Universitária foi morta por tiros disparados pela PM

De acordo com a SSPDS, 98 pessoas morreram em consequência de intervenções policiais, somente neste ano

Escrito por Emanoela Campelo de Melo - Repórter ,
Legenda: A família de Shyslane Nunes de Sousa esperou cinco meses pela conclusão do exame de balística. O pai da vítima pede Justiça para o caso Foto: Helene Santos

Era noite do dia 14 de março de 2017 quando, Shyslane Nunes de Sousa, de 24 anos, foi atingida por três tiros. A universitária voltava da faculdade e estava a 50 metros de casa, no Conjunto Industrial, em Maracanaú, quando foi surpreendida pelo tiroteio. A rotina deveria ser a mesma de todos os dias, se um casal que praticava assaltos na região não tivesse abordado a jovem. Uma viatura das Rondas Ostensivas com Cães (Roca) flagrou o crime e interveio com disparos.

Havia uma dúvida sobre de qual lado do confronto partiram os projéteis que mataram a universitária. Só no último dia 24, cinco meses após o crime, a Perícia Forense do Ceará (Pefoce) concluiu que a bala saiu da arma de um dos policiais militares que atendeu a ocorrência. O laudo pericial reaviva a dor de Francisco Roberto de Sousa, pai da vítima, que afirma desde o ocorrido: "não pensaram em resguardar a vida da Shyslane".

"Ela foi vítima da violência urbana e do despreparo deles. Fiquei sem a minha filha e quero que o responsável seja punido. Se errou, tem que pagar. Vou pedir indenização ao Estado, porque sei que esse é um direito meu, mas para mim o que é preciso urgentemente é que quem atirou seja condenado", disse o pai de Shyslane Sousa.

De acordo com a Secretaria da Segurança Pública e Defesa Social (SSPDS), um militar, de nome não divulgado, é investigado pela morte da universitária. O suspeito foi indiciado por homicídio culposo, em um Inquérito Policial Militar (IPM). O agente se encontra de licença para tratamento de saúde e, segundo a Pasta, deve depor quando este período terminar.

Ocorrências registradas nos últimos meses mostram que os servidores formados para garantir a ordem pública vêm matando e morrendo, com frequência. No último dia 25 de agosto, o sargento PM, Edvaldo José Santana Flexa morreu vítima de um latrocínio, no bairro Guararapes. O policial foi baleado por dois criminosos, quando saía de uma clínica de fisioterapia. As imagens das câmeras de segurança do local mostram que Flexa foi atingido por um tiro no tórax, no momento em que tentou reagir.

Passados dois dias da morte de Flexa, outro PM foi ferido durante um roubo. Uma pessoa que estava no mesmo local morreu. Maria do Socorro Pereira Rodrigues foi atingida por uma bala perdida, enquanto trabalhava na cozinha do estabelecimento comercial, no bairro Potira II, em Caucaia, onde o cabo PM reagiu à ação criminosa.

Conforme levantamentos da SSPDS, de janeiro a julho de 2017, 98 pessoas foram vítimas de intervenções policiais e morreram. O número é 75% maior que em igual período do ano passado e supera os registros de todo o ano de 2015.

Penalizados

A Controladoria Geral de Disciplina dos Órgãos de Segurança Pública e Sistema Penitenciário (CGD) informou que, nos sete primeiros meses de 2017 foram instaurados 126 inquéritos contra policiais. O número é maior que o registrado em todo o ano de 2016, quando foram contabilizados 102 inquéritos. De acordo com a CGD, o crime mais comum praticado pelos militares é o abuso de autoridade.

O titular da Promotoria de Justiça Militar Estadual, José Francisco de Oliveira Filho, afirma que todos os casos consequentes de erros da intervenção de policial militar são apurados com rigor. O promotor de Justiça ressalta que, hoje, qualquer ação que resulte na morte de civis gera inquérito.

"A qualquer momento, o Estado pode chamar o policial para o processo. O autor do erro também é responsabilizado regressivamente, ou seja, tem de prestar serviços ao Estado em prol do valor que foi pago", afirmou. José Francisco de Oliveira Filho lembra que, mesmo se a culpa por parte do policial é leve, o Estado é obrigado a indenizar e reparar o erro. "Em posse dos documentos que comprovem a culpa do servidor, a vítima pode ir diretamente à Promotoria de Justiça Militar Estadual ou na Defensoria Pública do Estado. Pode também acionar um advogado particular para que o processo tenha início", reiterou.

Justiça

No último dia 4 de maio, o Tribunal de Justiça do Ceará (TJCE) condenou o Estado do Ceará a pagar R$ 70 mil de reparação por danos morais a Rosiane Nascimento da Silva, mãe da menina Laís Nascimento, morta aos 8 anos, por um policial militar, na porta de casa. A decisão veio após cinco anos de luta e luto.

Rosiane conta que, diariamente, lembra do ocorrido no fim da tarde do dia 25 de janeiro de 2012, no Conjunto Ceará. A filha havia acabado de chegar do colégio, quando foi atingida por um único e fatal disparo. Segundo a Polícia, o tiro veio da arma do soldado Francisco Marcelo Lopes de Oliveira, que estava de folga, à paisana, e perseguia um suspeito de assaltar a irmã dele.

"No meio do caminho, o cara soltou a bolsa. Não sei o que deu na cabeça do policial no momento em que ele atirou. Minha filha estava na calçada e foi atingida. Ele fugiu, viu que tinha tirado ali a vida de uma criança. Ela nem chegou a ser socorrida", contou a mãe de Laís.

Passados os primeiros dias de angústia, Rosiane foi convencida por amigos a pedir indenização. "Eu luto na Justiça há muito tempo. Ele permanece dizendo que atirou para cima. Na perícia foi comprovado que a arma e a munição era da Polícia Militar", afirmou Rosiane. O soldado Oliveira acabou expulso da Corporação, em outubro de 2012.

Para Rosiane Nascimento, o valor da indenização é insignificante quando lembra que a filha não retorna. "Eu estava grávida de dois meses quando a minha menina foi morta. Depois disso não tive mais saúde. Foi questão de semanas para eu perder também meu bebê da barriga. Hoje, eu tenho depressão e tomo 16 comprimidos por dia. Faço tratamento psiquiátrico", contou. A falha do soldado é considerada pela família de Laís consequência de despreparo. "A Laís dizia que queria ser policial quando crescesse. Ela admirava a Polícia. O mínimo que eu esperava era que a Justiça prendesse ele, mas isso nunca aconteceu. É uma dor e um trauma que levo. Tiraram a vida de uma criança inocente e, mesmo assim, o Estado continua entrando com recursos", disse Rosiane.

Responsável por contabilizar as indenizações pagas pelo Estado, a Procuradoria Geral do Estado do Ceará (PGE) afirmou que seu sistema não categoriza, especificamente, casos que se devem aos erros policiais. Conforme o órgão, para haver um balanço de mais de um processo, é preciso uma análise com a soma manual dos valores de cada ação.

Opinião do especialista

Mudar o sistema também depende da sociedade

Não se pode ter uma nova Polícia, cidadã, legalista, respeitadora e promotora de direitos humanos, se a sociedade mais ampla não está disposta a mudar o quadro de graves desigualdades de poder, riqueza e conhecimento. Exigir que a Polícia mude sem que a sociedade mude é esquecer que a Polícia faz parte da sociedade que a produz. Mas o problema pode sim ser solucionado. Há outros lugares do mundo que comprovam que uma mudança é real, é possível. A sociedade precisa mudar para gerar novas instituições, para que a Polícia não seja a instituição mais requerida. O desinvestimento do Estado na área social, educacional e cultural é uma forma de suicídio. Mais desigualdades, mais violência. A lógica da guerra leva a uma situação insustentável. O policial não deve ser estimulado a ser um guerreiro. Isso é um sinal de falência do modelo vigente.

Leonardo Sá
Sociólogo

Militar diz que reações acontecem por "impulso"

Nos últimos tempos se repetem também as notícias de policiais mortos ou feridos, ao reagirem a crimes. Aqueles que foram formados para combater a violência urbana acabam se tornando vítima dela. Um cabo PM, que optou por não ser identificado, conta que com oito anos de carreira, vem percebendo que os criminosos não respeitam mais a Corporação como antes. De acordo com o militar, a sensação de impunidade é o principal fator para que um infrator decida puxar o gatilho contra um policial.

"Eu ando armado mesmo nas folgas. Prefiro ter a arma e não precisar usar, do que precisar e não ter. Quando estou de folga, reajo se a vítima for alguém que eu conheça ou para proteger a mim mesmo", disse o cabo.

De acordo com o entrevistado, é preciso que a Polícia entenda que cada gatilho puxado é passível de consequências. "Quando há um crime nas ruas, a primeira reação do policial é proteger o cidadão, sem se valer do uso da arma de fogo. No momento em que o policial reage, é por impulso", disse o PM.

O professor e pesquisador do Laboratório de Estudos da Violência (LEV) da Universidade Federal do Ceará (UFC), Leonardo Sá, afirma que, quando reconhecidos pelos criminosos, os policiais são sujeitos a serem executados sumariamente. "A chance de ser morto ao ser identificado como policial é alta. Matar um deles pode ser um troféu no mundo do crime", avalia o estudioso.

Quanto ao treinamento ofertado para a Corporação, o policial militar afirma que ele é eficaz e não vê necessidade de reformulação. O cabo analisa como positivo o trabalho que vem sendo feito, mas lembra que a violência tende a aumentar devido às brechas na legislação que fazem com que um criminoso consiga reincidir e chegar a praticar crime mais de uma vez.

Em nota, a Secretaria da Segurança Pública e Defesa Social (SSPDS) afirmou que a Academia Estadual de Segurança Pública (Aesp) é responsável por promover todos os cursos de formação para o ingresso nas Forças de Segurança cearenses. Segundo a Pasta, a grade de treinamentos está sendo reformulada com base em demandas apresentadas pelos servidores.

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