Igreja e academia são essenciais na pandemia? Especialistas debatem influência política de decisões

Médicos ouvidos pelo Diário do Nordeste alertam para o risco de aumento do número de casos da Covid-19 em um momento onde o Estado beira o limite da capacidade de atendimento

Escrito por Igor Cavalcante , igor.cavalcante@svm.com.br
Durante o primeiro lockdown no Ceará houve forte pressão para que o funcionamento de templos religiosos fosse considerado como serviço essencial
Legenda: Durante o primeiro lockdown no Ceará houve forte pressão para que o funcionamento de templos religiosos fosse considerado como serviço essencial
Foto: Helene Santos

A lei que inclui templos religiosos e academias no rol de atividades essenciais da Capital, sancionada na quinta-feira (11) pelo prefeito de Fortaleza, José Sarto (PDT), virou alvo de crítica de profissionais da saúde. Em tese, a medida permitirá que esses estabelecimentos funcionem mesmo durante o lockdown. No entanto, a mudança ainda não foi regulamentada

O caso é semelhante em outros municípios que apoiaram iniciativas semelhantes, como Juazeiro do Norte, em favor de atividades religiosas e físicas; e Caucaia, que incluiu as academias entre as exceções de funcionamento. 

Para médicos ouvidos pelo Diário do Nordeste, a prática de atividades físicas e a participação em atos religiosos são fundamentais para a manutenção da saúde mental. No entanto, eles ponderam que ambas as atividades poderiam ser realizadas em casa, sem prejuízos.

Profissionais da saúde também alertam para o risco de aumento do número de casos da Covid-19 em um momento no qual o Estado beira o limite da capacidade de atendimento. 

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Confira a opinião de médicos ouvidos pela reportagem: 

Charles Jean

Cirurgião plástico, professor de Medicina da Universidade Estadual do Ceará. Atuando nas UTIs Covid do Hospital da Unimed. Integrante do Coletivo Rebento/Médicos em Defesa da Vida, da Ciência e do SUS.

1) Em alguns municípios cearenses, já foram sancionadas leis que tornam academias e igrejas atividades essenciais. Do ponto de vista técnico na saúde pública, o senhor considera que essas são atividades essenciais?

Apesar de fundamentais, essas atividades em templos religiosos e academias não se enquadram em atividades essenciais. Temos que cuidar do corpo e do espírito, mas se pode cuidar em casa.

2) O Ceará enfrenta hoje um dos piores momentos da pandemia, com ocupação de leitos de UTI ultrapassando 90%. Para o senhor(a), uma possível abertura de igrejas e academias, mesmo com regras estabelecidas, pode contribuir para o agravamento dessa situação?

Uma possível abertura de igrejas e academias, neste momento crucial da pandemia, é um desserviço à população.

3) O senhor considera prejudicial à saúde pública o fato de essas decisões serem tomadas no âmbito político e não sanitário?

Quem deve decidir o que fazer com a saúde pública são as autoridades sanitárias, baseadas em critérios científicos, para não prejudicar a população.

academia
Legenda: A liberação de atividades físicas tem impacto principalmente para a rotina de academias
Foto: Halisson Ferreira

Guilherme Henn

Médico infectologista e presidente da Sociedade Cearense de Infectologia (SCI).

1) Em alguns municípios cearenses, já foram sancionadas leis que tornam academias e igrejas atividades essenciais. Do ponto de vista técnico na saúde pública, o senhor considera que essas são atividades essenciais?

Discordo dessa classificação (de que são essenciais). Elas são importantíssimas nesse momento para manter a saúde mental das pessoas, mas existem alternativas para serem praticadas sem que as pessoas precisem estar em posição de contaminar outras pessoas ou de serem contaminadas.

2) O Ceará enfrenta hoje um dos piores momentos da pandemia, com ocupação de leitos de UTI ultrapassando 90%. Para o senhor(a), uma possível abertura de igrejas e academias, mesmo com regras estabelecidas, pode contribuir para o agravamento dessa situação?

Sim, existe um potencial de contribuir. É importante ver que as proibições de outras atividades têm levado a algum benefício do ponto de vista de estabilização do pico de casos e internações, embora seja um momento crítico de disponibilidade de leitos de UTI. Então, esse não é o momento de liberar academia e templos porque existe esse potencial.

3) O senhor(a) considera prejudicial à saúde pública o fato de essas decisões serem tomadas no âmbito político e não sanitário?

Qualquer decisão tomada em uma emergência sanitária como essa deveria ser embasada única e exclusivamente pela ciência. Claro que nessa decisão técnica e científica você tem que colocar outros fatores, como saúde mental e economia. Mas, no meu entendimento, neste momento, seria prudente interromper o máximo de atividades possíveis.

À espera de regulamentação

A previsão da Prefeitura de Fortaleza é de que em até três semanas as regras para o funcionamento desses locais sejam definidas. “(...) Trabalharemos para regulamentar os textos, obedecendo, claro, ao que preceituam os decretos vigentes e ao que orientam as autoridades sanitárias”, declarou Sarto ao anunciar a lei. Ele acrescentou que o “o momento é grave”, mas que não se deve “expor ao vírus nossa gente tão ávida por conforto espiritual”.

O vereador e pastor Ronaldo Martins (Republicanos), autor do projeto que inclui igrejas, diz que o setor é essencial para acompanhar pessoas em situação de vulnerabilidade "Por conta de pais de família que ficam desempregados, as igrejas arrecadam alimentos. Pessoas viciadas em fase de acompanhamento. Se as igrejas fecharem essas pessoas poderão voltar para a vida do crime”, afirma.

A decisão de Sarto foi repetida em municípios como Juazeiro do Norte e Caucaia. Durante a primeira onda da Covid-19 no Ceará, quando o Governo do Estado decretou lockdown, líderes religiosos criticaram o fechamento das igrejas. Houve forte resistência nas redes sociais e entre parlamentares que têm forte apelo religioso em suas bases.

Nesta segunda onda, os vereadores e deputados se anteciparam, apresentando projetos como o que foi sancionado na Capital. Eles aproveitam a autonomia concedida pelo Supremo Tribunal Federal (STF) que autoriza prefeitos e governadores a decidirem quais serviços devem funcionar. 

No caso da Assembleia, há diversos projetos de lei que tentam ampliar o rol de atividades essenciais. As propostas mais comuns miram justamente os templos religiosos. Contudo, a Procuradoria da Assembleia já deu parecer desfavorável aos projetos. 

Em um dos pareceres emitidos pela Procuradoria, o órgão destaca a necessidade da existência de regras e princípios constitucionais que tutelam o direito à saúde e à vida, assim como a imperiosa obrigação do poder público em aplicar diretrizes e normas destinadas a garantir a redução do risco de doença e de outros agravos. 

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