Bastidores da fiscalização: uma noite por dentro do trabalho da Vigilância Sanitária

A reportagem do Diário do Nordeste acompanhou uma noite na rotina de fiscalização dos inspetores sanitários em estabelecimentos comerciais denunciados por desrespeito ao Decreto Estadual

Escrito por Felipe Mesquita , felipe.mesquita@svm.com.br
Legenda: Inspetores sanitários contam com o reforço de policiais para realizarem fiscalização
Foto: Felipe Mesquita

Os ponteiros do relógio marcavam exatamente 19h quando agentes da Vigilância Sanitária do Ceará saíram a campo, tendo como ponto de partida a sede da Secretaria da Saúde (Sesa), na Praia de Iracema. O destino final, a poucos metros dali, era estabelecimentos na orla da Capital, cujo funcionamento violava as normas de biossegurança do decreto estadual contra a Covid-19. Antes do trabalho in loco de averiguação, orientação e autuação, contudo, há um planejamento estratégico, que envolve a apuração de denúncias de irregularidades, escolha dos pontos comerciais e produção de laudo de inspeção.

Nas horas que antecedem a fiscalização, a dupla de inspetores sanitários, número padrão em todas as ações, senta e discute a programação da noite com base na demanda da semana. Jane Cris Cunha, PHd em Saúde Coletiva, e Marcelo Burgoa, mestre em Produção e Reprodução, dividem as tarefas do expediente. A missão da noite era ir a restaurantes e hotéis na Beira-Mar, até então suspeitos de práticas disseminadoras do novo coronavírus, checar as possíveis inconformidades. 

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Por volta das 17h, a lista de paradas do dia já estava definida. Os locais, que terão a identidade preservada, entraram no radar da Vigilância após denúncias anônimas através da ouvidoria da Sesa. Outros órgãos, como Ministério Público, Agência de Fiscalização de Fortaleza (Agefis) e Juizados, também encaminharam ofício solicitando reforço no monitoramento. Além das queixas formalizadas pelos múltiplos canais, os estabelecimentos são definidos ainda por um sistema interno de georreferenciamento, que indica a capacidade de público em tempo real. 

"Essa pesquisa de dados automatizados mostra se o estabelecimento está com aglomeração mesmo de pessoas em determinados horários. É uma tecnologia que busca na internet identificar informações sobre localização", pondera Jane Cris, complementando que a ferramenta tem ajudado na antecipação da rotina. "Facilitou demais porque antes a gente ficava muito baseado nas denúncias. Agora, nosso trabalho saiu do reativo para o proativo, já que não precisa esperar que o problema seja reportado", considera. 

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Segurança

Com a rota de fiscalização traçada, restavam apenas duas atividades pendentes. A primeira delas, às 18h26, foi a montagem do kit de inspeção, essencial para os inspetores. O colete verde e laranja, que carrega o nome da Vigilância Sanitária, é usado para carregar carteira de identificação, documentos pessoais, laudos impressos, decretos estaduais em exercício, além dos itens de higiene pessoal, como álcool 70% e máscara descartável

Instantes depois, às 18h45, a última tarefa consiste em uma reunião com a Polícia Militar para alinhar os trabalhos do dia. Ao se reportar para os PMs, Jane Cris frisou a necessidade constante de apoio tático no decorrer da inspeção, uma vez que havia chance de algum representante de estabelecimento adotar um comportamento agressivo com a equipe. 

- Boa noite! A gente vai fazer uma atividade em restaurantes e hotéis da Beira-Mar. Vocês não podem sair, sob hipótese alguma, nem por um segundo do lado da gente. Vocês sabem que basta um segundo pra gente ser agredido. Se a gente sofrer algum tipo de desacato, se for alguma coisa muito grave, a gente vai dar voz de prisão e vocês conduzem para delegacia. 

- Tá certo, Dona Jane!

- Eles respeitam a gente porque vocês estão do nosso lado. Se vocês não tivessem, a gente era o pano de chão deles, podem ter certeza. Alguma dúvida?

- Não! 

Sem o aparato policial, lamenta Jane, o risco de agressão verbal e física é potencializado, uma vez que ainda falta entendimento integral sobre o trabalho de controle sanitário desenvolvido pela Vigilância. "As pessoas acham que a gente sai daqui com uma lupa procurando um grãozinho de areia no canto da parede para poder multar", relata. Nessas circunstâncias, a conduta dos fiscalizados, muitas vezes, extrapola os limites da boa convivência. "Uns são extremamente agressivos. Se a gente não tiver com a polícia, sai espancado, recebe ameaça de morte, tentativa de suborno, outros ficam nos humilhando", conta, com a voz embargada. 

Escoltado por quatro policiais do motopatrulhamento, o veículo da Vigilância Sanitária, conduzido pelo motorista Paulo Henrique, chega ao primeiro restaurante às 19h12. Ao chegar no ambiente, um pedido imediato ao gerente: uso de máscara pelos clientes que não estão consumindo alimentos e bebidas. Entre os problemas atestados, falta de delimitação do espaço de 1,5 a 2 metros da banda com os clientes, barreira de acrílico no balcão, tapete higienizante e funcionários sem face shield.

Às 19h36, enquanto os fiscais incluíam no relatório o detalhamento da inspeção, um cliente levanta do assento e se aproxima da equipe. O homem, alto e de cabelos brancos, questiona o trabalho e, de pronto, leva um chamado: 

- Cadê a sua máscara, senhor? Nós estamos aqui fazendo uma fiscalização.

Ele baixa a guarda, diz entender a ação no local e retorna à mesa.

-A gente não pode baixar a guarda nunca

Na terceira parada da noite, às 20h29, o olhar clínico dos inspetores detectou uma série de irregularidades logo nos primeiros minutos da fiscalização. Mesas com excesso de clientes, quando o decreto permite até seis; curto distanciamento entre as mesas, produtos sem etiquetas na cozinha, defeito técnico na câmara fria e o no esgoto, o que causou forte odor no espaço de manipulação e preparo de pratos. Os funcionários tentaram justificar, mas os profissionais imediatamente expuseram que as boas práticas são falhas ou inexistentes, citando o risco de contaminação cruzada pelo armazenamento irregular de alimentos.

Legenda: Agentes da Vigilância em inspeção a hotel em Fortaleza
Foto: Felipe Mesquita

Às 22h11, os agentes chegaram ao último ponto, um hotel de luxo. Visivelmente cansados, Jane também reclamava de fome. Não havia almoçado porque estava em reunião com representantes de um shopping fiscalizado dias antes. "Mas, a gente acha força de onde não tem, né, Marcelo?", ao que ele respondeu: "Sim, sim". A responsável noturna pelo estabelecimento ainda demorou cerca de 10 minutos para ir ao encontro dos agentes. Enquanto isso, hóspedes sem máscara circulando pelos corredores e restaurante funcionando depois das 22h já haviam entrado no relatório. 

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Dessa vez, o trabalho não se estendeu pela madrugada. Finalizou às 23h. Em festas clandestinas, por exemplo, a fiscalização não tem hora para acabar e chega, em algumas situações, a amanhecer o dia. A avaliação final da sequência de inspeções foi parcialmente satisfatória, já que não houve maiores transtornos.

"A gente advertiu verbalmente e escrito no laudo. Eles vão responder a um processo administrativo sanitário, que vai ser examinado por um grupo específico da vigilância sanitária. Estes determinam se o estabelecimento será somente advertido por escrito ou se ele vai receber uma multa", explica. O prazo para entrada do pedido de ampla defesa é de 15 dias após a assinatura do auto de infração.

A depender da tipificação da irregularidade, os donos de estabelecimentos podem receber  outras penalidades, como apreensão, inutilização,  interdição, suspensão, cancelamento, proibição de propagandas, cancelamento do alvará de licenciamento. Em caso de reincidência, os locais poderão ser autuados novamente e ter funcionamento interrompido por 7 dias.  

Legenda: Nos locais fiscalizados, os agentes também acessam documentação dos estabelecimentos
Foto: Foto: Felipe Mesquita

Rotina desgastante

Por trás da rotina frenética, corpos e mentes em exaustão, mas que descartam com veemência a possibilidade de parar. "Algumas coisas que a gente passa, sinceramente, dá vontade mesmo de não ir mais, deixar arcar com as consequências de suas atitudes", diz Jane Cris. O que faz mudar de ideia e seguir, é a luta pelo bem comum, sobretudo pela população com vulnerabilidade social.

"Quando você pensa que essas atitudes vão afetar mais a classe economicamente menos favorecida, ganha força de novo, porque ela é que vai sobrecarregar as unidades, ela que vai para as filas, que vai ter privação de alimentos por falta de trabalho, tudo isso por causa da irresponsabilidade de alguns. Então, o nosso trabalho é muito direcionado pensando nessas pessoas", destaca Jane.

Embora no curso da pandemia não tenha sido contaminado pelo novo coronavírus, o medo de ser diagnosticado com Covid-19 é uma constante, julga Marcelo. Naquele dia, comemora, havia testado negativo pela quinta vez, "graças a Deus e à nossa prevenção". Durante as inspeções, a lavagem de mãos e o uso do álcool para higienização ocorria a cada menos de meia hora, conforme testemunhou a reportagem. Porém, ainda há fragilidades na etiqueta preventiva. 

"Estamos o tempo todo de olho nos cuidados, deixando as mãos limpas, de máscara de forma ininterrupta, mas esse deveria ser um comportamento coletivo", alerta Marcelo. Sem as medidas capazes de frear a disseminação da doença, sobram receios.

"O meu maior medo, sem dúvida, é de levar o vírus para dentro de casa. Eu tenho um garotinho de dois anos e isso me causa ainda mais medo. Todos nós aqui somos pais e mães de família, o medo é inevitável", descreve Marcelo.

O temor da infecção viral os obriga a ser ainda mais firmes diante das cenas de descrédito à gravidade da atual condição sanitária. "Tem gente que debocha, fala que usa máscara, mas não está com ela. É um absurdo eu ter que brigar com você pela sua vida, enquanto você mesmo deveria ser o maior interessado nisso", reclama Jane, que vislumbra otimismo com a chegada da vacina para imunização em massa. "Essa luta está chegando ao fim, vamos vencer essa batalha, mas precisamos ter empatia e responsabilidade". 

Denúncias

Para realizar denúncias de desrespeito às medidas de prevenção é possível entrar em contato com os seguintes órgãos:

Agência de Fiscalização de Fortaleza: 156
Vigilância Sanitária do Município: 150, 3252.2155 ou 3252.1571
Vigilância Sanitária do Estado do Ceará e Central da Plataforma Ceará Transparente: 150 ou 0800.275.1520
Polícia Militar: 190
Ministério Público do Ceará: 127 ou 0800.28.11.553
Ouvidoria Geral do SUS: 136