População de rua constrói "quartos" em vias e canteiros da Capital

Barracas são erguidas com materiais reciclados, como papelão, placas de madeira e lonas, para abrigar móveis e famílias às margens de vias públicas de Fortaleza; pessoas sem teto se multiplicam, enquanto censo segue pendente

Escrito por Theyse Viana , theyse.viana@svm.com.br
Legenda: Lucilene e Eduardo moram ao lado do canal da Avenida Eduardo Girão, há dois anos.
Foto: Foto: Fabiane de Paula

São quase 10h e não há nada no estômago de Jesus Maciel, 70. Enquanto aguarda alguma doação que sirva de café-almoço, assiste ao condutor de um carro de luxo que cruza a Rua Waldemar de Alcântara, no bairro Cidade dos Funcionários, baixar o vidro automático e gritar que a presença dele ali é "absurda, pouca vergonha". "Tem que derrubar isso aí!", brada o homem, apontando para o barraco. A postura é comum ao cotidiano dos milhares de fortalezenses em situação de rua, que improvisam um teto em vias e canteiros centrais da Capital, na tentativa de fugir do sol, da chuva e das múltiplas violências.

Leidiane Avelino, por exemplo, teve todos os pertences e documentos queimados por um comerciante próximo à Avenida Humberto Monte, onde mora na "casa" montada há mais de dois anos no canteiro central da via. "Foi uma das coisas que mais doeu até hoje", relembra a mulher, cujas vivências pelas ruas já se acumulam há dez dos 33 anos de vida, desde que começou a perder os dentes e os laços familiares para as drogas.

Hoje, cama, travesseiros, um armário de cozinha e a pilha de roupas completam o cenário que divide com o companheiro, Edilson - dono de mãos que se lambuzam, em "dia de sorte", limpando os pedaços de frango descartados por um frigorífico próximo, cozidos no "fogão a lenha" de tijolos e madeira. "O almoço é esse, hoje. Não vai ter arroz nem macarrão. A gente só consegue quando pega umas moedas no semáforo e inteira", explica Leidiane. As doações, aliás, nem sempre são uma boa ideia: nesta semana, ganharam uma caixa de produtos alimentícios - todos vencidos há quase um ano. Comeram mesmo assim.

Apesar das dificuldades, que incluem um banho de roupa ali mesmo, no canteiro - ou em um terreno baldio, quando a limpeza precisa ser mais cuidadosa -, Leidiane só tira o sorriso espaçado do rosto ao falar dos quatro filhos, "criados nas casas dos outros". "Meu maior sonho é ter uma casinha pra ter eles de volta". E se deixa tomar pelo silêncio.

Raízes

Ao contrário dela, Jesus, 70, não quer mais sair do barraco de lona e papelão que ergueu lá na Cidade dos Funcionários há cerca de três anos. De rua, mesmo, já são 15, parte deles compartilhada com os três cachorros - Toinha, Ceará e Anita -, que são o alarme para acordar e, ao mesmo tempo, impedir que estranhos roubem os poucos pertences guardados no barraco. Ainda assim, o colchão, o botijão de gás e "um radinho" que recebeu no Natal passado se foram - bastou se ausentar dois minutos e ir pegar água em um condomínio próximo, "pra tomar banho e lavar roupa".

No quase "quitinete" sem porta, construído à base de material reciclado, cabem cama, fogão, roupas, espelho na "parede" e uma carcaça de geladeira na qual guarda a ração dos cachorros, "pros ratos não roerem como fazem com as lonas" do teto. Apesar de tudo e da solidão, "é um lar". "Muita gente, até cantor famoso, já me convidou pra sair da rua. Mas não quero, não", assume. A justificativa é compreensível: a frustração por não ter conseguido uma unidade do programa habitacional Minha Casa Minha Vida, mesmo ficando "sem tomar café, sem almoçar e sem jantar dias inteiros, resolvendo burocracias". Ficou de herança a impressão de que tudo pode dar errado - de que a rua é predestino.

Legenda: Jesus Maciel com sua estrutura ainda montada, em novembro de 2019
Foto: Foto: Fabiane de Paula

A desesperança de Jesus é oposta ao sentimento que sustenta Francisco Eduardo Nascimento, 36, e a companheira, Lucilene de Sousa, 36. Uma das "paredes" da moradia deles é a mureta do canal de drenagem da Avenida Eduardo Girão, no bairro Jardim América, onde se firmaram há exatos dois anos. Hoje, têm móveis, panelas, sofá, cama e até uma rede para passar os dias, escapando da violência, do frio e da fome.

"Uma vez, um homem queria me ter, aqui? Mas ele (Eduardo) chegou", relembra, com medo ainda palpável de que "aconteça de novo". Lucilene passou a morar na rua para acompanhar Eduardo, mas sente nas costas e no peito cada grama do peso que carrega por viver sem teto, sendo mulher - e mãe. "Ontem, dei uma limpeza total aqui. Meu maior sonho é ter um cantinho pra morar com Eduardo e meu filho. Ele vive, hoje, com uma tia, mas sente minha falta. Minha família são eles", emociona-se.

Ao companheiro, em situação de rua há 13 anos, desde quando sucumbiu ao vício em substâncias químicas, resta a impotência. "Eu quero tirar meus documentos, resolver a pensão que não consigo pagar à minha filha, ter minha casinha? Arrumar um emprego. Mas isso é muito difícil pra mim, não tenho estudo nem documento, então não tem oportunidade", lamenta Eduardo, enquanto empunha um livro de Química 2, disciplina que nem chegou a estudar na escola, já que largou as aulas no 7º ano fundamental.

Políticas

Jesus, Leidiane, Eilson, Eduardo, Lucilene e outros milhares seguem na tentativa de fincar raízes em lugar qualquer, de construir tetos além das marquises de comércios ou copas de árvores nas praças do Centro. Em 2015, data do primeiro e último censo da Prefeitura de Fortaleza que as contabilizou, as pessoas em situação de rua somavam mais de 1.700 na Capital. Hoje, quatro anos e muitas mudanças políticas e sociais depois, o número é obsoleto.

Em nota, a Secretaria dos Direitos Humanos e Desenvolvimento Social (SDHDS) garante que "está em processo licitatório para a realização da pesquisa, que abrangerá toda a Cidade". Na Central de Licitações da Prefeitura, porém, ainda não há processo aberto relacionado ao assunto.

A partir da licitação, aponta a Pasta, será lançado um edital de contratação de quem realizará o levantamento. A execução do Censo foi alvo de recomendação do Ministério Público do Ceará (MPCE), em agosto deste ano, que determinou um prazo de 30 dias para que a gestão municipal montasse o cronograma da pesquisa. As datas, contudo, não foram informadas à reportagem.

Para Eneas Romero, promotor de Justiça do MPCE e coordenador auxiliar do Centro de Apoio Operacional da Cidadania (Caocidadania), um censo específico é fundamental para elaboração de políticas. "É uma população flutuante, mais difícil de abordar, tem um perfil múltiplo que precisa ser entendido. Qual o histórico daquela pessoa? Sem o censo, teremos sempre uma lacuna. Houve um aumento muito grande dessa população", pontua, acrescentando que a pesquisa deveria ser feita também "em todas as cidades cearenses com mais de 100 mil habitantes". A proposta, contudo, não avançou no Estado.

Na mesma nota, a SDHDS garante que, junto ao Conselho Municipal da Assistência Social, "repassa informações contínuas ao Ministério Público sobre o andamento do processo", e que "tem trabalho constante de políticas públicas para pessoas em situação de rua em Fortaleza por meio da rede socioassistencial".

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