Invisível aos números, população de rua em Fortaleza encara doenças e falta do básico na pandemia
Não existe estatística oficial de pessoas nessa condição, mas busca por serviços assistenciais específicos aumentou na Capital, segundo a prefeitura
Estar isolada pode ser condição recente para a classe média, mas já é vivência comum, com ou sem pandemia, a quem tem as vias públicas como casa. Sem teto, água, álcool nem máscara e com o comércio fechado em Fortaleza, pessoas em situação de rua amargam o pior dos isolamentos: a invisibilidade.
Ao dormir e acordar, a vista de Cleiton Pereira, 39, é a ausência que se espalha no cruzamento entre as vias Alberto Nepomuceno e José Avelino, no Centro. O local, lotado de feirantes inclusive na pandemia, esvaziou com o novo decreto de lockdown na cidade – literalmente isolando Cleiton e o cachorro com quem divide o barraco de papelão, erguido numa calçada.
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“Eu moro na rua desde os 7 anos, aqui no Centro cheguei com 22. Graças a Deus, tô bem, não fiquei doente nem morri de fome, porque doação diminuiu, mas aparece. O que fica complicado mesmo é essa chuva”, relata, por trás de uma máscara que já foi branca, enquanto mostra as mãos completamente engelhadas.
A dificuldade para garantir a higiene, fator crucial para prevenir o coronavírus e diversos outros agentes infecciosos, é uma das mais sintomáticas entre as pessoas em situação de rua. Cleiton, por exemplo, toma banho “nuns cantinhos por baixo do viaduto ou na chuva mesmo”. E nem é todo dia.
Para Júnior* (nome fictício), 27, o asseio com água potável e a lavagem das roupas são feitos “de favor”, com hora marcada: entre 8h e 16h. Esse é o horário de funcionamento da maioria dos galpões de confecção espalhados pela Praia de Iracema, que, atualmente, estão fechados devido ao lockdown na cidade.
“Quando a gente não tem onde tomar banho, quando tá tudo fechado, vai pra praia. Dá um mergulho no mar e volta. Às vezes, pega uma aguazinha em algum canto pra tirar o sal do corpo e pronto”, descreve.
O jovem já completa um ano em situação de rua, desde que teve os vínculos familiares rompidos devido ao vício em drogas. Questionado sobre a incidência de Covid-19 entre os amigos, Júnior afirma que “graças a Deus, de morador de rua próximo, que eu saiba, só gripou, ninguém morreu”.
Sem medidas sanitárias
Em maio do ano passado, a Prefeitura de Fortaleza instalou galpões com estrutura para higiene pessoal básica da população de rua. Hoje, segundo a Secretaria dos Direitos Humanos e Desenvolvimento Social (SDHDS), são três: nos bairros Praia de Iracema, Centro e Parangaba.
Mas além das dificuldades para garantir asseio, há a falta de abrigo, de alimento. De perspectivas. Em dia de chuva, tudo piora. Na tarde da última terça-feira (24), dezenas de homens, mulheres e crianças de diversas faixas etárias se aglomeravam sob as marquises de lojas fechadas, na Praça do Ferreira, no Centro, para se proteger da água. O cenário, antes comum à noite, é exposto, agora, ao nublado do dia.
A socióloga Danyelle Nilin, professora do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal do Ceará (UFC), define a situação dessas pessoas como “terrível, talvez uma das mais complicadas de todas”.
“Todos os protocolos que a OMS estabelece não são possíveis na rua. Não conseguimos sequer atingir essas pessoas nas pesquisas, porque são todas com formulários online, e elas não acessam. Precisou de muita doação, muitos grupos pra apoiarem e a situação não ser pior”, observa.
Fernanda de Sousa, secretária da Pastoral do Povo da Rua, aponta que, além da política municipal de assistência social, as de saúde física e mental são as mais importantes no contexto pandêmico – e que têm mais fragilidades.
“Nossa dificuldade é em relação às equipes de saúde, o Consultório na Rua. Só temos uma. Isso a gente não entende, é uma equipe mínima pra um grupo tão vulnerável. Não conseguimos visualizar uma ação concreta de ampliação”, lamenta.
A pastoral “nunca cessou os trabalhos durante a pandemia”, e presenciou o adoecimento das pessoas não só por Covid, mas por doenças sazonais. “Com o posto na Praça do Ferreira, alguns testaram positivo. Isso nos preocupa. Se a população de rua está adoecendo, deveria ser cuidada”, alerta Fernanda, afirmando que pelo menos quatro pessoas nessa condição foram infectadas.
Problemas por trás dos números
A subnotificação e a carência de números oficiais são graves em se tratando dessa população em Fortaleza. Não se sabe ao certo quantos contraíram Covid, quantos morreram, nem se a quantidade de pessoas em situação de rua aumentou na pandemia – embora essa seja uma aposta do próprio poder público.
O último censo sobre essa população data de 2014, e um novo deveria ser realizado neste ano – o que “não é prudente”, conforme Márcia Nogueira, coordenadora da Assistência Social da SDHDS. “Em um cenário atípico, é possível que a pesquisa não seja tão fidedigna. Há quem esteja na rua de forma temporária, pela falta de emprego e renda”, exemplifica.
Márcia garante que a assistência “nunca deixou de ser prestada”, nesse ano de crise, mas que os serviços dos Centros POP, por exemplo, foram reorganizados. “Antes, era porta aberta, todos entravam e ficavam, ao mesmo tempo 50 ou 60 pessoas nos serviços. Hoje, entram 20 ou 30 no máximo”, calcula.
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A procura, por outro lado, só aumentou. “O voluntariado reduziu a capacidade de atendimento, lojas estão fechadas... Então, pelo crescimento da demanda e os relatos de usuários do Centro POP, é possível que tenha havido aumento da quantidade de pessoas em situação de rua. Mas não temos quantitativos”, afirma.
A coordenadora menciona, ainda, a distribuição de refeições diárias, que duplicou na pandemia, e o acolhimento de pessoas que desejam sair das ruas como duas das principais medidas assistenciais prestadas pelo Município.
“O usuário que está na rua e sinaliza que quer ir pro acolhimento é testado. Se testar positivo, vai para um espaço no Centro que serve de quarentena, isolamento. Hoje, existem duas pessoas lá. No abrigo do Jacarecanga, tivemos três casos e um óbito. São esses cinco que temos registros de swab positivo”, contabiliza.
Vacinação da população de rua
Sobre a vacinação dessa população, Márcia afirma que os usuários do Centro POP estão sendo cadastrados para receberem as doses quando chegar a vez. A logística de aplicação em um público que muitas vezes é “nômade”, entretanto, ainda não foi definida pela prefeitura.
Em São Paulo, por exemplo, que tem censo populacional atualizado sobre o grupo, essas pessoas começaram a ser vacinadas ainda em fevereiro.
Para a representante da Pastoral do Povo da Rua, as políticas ainda são incipientes e “muito na teoria”. “É uma política muito frágil, porque não dialoga com as entidades que trabalham com isso. Os CRAS, por exemplo, estão fechados, atendendo remotamente. Como as pessoas em situação de rua vão acessar?”, questiona Fernanda.
“Há uma necessidade da volta do auxílio emergencial, pra que as pessoas tenham minimamente uma renda e consigam se manter. Como também a possibilidade de pensar outras formas de geração de renda pra quem não tem condições de trabalhar no lockdown, como flanelinhas, ambulantes que vivem na rua”, complementa.