mundos e tem poder de mobilização da parcela da população mais alinhada a estes ideais - inclusive, com repercussões eleitorais.
Contra a “ideologia” de Paulo Freire
Um dos intelectuais mais citados do mundo, Freire é alvo constante de ataques de Bolsonaro. Desde a campanha eleitoral de 2018, o então candidato fazia alusão ao educador pernambucano.
À época, Bolsonaro afirmou que, se eleito, iria "entrar com um lança-chamas no MEC e tirar o Paulo Freire lá de dentro". O plano de governo do agora presidente tinha como proposta "expurgar a ideologia de Paulo Freire" da Educação brasileira.
Após assumir a Presidência, Bolsonaro voltou a atacar o Patrono da Educação Brasileira. Em 2019, durante entrevista, chamou o educador de "energúmeno". O presidente chegou a culpar a "filosofia Paulo Freire" pelos baixos índices da educação no País.
Bolsonaro, no entanto, não foi o único a criticar Paulo Freire, que faleceu em 1996. Aliados do presidente, como Olavo de Carvalho, e ex-ministros do seu governo também fizeram constantes críticas a ele.
Ataques vindos do MEC
O então ministro da Educação, Abraaham Weintraub, por exemplo, usou das redes sociais por mais de uma vez para atacar o educador. Em agosto de 2019, ele divulgou um mural feito em homenagem a Paulo Freire e provocou: “É ou não é feio de doer?”.
Na mesma sequência de publicações, ele divulgou entrevista criticando Freire. "Pena que perdemos tempo nesse fetiche da esquerda: Paulo Freire", acrescentou.
Em março de 2020, também pelo Twitter, ele citou o intelectual ao falar de informação falsa sobre suposto "kit gay". "Paulo Freire e kit gay não têm vez no MEC do presidente Jair Bolsonaro", disse Weintraub.
Pesquisadora do Laboratório de Estudos sobre Política, Eleições e Mídia (Lepem) da Universidade Federal do Ceará (UFC), a socióloga Paula Vieira explica que o embate em torno do nome e da obra de Paulo Freire é "uma disputa de visão de mundo".
"É uma disputa de ideias, no que diz respeito à Educação - que não é apenas escolar, mas está em todas as dimensões da sociedade. E o conservador, para manter seu espaço na sociedade, precisa disputar".
A figura de Paulo Freire tornou-se, então, "simbólica" de como construir políticas públicas mais inclusivas - e frequentemente associada à esquerda ou vinculada a um suposto "comunismo", completa Vieira.
A busca por uma Educação mais inclusiva também entra em choque com valores defendidos por setores conservadores, aponta a pesquisadora. "Grupos mais conservadores tendem ainda a buscar uma referência individualizada - eles buscam heróis ou culpados", acrescenta ela.
Educação como “trincheira”
As críticas a Paulo Freire não começaram, entretanto, no governo Bolsonaro. Há mais de uma década, Olavo de Carvalho - responsável por indicar nomes para o governo Bolsonaro e referência para os filhos do presidente e aliados - já criticava a obra e atuação do educador.
Em vídeo de 2012, ele chamou Paulo Freire de "ilustre desconhecido" e disse que as teorias dele não eram aplicadas em "parte alguma" do mundo. Três anos depois, Carvalho disse que a política educacional desenvolvida por Freire não produzia profissionais competentes.
"Limitando-se a transformar milhares de coitadinhos em igual número de coitadinhos, é o patrono de uma educação nacional que produz analfabetos funcionais em massa", disse na época.
Professor de Teoria Política na Universidade Estadual do Ceará (Uece), o cientista político Emanuel Freitas lembra que outra iniciativa anterior à eleição de Bolsonaro que criticava Freire era o movimento "Escola Sem Partido" - ainda defendido por setores conservadores.
"Nós passamos por quase duas décadas da gestão PT e a escola se tornou a trincheira desses setores. O Paulo Freire serviu como símbolo do que eles consideram ser uma doutrinação nas escolas", aponta o cientista político.
Uso eleitoral dos ataques
A narrativa de ter um "inimigo a combater" é importante na estratégia do presidente Bolsonaro, argumenta Freitas. Neste caso, o combate às ideias de Paulo Freire - já que as teorias do educador influenciam intelectuais de várias áreas.
"É um discurso que é muito útil em momentos eleitorais, porque espalha a ideia de um perigo iminente, de um fantasma, e gera um pânico moral".
Sem nenhum ataque recente do presidente, o cientista político aponta que nada impede que novas ofensivas, além de outras narrativas ideológicas, surjam em períodos eleitorais, como o de 2022.
"Bolsonaro sabe mobilizar o discurso de um sistema que leva tempo a ser destruído, que está 'ideologizado' por dentro e que não se destrói do dia para a noite. Seria preciso a permanência no poder por mais tempo, a eleição de mais conservadores", exemplifica o professor.