Na linha de frente da pandemia, enfermeira conta como enfrentou os maiores desafios da profissão

Em entrevista à SISI, a enfermeira Karine dos Santos Silva, à frente de uma equipe de 40 profissionais de enfermagem no Hospital Universitário Walter Cantídio, relata o que viveu no último ano.

Escrito por Denise Marçal , denise.marcal@svm.com.br
Legenda: Karine dos Santos Silva, enfermeira coordenadora da UTI Covid 2, do Hospital Universitário Walter Cantídio (HUWC).
Foto: Marília Quinderé (Divulgação)

No dia em que se comemora a profissão de enfermeiro, a SISI traz o relato de uma profissional que, há 15 anos, abraça diariamente a missão de cuidar de pacientes. Karine dos Santos Silva, 37 anos, enfermeira coordenadora da UTI Covid 2, do Hospital Universitário Walter Cantídio (HUWC), tem uma trajetória de muitas conquistas profissionais. Mas o que tem vivido desde que a pandemia começou dividiu a própria existência: “existe uma Karine antes e outra depois da pandemia”. 

O relato da coordenadora reflete a realidade de milhares de profissionais de enfermagem que se entregaram com doação e heroísmo à missão de salvar vidas. “Quem fica 24 horas ao lado dos pacientes, da chegada até a saída, são os técnicos de enfermagem e enfermeiras”, afirma Karine dos Santos Silva, à frente de uma equipe de 40 profissionais no HUWC. 

Legenda: "Quem está 24 horas ao lado dos pacientes, da chegada até a saída, são os técnicos de enfermagem e as enfermeiras", afirma Karine dos Santos.
Foto: Marília Quinderé (divulgação)

Com 15 anos de profissão, Karine é piauiense, mãe do Artur, 7 anos, e da Isadora, de 3 anos, e casada com Ivan da Silva Alcântara, também enfermeiro. Desde 2015, a enfermeira atua na unidade mais complexa do hospital, responsável por cuidar dos casos mais graves. “Quando se iniciou a pandemia, fomos os primeiros a receber os primeiros pacientes com Covid-19 no hospital. Fomos a primeira equipe que teve essa experiência com o novo vírus, uma doença nova que ninguém conhecia. Todos nós tivemos medo, mas encaramos de frente esse desafio e nos transformamos em uma equipe de UTI”, relata. 

Nesta entrevista, Karine conta a experiência de atravessar esse período como enfermeira, gestora e mulher e reflete sobre a relevância do trabalho do profissional de enfermagem na luta diária contra a Covid-19. 

Como é ser enfermeira numa pandemia?  

Para mim, foi muito difícil no começo da pandemia, saber que eu e meu esposo estávamos dentro do hospital. A única opção que eu tinha era me cuidar, fazer todas as medidas sanitárias. Mas eu não pude me afastar dos meus filhos. Como minha família não é daqui, eles não tinham outras pessoas a não ser os pais para cuidar deles. 

O que tem sido mais desafiador? 

Lidar com um colaborador que está dentro de uma pandemia, com medo de se contaminar, de levar para sua casa, de ser o elo de transmissão para sua família. Nós somos linha de frente, não podemos abandonar o barco quando mais precisam de nós e, ao mesmo tempo, precisamos ter o cuidado de não contaminar quem mais amamos. 

Além disso, lidar com as diversas situações dos colaboradores, como doenças na família, também foi difícil. É preciso ter empatia com a família do outro, com a vida pessoal daquele colaborador que está comigo. Foi muito difícil no começo, mas, ao mesmo tempo, acredito que me tornou uma pessoa muito melhor.

Nós construímos uma equipe forte, porque estivemos um ao lado do outro, não largamos a mão de ninguém, soubemos compreender todos esses medos e angústias que as pessoas tinham no início da pandemia, para que esse medo fosse transformado em conhecimento e segurança.  

Legenda: “Quando se iniciou a pandemia, fomos os primeiros a receber os primeiros pacientes com Covid-19 no hospital", relata Karine dos Santos.
Foto: Marília Quinderé (Divulgação)

Como tem sido conviver com tanto sofrimento humano? 

Por diversas vezes, ao longo da pandemia, eu chorei, achando que não ia conseguir aguentar, porque eram famílias e famílias que a gente via perdendo entes queridos. Às vezes, havia pacientes que estavam conosco na UTI, enquanto um outro familiar dele estava em outro hospital internado. Outras vezes, era um filho que estava conosco e que havia perdido o pai também pra Covid. Isso nos deixava muito mal, angustiados, sem saber quando aquele sofrimento ia acabar. A gente sofria junto com as pessoas e sofre ainda.

É uma mistura de emoções: num dia você chora com a morte de uma pessoa, no outro, chora de felicidade por uma alta. Nós também tivemos muitas altas. Muitas famílias receberam seus familiares em casa, pelo cuidado de excelência. Acredito que a pandemia nos desafiou principalmente em relação ao controle emocional. Os profissionais vão sair dessa pandemia muito melhores, mais seguros, mais fortalecidos, mais transformados com relação a cuidar do outro com empatia.  

Você poderia dizer que viveu algo positivo na pandemia e que vai levar para o resto da vida? 

Com certeza. Todo dia, a pandemia trouxe um aprendizado diferente. O que mais me fez refletir foi o valor da família. No primeiro semestre do ano passado, eu estava praticamente morando dentro do hospital. Abri mão de muita coisa, ficava muitas horas além do meu horário de trabalho, levava muito trabalho pra casa e abria mão de estar com meus filhos para estar envolvida em alguma coisa do hospital.

Quando vai passando o tempo, você vai percebendo o que vale realmente a pena. Vai vendo milhares de pessoas perdendo seus entes queridos, pais e mães que não tiveram oportunidade de dar o seu último adeus, filhos que perderam pais e avós. Isso fez com que eu fortalecesse mais ainda a crença de que minha família tem que estar acima de tudo.
O trabalho é importante, precisamos receber nosso salário, precisamos nos dedicar, mas tem que haver um equilíbrio para que nossa família não seja prejudicada. Porque os nossos filhos crescem e, às vezes, não temos memórias afetivas desse crescimento. Minha família tem que ser prioridade e o amor que sinto por eles tem que ser vivido todos os dias. Eu sofri muito com o sofrimento do outro e eu não quero que minha família passe por isso.  

Legenda: A pandemia reforçou a crença de que a família é a prioridade, reflete Karine dos Santos.
Foto: Acervo pessoal

Você consegue ver uma Karine antes e depois da pandemia?  

Sim, com certeza. Eu passei a enxergar coisas que eu não enxergava antes, tipo, escutar as pessoas. Mesmo não tendo solução para o problema de quase todo mundo, eu tinha meus ouvidos para escutar, tinha uma mão para apertar, tinha um olhar para aquele paciente. A linguagem não verbal foi muito mais remédio para muitos problemas do que os tratamentos em si.  

De onde você tira toda essa força?  

Da minha equipe. Ela esteve comigo desde o começo. Nós éramos uma enfermaria e em quatro dias abrimos uma UTI. Eles sempre estiveram perto, me ajudando, me fortalecendo nos momentos de fraqueza e era aquela força que eu conseguia passar para os outros. Me sinto realizada como coordenadora, porque os profissionais que eu lidero são os melhores.  

Legenda: "Nós temos essa história de superação, de doação", afirma Karine dos Santos sobre equipe de enfermagem.
Foto: Marília Quinderé (Divulgação)

Nós temos essa história de superação, de doação dentro do hospital. Você pode ter a melhor UTI, os melhores equipamentos, o melhor hospital, mas as pessoas são o maior patrimônio da instituição. Só deu certo nessa pandemia porque a enfermagem se envolveu, se engajou, se doou, abriu mão da sua família, do tempo com filhos, marido, para estar na frente cuidando das pessoas. Isso foi a transformação.  

O que as pessoas não enxergam sobre a profissão de enfermeiro? 

Nós trabalhamos muito. Muitas vezes, em vários empregos. Não é o meu caso, pois só trabalho aqui. Mas a maioria da categoria trabalha, para ter um salário digno, em três vínculos. Sai de um hospital para o outro, sem comer, nem dormir. Mas não é para ter luxo, é para ter o mínimo. O que a sociedade precisa enxergar é essa desvalorização salarial e essa carga horária excessiva. Essa é uma luta de décadas. A pandemia evidenciou a importância da enfermagem na instituição, mas ainda são necessários uma valorização salarial e um realinhamento no Brasil sobre a questão da carga horária de trabalho. 

E no que toca à mulher enfermeira, como você enxerga essa questão? 

Nós somos mulheres, com múltiplas funções, trabalhando uma carga horária de 36 horas, 40 horas. Tem mães que saem de casa, passam dois, três dias sem ver os filhos porque precisam de dois vínculos para pagar escola, dar conforto para os filhos. A categoria é muito feminina. A gente batalha por um piso salarial melhor e uma carga horária de 30 horas.

Nós fomos tratados como heróis nessa pandemia, mas heróis também precisam ter um trabalho com uma carga horária digna, um salário digno. As palmas precisam vir com esse reconhecimento também.  

 

Legenda: "A pandemia nos desafiou principalmente em relação ao controle emocional", avalia a enfermeira. Na foto, com parte da equipe da linha de frente.
Foto: Marília Quinderé (Divulgação)
 

Neste dia 12 de maio, o que há para celebrar?  

Que a enfermagem se firmou mais ainda dentro das instituições como uma categoria indispensável, indissociável do cuidado, importante e que, sem a enfermagem, nós não teríamos salvado tantas vidas nessa pandemia.

Todas as categorias são importantes - fisioterapeutas, médicos, assistentes sociais, nutricionistas -, mas quem está 24 horas ao lado dos pacientes, da chegada até a saída, são os técnicos de enfermagem e as enfermeiras. Nós nunca saímos do lado desses pacientes, nunca largamos a mão de nenhum familiar, nunca estivemos longe do cuidado.
Todo cuidado é favorecido por alguém da enfermagem. As instituições puderam enxergar mais ainda o papel do enfermeiro e do técnico dentro da instituição, com uma equipe que faz a diferença para que tenhamos bons resultados.