Disputa na Justiça: a situação das prefeituras do Ceará que estão sendo geridas por vereadores
Oito prefeitos eleitos lidam com questões na Justiça. Enquanto isso, a maioria desses municípios está sendo gerida por políticos que foram eleitos para o Legislativo, mas acabaram herdando o Poder Executivo
Início de ano é, para as administrações municipais, momento de organizar a casa, acomodar metas à realidade orçamentária e começar a colocar em prática os planos de governo. Porém, oito municípios cearenses ainda vivem sob impasse provocado pela eleição de candidatos considerados inelegíveis pela Justiça Eleitoral, seis deles sendo comandados pelos presidentes das Câmaras.
Aos interinos, se apresentam problemas que vão do despreparo para assumir função diferente daquela para a qual foram eleitos, disputas políticas em cenário indefinido e descrédito da população ao não ter o voto validado na prática.
Dos oito municípios, apenas Viçosa do Ceará e Pacajus têm, até então, o resultado das urnas confirmado na Prefeitura. No município da Serra da Ibiapaba, Zé Firmino (MDB) se mantém no poder enquanto tramitam recursos na 2ª instância eleitoral. O TRE-CE já decidiu, neste mês, manter a cassação de seu registro de candidatura, confirmando decisão do juiz eleitoral da 35ª Zona.
Em Pacajus, a chapa vencedora das eleições teve os diplomas cassados já com o mandato em exercício. Na quarta-feira (17), o juiz da 49ª Zona Eleitoral cassou o mandato do prefeito de Pacajus, Bruno Figueiredo (PDT) e de seu vice, Francisco Fagner (DEM), por abuso de poder político durante a campanha.
Em Barreira, Missão Velha, Pedra Branca, Jaguaruana, Martinópole e Caridade, os imbróglios são mais antigos, e os casos já chegaram ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Porém, ainda não há previsão de eleições suplementares, que só poderão serão convocadas após decisão definitiva sobre os registros de candidatura. Enquanto isso, problemas se acumulam.
Sai interino, entra interino
Em Barreira, o comando da Prefeitura aponta para certa instabilidade entre as forças políticas. O município já está no segundo prefeito interino. Mácio Gley, o Chaveirinho (PT), assumiu depois de João Carlos do Sindicato (PSD) renunciar à presidência da Câmara Municipal no último dia 3.
Chaveirinho se elegeu na coligação do ex-prefeito Alailson Saldanha (PT), que não conseguiu a reeleição nas urnas. João Carlos, por sua vez, é do PSD de Dra. Auxiliadora, prefeita eleita, mas não diplomada e empossada por ter tido registro de candidatura indeferido por unanimidade pelo TRE-CE, devido a atos de improbidade praticados quando era secretária da Saúde.
Chaveirinho reconhece ter se aproximado do grupo político de Auxiliadora, mesmo tendo sido o seu partido, o PT, responsável pelo recurso que acabou levando ao indeferimento do registro de candidatura dela, que, mesmo inelegível, saiu das urnas com capital político fortalecido pelo voto. “O ex-prefeito não me deu o vice na Câmara, o outro grupo me confiou o vice na Câmara, aí votei no João Carlos”, disse o prefeito interino.
O prefeito provisório reconhece que tem se aconselhado com gestores próximos, como Júnior Castro (PSD), prefeito de Chorozinho e presidente da Aprece (Associação dos Municípios do Estado do Ceará), e confia na manutenção de boa parte da equipe de João Carlos. “Eu continuei com a equipe dele, justamente para não atrasar o município. Troquei só o tesoureiro e o chefe de gabinete”, afirmou.
Tanto Chaveirinho como João Carlos contestam a análise de que a mudança no início de fevereiro tenha sido fruto de desgaste na disputa por cargos ou acordo entre os parlamentares.
“Era um acordo entre mim, minha esposa e Deus e o meu pastor. Todo mundo sabia que eu ia ficar só para organizar a casa, e, depois de organizada nesses 30 dias, eu ia sair”, afirmou João Carlos, que admitiu dificuldades para exercer as funções.
“Eu peguei uma tarefa que não era a minha, mas mesmo assim eu organizei e entreguei organizado. Agora, em relação a essa questão insustentável, você sabe que o município está sofrendo, lógico, né? Quem ganhou foi a Dra. Auxiliadora. Então, queira ou não queira, qualquer vereador que assuma tem dificuldades, lógico”, reconhece.
Problemas na gestão
Em Martinópole, o prefeito interino também relata dificuldades. Betão Souza (PP), presidente da Câmara, ocupa a cadeira para a qual foi eleito o aliado James Bel (PP), impedido de assumir pela Justiça por abandono de emprego público como professor do município. Betão reclama da herança deixada por Júnior Fontenele (PSD), rival político de James.
“A principal dificuldade é que o município tem muita dívida. A folha de pagamento do mês de dezembro, o prefeito anterior não pagou e deixou para eu pagar, e não deixou dinheiro em conta. Com a Enel, tem uma dívida de 169 mil reais. Da Cagece, mais 19 mil e tanto. Do INSS tem uma conta de quase 500 mil reais”, lamenta.
As limitações orçamentárias se agravam quando se tratam dos recursos relativos à pandemia. “Na conta da Covid, ele deixou 15 mil reais, gastou todo o dinheiro que veio para o coronavírus, que era quase 2 milhões e 700 mil que entraram no município. A maior dificuldade é a saúde, né? Não tenho como arcar com bonificações dos servidores públicos da saúde, porque não tenho recurso”, admite Betão, que aponta "meia dúzia de opositores” tentando tumultuar a gestão, mas se mostra confiante para eventual eleição suplementar.
“A gente já ganhou uma eleição. O povo já mostrou que não quer o ex-prefeito, e a expectativa é de a gente ganhar a eleição de novo”, projeta.
A reportagem entrou em contato com o ex-prefeito de Martinópole Júnior Fontenele e aguarda posicionamento oficial sobre as acusações do atual gestor. No primeiro contato, limitou-se a dizer que "Martinópole passa por um período político muito crítico em que a politicagem e o disse me disse só vem trazendo prejuízos para a população".
Disputas, desgastes e prioridades
A cientista política Monalisa Torres aponta problemas provocados pelo quadro de indefinição, que vão desde a desconfiança popular na administração e no sistema político em geral até disputas de poder que acabam ocorrendo em detrimento de prioridades do município e seus cidadãos.
“Quando você não tem essa figura de referência (o prefeito eleito), os vereadores na Câmara acabam disputando esse lugar e aí você vê essa instabilidade. Um ponto que devemos considerar é que estamos em um momento de pandemia seriíssimo, e os vereadores perdem tempo se dedicam muito mais a essas brigas para fortalecer o seu grupo político e acabam deixando de lado ou não priorizando questões primordiais”, analisa.
O processo de desgaste, segundo Monalisa, se estende ao processo democrático em si.
“Ainda que o candidato concorra de forma irregular, o eleitor foi às urnas, o eleitor fez campanha. Não estou aqui considerando como essas campanhas foram feitas, mas o fato é que foram candidatos vitoriosos que, em determinado momento, depois da vitória, depois de todo o processo eleitoral, a Justiça questiona a validade e anula os votos dessas pessoas.Então, isso gera uma instabilidade política tremenda nesses municípios. Inclusive uma revolta por parte de alguns eleitores, que não veem o seu direito de escolha ser respeitado”, pontua.
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A cientista política também atribui responsabilidade aos partidos pela recorrência da problemática. “Para além da letargia do Judiciário, tem a questão da oferta das candidaturas. Os partidos em si personalizam demais a política e os candidatos, e acabam ofertando esse tipo de candidatura, que pode ser invalidada. No final das contas, é a população que sai prejudicada”, lamenta.
Responsabilidade e soluções
Advogada especialista em Direito Eleitoral, Isabel Mota não vê a situação sob responsabilidade da Justiça Eleitoral, que, segundo ela, acaba pagando por “desarmonias” do sistema político, de forma mais ampla.
“A Justiça Eleitoral faz a análise de quem pode e quem não pode ser candidato. Agora, os fatos que podem gerar a inelegibilidade muitas vezes não são casos eleitorais, como é o caso, por exemplo, dessa questão da rejeição de contas. É um caso que não corre no âmbito eleitoral e que, portanto, a Justiça Eleitoral só faz ver se aquela hipótese em que a pessoa se enquadra está ali na Lei 64/90 (Lei de Inelegibilidade). Se estiver, é inelegível. Se não estiver, não é”, argumenta.
A advogada vê como legítimo o direito a fazer campanha e manter candidatura mesmo sub-judice, mas defende uma mudança, que, segundo ela, poderia amenizar os impasses e fazer com que a Justiça Eleitoral “parecesse menos negligente”: a antecipação das análises de registros.
“Se a gente conseguisse fazer essa fase de análise do registro de candidatura anteriormente à campanha, como um pré-registro, uma fase de habilitação; se a gente adequasse o calendário eleitoral e fizesse isso antes das convenções, antes do período propriamente eleitoral, para quem pretendesse ser candidato futuramente, quando fosse ainda pré-candidato, não ia resolver, mas ia facilitar bastante”, pondera.
Recursos e eleições suplementares
Por meio de uma portaria, o TSE definiu 10 datas ao longo de 2021 nas quais os Tribunais Regionais Eleitorais de todo o País poderão marcar eleições suplementares, tão logo se esgotem os recursos na última instância e a decisão sobre a inelegibilidade seja definitiva. Os dias possíveis são 7 de março, 11 de abril, 2 de maio, 13 de junho, 4 de julho, 1º de agosto, 12 de setembro, 3 de outubro, 7 de novembro e 5 de dezembro.
No Ceará, apenas o município de Caridade já tem decisão do TSE determinando a realização de um novo pleito. Em dezembro, a Corte manteve a inelegibilidade de Simone Tavares (PDT), devido à reprovação de suas contas de gestão como secretária municipal da Saúde pelo extinto Tribunal de Contas dos Municípios (TCM), por ter realizado compras de medicamentos sem licitação e atrasado documentação de prestação de contas ao Tribunal. O caso, porém, traz uma curiosidade: Simone poderá concorrer novamente.
Em 2012, ela conseguiu, junto ao TCE/CE, liminar que suspendia os efeitos do acórdão que rejeitou as contas, decisão essa que foi revogada em setembro de 2015, quando faltavam 5 anos e 5 meses para o término do prazo de inelegibilidade. A restrição, portanto, chega ao fim exatamente neste mês, e Simone estará apta a ter o nome escolhidos nas urnas em qualquer data que seja definida pelo TRE-CE.
Histórico recente
Após as eleições de 2016, o Ceará teve nove eleições suplementares:
- Tianguá
- Umari
- Santana do Cariri
- Frecheirinha
- Croatá
- Aracoiaba
- Cascavel
- Irauçuba
Em Tianguá, onde foram realizados dois pleitos extras, ocorreu caso semelhante ao que pode haver em Caridade. O atual prefeito, Dr. Luiz (PSD), foi eleito em 2016 a apenas dois dias do fim do seu prazo de inelegibilidade, por abuso de poder político e econômico. Ainda assim, acabou cassado.
Voltou ao poder após os vencedores da primeira eleição suplementar daquele período, José Jaydson (PTB) e Mardes de Oliveira (PP), também terem sido afastado por abuso de poder político e econômico em campanha. Dr. Luiz foi eleito em outubro de 2019 na segunda eleição suplementar do período e acabou reeleito no ano passado.