Órgãos de controle alertam sobre indícios de tortura nos presídios do CE desde 2019; veja histórico

A Secretaria da Administração Penitenciária considera as últimas 'acusações infundadas' e 'reafirma seu compromisso prático de valorização da pessoa humana em números transparentes e incontestáveis'

Escrito por Messias Borges , messias.borges@svm.com.br
Uma das práticas de tortura denunciada pelos detentos é chamada de 'taturana', que consiste em ficar de cabeça para baixo, apoiado com a cabeça no chão
Legenda: Uma das práticas de tortura denunciada pelos detentos é chamada de 'taturana', que consiste em ficar de cabeça para baixo, apoiado com a cabeça no chão
Foto: Reprodução/ Relatório da Defensoria Pública

As denúncias de tortura nos presídios cearenses, divulgadas pela Defensoria Pública Geral do Ceará na última semana, corroboram com relatórios emitidos por órgãos de fiscalização do Sistema Penitenciário desde 2019 - início da gestão Mauro Albuquerque na Secretaria da Administração Penitenciária e Ressocialização do Ceará (SAP). Esse também foi o tema do 37º episódio do Podcast Pauta Segura, do Diário do Nordeste.

Após as últimas denúncias, a SAP emitiu nota em que "considera as acusações infundadas e repudia a tentativa de ataque coordenado contra as políticas de ressocialização em larga escala da população privada de liberdade do Ceará, bem como a forte valorização que a polícia penal cearense tem recebido do Governo do Estado nos últimos anos" e "reafirma seu compromisso prático de valorização da pessoa humana em números transparentes e incontestáveis".

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Mauro Albuquerque assumiu a Pasta em janeiro de 2019, com promessa de empregar um regime mais duro nos presídios cearenses e com um histórico de denúncias de torturas na sua gestão no Rio Grande do Norte, onde também foi secretário.

Logo entre fevereiro e março de 2019, o Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT), ligado ao Governo Federal, realizou visitas a presídios cearenses e encontrou "indícios de práticas de tortura generalizada".

Esse também foi o tema do Podcast Pauta Segura. Ouça:

O relatório do Órgão, emitido em abril daquele ano, apontou "ausência de um protocolo de uso da força que normatize as condições e os critérios para utilização de equipamentos de segurança e para a aplicação dos 'procedimentos'", além de uma "completa falta de transparência" no Sistema Penitenciário.

Na ocasião, a SAP respondeu, em nota, que "repudia qualquer ato que atente contra a dignidade humana" e que as unidades prisionais cearenses recebiam "constantes visitas de entidades e órgãos como o Ministério Público, a Defensoria Pública e a OAB, sem que nenhuma violação da dignidade humana tenha sido observada".

O Conselho Penitenciário do Ceará (Copen) também emitiu relatório de inspeção de diversas unidades penitenciárias, em julho de 2019, que pontuou ter se deparado com uma cela, no Centro de Detenção Provisória (CDP), em Aquiraz, "onde a maioria dos internos estão com dedos quebrados, inclusive calcificados, com perda de movimento".

Na Casa de Privação Provisória de Liberdade Agente Penitenciário Elias Alves da Silva (antiga CPPL IV), em Itaitinga, o Copen identificou que 80% dos internos estavam submetidos a um tratamento de "tortura institucional", devido aos maus-tratos, pressão psicológica e falta de oportunidades.

No início da nova gestão penitenciária, o Copen encontrou dificuldades para entrar nos presídios e ter acesso aos presos. "Nos dois primeiros anos, 2019 e 2020, o Conselho Penitenciário não conseguiu  trabalhar. Os conselheiros não eram renovados e a estrutura administrativa  foi desmontada", revela a presidente do Conselho, a advogada Ruth Leite Vieira. "O nível de notícias (de tortura) sempre foi esse, porém não havia meios de provar", conclui.

Internos da UP Itaitinga IV também denunciaram agressões físicas cometidas por policiais penais
Legenda: Internos da UP Itaitinga IV também denunciaram agressões físicas cometidas por policiais penais
Foto: Reprodução/ Relatório da Defensoria Pública

Agredidos ou agressores?

Um episódio ocorrido na Casa de Privação Provisória de Liberdade (CPPL) III, em Itaitinga, em fevereiro de 2019, resultou em duas versões e investigações paralelas.

32 internos afirmaram que foram torturados por policiais penais. Os exames de corpo de delito feito nos detentos apontaram lesões nas mãos, costas e cabeças, que, conforme os presos, teriam sido causados por cassetetes.

O Ministério Público do Ceará (MPCE) e a Controladoria Geral de Disciplina dos Órgãos de Segurança Pública e Sistema Penitenciário (CGD) começaram a investigar a denúncia de tortura. Procurada, a CGD respondeu que "identificou o suposto envolvimento de agentes da Força Tarefa de Intervenção Prisional (FTPI) e, por isso, compete ao Ministério Público Federal (MPF) adotar as medidas cabíveis aos fatos".

Na versão dos policiais, os detentos - a maioria chefes de uma facção criminosa paulista - os desobedeceram, ameaçaram e se amotinaram. Após a situação ser controlada, os presos precisaram ser separados e transferidos para outros presídios.

O MPCE denunciou os 32 presos pelos crimes de ameaça, desobediência e motim, em agosto de 2019. A Justiça Estadual recebeu a denúncia e os acusados se tornaram réus, em maio de 2020. O processo segue em tramitação.

Novas denúncias de tortura

A pandemia de Covid-19 e a necessidade de isolamento social afastaram os órgãos fiscalizadores dos presídios. Após o retorno das visitas e das inspeções, novas denúncias de tortura surgiram no Estado, no fim de 2021.

Uma inspeção realizada pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e pela Corregedoria Nacional de Justiça nas 27 unidades prisionais espalhadas pelo Ceará, em novembro daquele ano, indicou irregularidades como a superlotação carcerária e o tratamento "cruel e degradante" aos presos.

A Secretaria da Administração Penitenciária respondeu, por nota, que "todas as unidades prisionais do Estado do Ceará funcionam de forma transparente para que qualquer autoridade investida de poder fiscalizador inspecione cada espaço pertencente à gestão prisional cearense".

Em fevereiro de 2022, surgiram denúncias de maus-tratos e torturas cometidas por policiais penais contra detentos da Penitenciária Industrial Regional do Cariri (PIRC), em Juazeiro do Norte. O caso é investigado pelo Ministério Público do Ceará e acompanhado pela Corregedoria dos Presídios, da Justiça Estadual.

Mais uma vez, a SAP repudiou, em nota, "qualquer ato que atente contra a dignidade humana" e ratificou que "trabalha com transparência e recebe inspeções rotineiras de autoridades do Judiciário, Ministério Público, da Defensoria Pública e até do Conselho Nacional de Justiça".

Em setembro último, a Corregedoria dos Presídios e o MPCE realizaram uma inspeção na Unidade Prisional Professor Olavo Oliveira II (UPPOO II) - antiga IPPOO II - em Itaitinga, e se depararam com indícios de tortura em mais de 70 presos. Os relatos eram de enforcamento, sessões de inalação de gás, pisões na cabeça, entre outras práticas abusivas. Quatro policiais penais acabaram presos, incluindo o diretor da Unidade, no mês de outubro. As investigações do MPCE e da CGD seguem em andamento.

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Legenda: Registro de câmera de segurança no IPPOO II
Foto: Reprodução

Novas denúncias de tortura levaram a Corregedoria dos Presídios a afastar provisoriamente toda a diretoria (ao total, seis policiais penais) da Unidade Prisional Agente Elias Alves da Silva (UP-IV) - a antiga CPPL IV - também em Itaitinga, no último dia 26 de junho.

Reportagem do Diário do Nordeste publicada no último dia 3 de julho revelou que os órgãos de fiscalização do Sistema Penitenciário receberam denúncias de que internos da UP-IV sofrem agressões diárias, muitos estão com dedos quebrados, e que há problemas graves na alimentação fornecida (como comida estragada e até um dente encontrado dentro de uma marmita).

Um relatório da Defensoria Pública Geral do Ceará, revelado inicialmente pelo jornal Folha de S. Paulo e depois obtido pelo Diário do Nordeste, apontou mais denúncias de tortura na mesma Unidade: presos reclamaram que são colocados de cabeça para baixo, que têm os testículos apertados e que são baleados com frequência pelos policiais penais.

Procurada para comentar o relatório, a Defensoria afirmou, em nota, que "atua cotidianamente dentro das unidades prisionais fazendo o atendimento jurídico dos internos, o acompanhamento processual, os atendimentos individuais e sempre que detecta alguma irregularidade, violação de direitos ou maus tratos reporta imediatamente aos poderes e órgãos competentes".

"O caráter sigiloso destes documentos tem o intuito de preservar vidas e, sobretudo, colaborar para apuração e punição dos responsáveis, auxiliando na tomada das medidas necessárias para cessar quaisquer atos que configurem tortura, tratamento cruel, desumano ou degradante. Assim, o vazamento de dados e informações sigilosas colhidas nessas inspeções vulnerabiliza ainda mais as vítimas e requer também a apuração de responsabilidades", ponderou o Órgão.

O Sindicato dos Policiais Penais e Servidores do Sistema Penitenciário do Ceará (Sindppen-CE) emitiu nota pública sobre as denúncias de tortura no Sistema Penitenciário, em que afirma que "é contra essa ação e que acredita na questão da ressocialização".

Isso, porém, não significa defender o crime, a impunidade ou até mesmo questionar os processos empregados de doutrina, com o uso controlado da força, conforme determinado em situações especificas de risco. Seguimos trabalhando pela segurança e humanização, acreditando na construção de um Ceará melhor para todos."
Sindppen-CE
Em nota

Confira a nota da SAP na íntegra sobre as últimas denúncias:

"A Secretaria da Administração Penitenciária e Ressocialização considera as acusações infundadas e repudia a tentativa de ataque coordenado contra as políticas de ressocialização em larga escala da população privada de liberdade do Ceará, bem como a forte valorização que a polícia penal cearense tem recebido do Governo do Estado nos últimos anos. A SAP reafirma seu compromisso prático de valorização da pessoa humana em números transparentes e incostestáveis e informa que recebe visitas regulares de instituições fiscalizadoras, como Poder Judiciário, Ministério Público, Defensoria Pública, além de entidades de controle social. Além das instituições fiscalizadoras, a Pasta mantém uma Ouvidoria própria, com reconhecimento nacional, é vinculado a Ouvidoria do Governo do Estado do Ceará para qualquer tipo de reclamação e colabora de maneira célere e transparente junto à Controladoria Geral de Disciplina dos Órgãos de Segurança Pública (CGD).

O sistema prisional do Ceará virou um modelo de referência nacional em vários aspectos, com destaque para a ressocialização e a segurança física e emocional da sua população privada de liberdade. Entre os anos de 2009 até 2019, os presídios cearenses tiveram 210 presos assassinados. Desde que a SAP foi criada, em 2019, esse número caiu para 2 vidas perdidas de forma violenta, justamente nos primeiros meses de criação da Pasta quando houve reação do crime perante a reorganização do sistema penitenciário cearense e assim permanece até hoje. Os telefones celulares foram todos retirados das unidades prisionais. A SAP também esclarece que as organizações criminosas perderam qualquer capacidade de poder no sistema prisional cearense. A lógica do crime e sua rotina de assassinatos, estupros, extorsões e tráfico de drogas nas unidades prisionais foi substituída por um cotidiano de pessoas privadas de liberdade com fardamento do Senai em diversos cursos de capacitação, capacete de construção civil por conta do trabalho digno, além de livros, cadernos e canetas pelos milhares de presos em salas de aula e com seus diplomas de aprovação em diferentes exames nacionais como Encceja e Enem PPL.

Nos últimos 4 anos, em parceria com o Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (Senai), A SAP já capacitou mais de 21 mil pessoas de liberdade em diversos cursos de capacitação nas áreas de construção civil, mecânica industrial, tecnologia entre outros. Na educação, são mais de 8 mil pessoas privadas de liberdade em cursos regulares de alfabetização, ensino fundamental e médio. Esse trabalho permanente, ao lado da Secretaria de Educação do Estado do Ceará (Seduc), gera resultados concretos como a aprovação de quase 6 mil internos e internas no último Exame Nacional para Certificação de Competências de Jovens e Adultos (Encceja) e a inserção da metade da população carcerária do Ceará no projeto Livro Aberto, que provoca remição de pena de 4 dias para cada livro lido e avaliado em resenha pela Seduc. A segurança e tranquilidade do atual sistema prisional cearense também estimulou a entrada de 9 indústrias de grande porte de unidades prisionais, nos segmentos de confecção, gráfica, alimentação e bebidas, que gera ocupação, qualificação, remição de pena e renda para os internos e seus familiares fora dos muros. Paralelo ao trabalho ressocializador a SAP realizou, nos últimos quatro anos, em parceria com a Defensoria Pública do Estado do Ceará, mais de 125 mil revisões processuais entre os internos do sistema penitenciário do Ceará. Esse trabalho contribuiu na redução de 30 para 21 mil pessoas em regime fechado - a maior redução do Brasil."

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