A vida após a alta da Covid: desospitalização vai do reaprender a andar até a curar traumas
Prática incentiva que pacientes continuem sendo cuidados mesmo após a alta hospitalar. Recuperação vai do reaprender a andar até a cura de traumas psicológicos
Quando se enfrenta uma doença como a Covid-19, que isola as pessoas umas das outras e, na forma mais grave, as deixa sem ar e por dias acamadas, sedadas, com um tubo na boca, a recuperação plena não acompanha a alta hospitalar. Pelo contrário. Por mais importante que seja a assistência 24 horas num leito de enfermaria ou de terapia intensiva, há quem entenda ser somente na transição do hospital para casa que começa, de fato, a reabilitação do paciente.
Isso foi, aliás, o que motivou o Governo do Ceará a instalar nesta quinta-feira (24) uma “Casa de Cuidados” no Hotel Recanto Wirapuru, no Dias Macedo, em Fortaleza. Com capacidade para 130 pessoas, o equipamento ajuda na rotatividade de leitos hospitalares e também deve servir como um centro de treinamento para famílias e cuidadores de pacientes com sequelas provocadas pela Covid-19 aprenderem a dar continuidade ao tratamento de saúde em casa.
Além disso, outras unidades públicas do Ceará já oferecem esse tipo de tratamento, como o Hospital São José (HSJ), que atende atualmente 38 pacientes, e o Hospital Geral Dr. Waldemar Alcântara (HGWA), que acompanha 213 pessoas para manter o tratamento relacionado à Covid-19.
“A gente sabe que uma doença grave modifica a vida das pessoas e da família. Essa casa tem um foco absolutamente multidisciplinar. O médico não é o centro do tratamento. O centro é o paciente”, sintetizou o secretário estadual da Saúde, Dr. Cabeto, na inauguração do espaço.
Veja também
Desospitalização
Prática crescente na medicina desde a década de 70 a partir de discussões sobre saúde mental, e já bastante difundida na Europa, a desospitalização de pacientes com quadro estável é recomendada no Sistema Único de Saúde (SUS) em casos de doenças crônicas que, por mais que não exijam internação, demandam um cuidado prolongado.
Geriatra, médico de família e comunidade e professor de saúde comunitária na Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Ceará (UFC) e da Universidade de Fortaleza (Unifor), Marco Túlio Ribeiro ressalta que o ideal seria que todo paciente que recebesse alta da Covid-19 tivesse uma equipe de saúde ou um médico de referência após a saída do hospital.
A desospitalização deve ser vinculada a uma equipe de saúde que vai acompanhar esse paciente em casa. Muitas vezes, o paciente recebe alta, se desliga do hospital e pronto, quebra o vínculo, não tem continuidade do cuidado. Isso é errado”.
A desospitalização, portanto, não se trata meramente de uma transferência da assistência hospitalar para casa, mas, sim, de um cuidado integrado, multidisciplinar, que personaliza o apoio à saúde com profissionais capacitados, mas que também insere a família no cuidado e utiliza o ambiente domiciliar para ensinar o paciente a ter de novo autonomia.
Fragilidades físicas e emocionais
Um dos que têm tentado retomar a autonomia após a Covid-19 é o engenheiro químico e representante comercial Marcelo Fábio Barbosa Freire, 56. Ele não somente enfrentou a infecção na forma mais grave e precisou ser intubado, como, ao ser extubado, recebeu dos médicos a notícia de que sua esposa, a farmacêutica Micheline Pereira Jocundo de Oliveira, 49, que também estava internada no Hospital São José (HSJ), perdeu a batalha para a doença.
“Eu desabei. Estava casado há 25 anos, seis de namoro, com a mesma mulher. Foi terrível. Se eu estou vivo hoje, foi porque eles [equipe multidisciplinar do HSJ] se esforçaram muito”, reconhece o engenheiro. Quando recebeu alta do hospital, no último 12 de abril, Marcelo estava com 15 quilos de músculo a menos. Não andava, não tinha força nem sequer para levar um garfo à boca e sofria profundamente o impacto da perda da esposa.
Sem condições físicas de voltar para Aquiraz, cidade onde mora, ele alugou um apartamento no Montese, na Capital, para, com a ajuda de um cuidador e da equipe do Programa de Atendimento Domiciliar (PAD) do HSJ, recuperar a saúde do próprio corpo. O foco inicial foi a reabilitação motora. “A previsão era eu ficar até uns três meses nesse processo. Mas, com mais ou menos um mês, criei coragem, levantei da cama e dei o primeiro passo. Pedindo a Deus. Levei uma queda, levantei e fui de novo”, conta.
Com o tempo, os pequenos passos dentro do apartamento logo se tornaram algumas dezenas de metros percorridos ao redor do condomínio e, depois, algumas centenas de metros em espaços públicos da Cidade. Os minutos na bicicleta ergométrica e na esteira da academia também aumentaram. Até que, no último sábado (19), ele recebeu alta do tratamento e voltou para Aquiraz.
Fui tentando vencer lentamente os meus limites”.
Porém, Marcelo sabe que, agora, vai enfrentar outro desafio. “Me reabilitei na parte motora e, agora, estou trabalhando a parte psicológica e psiquiátrica, por causa da ansiedade”, relata. “Tô voltando pro local onde morei por dez anos com minha esposa. Mas tomei a decisão de enfrentar essa situação e, assim como consegui voltar a andar, minha fé vai me fazer voltar a ser uma ‘pessoa normal’, apesar de que essa é uma ferida que vai doer por muito tempo”.
Consciente, ele sabe que tanto sua hospitalização quanto sua desospitalização ocorreram em momentos essenciais para garantir a recuperação. “A estratégia foi muito boa”, reconhece.
Educação em saúde
Uma das profissionais que atenderam Marcelo pelo PAD do HSJ foi a fisioterapeuta Lea Queiroz, que coordena o programa. Na equipe dela atuam, também, médicos, enfermeiros, assistentes sociais, nutricionistas e técnicos de enfermagem. Antes da Covid-19, ela conta que o programa atendia, principalmente, pacientes em tratamento para o HIV/Aids.
No entanto, o perfil do público-alvo mudou um pouco ainda no início da primeira onda da pandemia, quando os médicos perceberam que, por falta de assistência, muitos dos pacientes que recebiam alta voltavam ao hospital.
“Descobrimos que [a reinternação] nem sempre era [por um problema] respiratório, mas pelo medo que estava instalado”, compartilha Lea. Entretanto, devido ao Hospital São José ser referência no tratamento de infecções, os profissionais estão acostumados a lidar com esses medos e com as sequelas que debilitam o corpo após uma infecção grave.
Na experiência com a Covid-19, “vimos o quanto é importante a educação em saúde”, observou a fisioterapeuta. Por isso, quando visitam os pacientes após a alta hospitalar, os profissionais são instruídos a ensinar tanto a eles quanto às suas famílias e cuidadores procedimentos como checagem de saturação sanguínea e exercícios respiratórios.
Atualmente, o PAD acompanha 38 pacientes no pós-Covid-19.
Desafiar o próprio corpo
Lea lembra que visitou recentemente um paciente que recebeu alta hospitalar depois de 72 dias de internação e precisou de suporte de oxigênio em casa. Por iniciativa dele, que, hoje, já está sem a oferta de oxigênio, mas mantém a fisioterapia, os dois desceram sete lances de escada no prédio onde ele mora para testar sua resistência física.
“É uma sensação tão gostosa. Se triplicassem meu salário ainda não pagava a sensação de olhar e ver um certificado em forma de gente. Quando eu vou parar com isso? Sei lá. Atender em domicílio tem que gostar e eu gosto, porque conheço ele [o paciente] fora do hospital. Passo a entender”, reflete a fisioterapeuta.
O paciente que se desafiou a descer escadas com Lea é o engenheiro civil Aminton Costa da Cunha, 60. Quando deixou o hospital, ele não conseguia andar, se sentia constantemente cansado e tinha escaras na pele.
“Ainda tô com algumas sequelas respiratórias, mas tô fazendo fisioterapia pra expandir o pulmão e, a cada dia, tô tendo melhoras. A doutora Lea é muito competente e de um grande coração, porque ela ajuda não só no tratamento físico mas, também, no psicológico. Sempre sorrindo. Nos faz ficar bem e com a certeza de cura”, compartilha, grato, também, à equipe.
Para a esposa, a comerciante Leila Machado Dias da Cunha, a volta do marido para casa, ainda que muito debilitado, foi como um “presente de Deus”. “Tô sempre cuidando [dele] com muito carinho e feliz pelas melhoras, vendo ele junto de toda a família”, celebra.
“A família é extremamente importante de ser envolvida. É corresponsável, ajuda a fazer a manutenção dos medicamentos, os cuidados gerais com alimentação, hidratação. Estar próximo da família nesse momento [da recuperação] é essencial. Até porque esse paciente que ficou internado ficou em isolamento, longe”, pontua o médico Marco Túlio, que também integra o Coletivo Rebento de Médicos em Defesa da Vida, da Ciência e do SUS.
Outras iniciativas
Outra unidade da rede estadual de saúde que presta Serviço de Assistência Domiciliar (SAD) a pacientes pós-Covid-19 é o Hospital Geral Dr. Waldemar Alcântara (HGWA). Com equipe multidisciplinar maior que o Hospital São José, o HGWA acompanha atualmente 213 pacientes — do hospital e de outros da rede. Segundo a terapeuta ocupacional Ítala Oliveira, coordenadora do serviço, o número está em alta devido ao aumento da quantidade de pacientes que estão se recuperando.
“A gente ‘retira’ pacientes estáveis dos hospitais para otimizar os leitos para os pacientes mais graves”, explica Ítala. A partir daí, a equipe multidisciplinar de 40 profissionais se organiza para fazer visitas de uma a quatro vezes ao mês a esses pacientes. “A gente orienta mais a reabilitação motora e respiratória. E às vezes a gente também disponibiliza oxigênio, os aparelhos, para que eles fiquem mais confortáveis em casa”, relata.
“A gente fica feliz porque está proporcionando o retorno desse paciente e dessa família à rotina”, compartilha a profissional. Além disso, segundo ela, o acompanhamento tem reduzido as taxas de reinternação de pacientes pós-Covid-19 na unidade, o que os protege de possíveis infecções hospitalares que poderiam adquirir se voltassem.