Caso Mizael: órgãos realizam protesto após MP pedir absolvição de PM acusado de matar adolescente enquanto ele dormia
Os memoriais finais do MPCE vão de encontro a própria denúncia do órgão, enviada ao Poder Judiciário há pouco mais de dois anos, que denunciou o PM por homicídio

O parecer do Ministério Público do Ceará (MPCE), que por meio da Promotoria de Justiça Vinculada de Chorozinho pediu a absolvição do policial militar Enemias Barros, da Silva acusado pela morte do menino Mizael Fernandes da Silva, vem gerando repercussão nos órgãos ligados aos Direitos Humanos. A Anistia Internacional Brasil, o Conselho Estadual dos Direitos da Criança e do Adolescente do Ceará (Cedeca) e a Defensoria Pública Estadual participam na próxima sexta-feira (7) de um ato pedindo Justiça para o caso.
Mizael tinha 13 anos quando foi morto, na casa da tia dele, em Chorozinho, cidade da Região Metropolitana de Fortaleza (RMF). Ele dormia na madrugada de 1º de julho de 2020, momento no qual policiais invadiram a casa da família afirmando estarem em busca de um traficante e dispararam contra o adolescente.
Segundo o Cedeca, o ato é em memória não só a Mizael, mas também para pedir Justiça por Lizângela, tia do menino e uma das principais testemunhas do caso, mas que está desaparecida há mais de um ano. A manifestação está programada para começar às 8h, em frente ao Fórum Clóvis Beviláqua, em Fortaleza.
Em nota, o MP disse ao Diário do Nordeste que "a Promotoria de Justiça Vinculada de Chorozinho informa que se manifestou pela absolvição sumária do policial militar N. B. S. por entender que ele agiu na condição de legítima defesa, com todos os requisitos previstos em lei. A Promotoria também entendeu que não houve crime conexo de fraude processual cometido pelos três policiais militares. O posicionamento está embasado nos depoimentos e nas provas periciais colhidas referentes ao caso. O processo segue para manifestação do assistente de acusação, e, por último, para a defesa dos acusados, para em seguida aguardar a decisão do Poder Judiciário".
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A defesa do sargento, representada pelo advogado Leonardo Feitosa Arrais, disse ter recebido as alegações finais do MP com "naturalidade e senso de dever cumprido. A Justiça está sendo restabelecida. As provas carreadas aos autos são da ocorrência da legítima defesa, pois o indivíduo que portava uma arma de fogo desobedeceu a ordem de rendição, destarte, para repelir a ameaça iminente o PM efetuou um disparo. Durante todo esse tempo de tramitação processual restou prejudicado policiais militares exemplares que carregam a pecha de militares acusados de homicídio e fraude processual, dificultando suas vidas no seio da sociedade por aproximadamente 5 anos. A defesa confia que a justiça será efetivada com a sentença de absolvição sumária e de impronuncias".
REVIRAVOLTA NO PROCESSO
Os memoriais finais do MPCE vão de encontro a própria denúncia do órgão, enviada ao Judiciário há pouco mais de dois anos. Em 2022, o MP denunciou três policiais militares por envolvimento no crime, sendo apenas o sargento Enemias, acusado diretamente pelo homicídio.
No último dia 15 de janeiro, o promotor de Chorozinho pediu a absolvição do policial, demitido da Corporação em outubro de 2023, agora defendendo a tese da legítima defesa.
A Defensoria Pública do Estado do Ceará, assistente de acusação no caso, manifestou profunda preocupação com os argumentos apresentados pelo Ministério Público do Estado do Ceará e disse que "apresentará os memoriais no prazo legal, contestando os apontamentos do MPCE com base no robusto conjunto probatório dos autos, que totaliza mais de 2.000 páginas".
"Desde julho de 2020, a Defensoria acompanha integralmente o caso, participando de todas as etapas processuais – incluindo o inquérito policial, a reconstituição dos fatos e a fase de instrução – e oferecendo assistência contínua aos familiares da vítima, cuja conduta exemplar tem sido reconhecida em todos os relatos e testemunhos. Ressaltamos que a principal testemunha do caso encontra-se desaparecida há dois anos, uma circunstância que intensifica sua complexidade. Acrescenta-se ainda que o inquérito sobre o desaparecimento permanece sem movimentação, o que evidencia a necessidade de maior atenção ao caso"
A assistência de acusação disse ter solicitado nos memoriais a quebra do sigilo processual, "visando garantir a transparência necessária e assegurar que a sociedade tenha acesso pleno aos fatos. Reiteramos nossa expectativa de que o Poder Judiciário analise o caso com a profundidade e o rigor indispensáveis, garantindo justiça à vítima e amparo aos seus familiares. Por fim, a Defensoria reafirma seu compromisso inabalável com a defesa dos direitos fundamentais, especialmente daqueles em situação de vulnerabilidade, e com a incansável busca por justiça e reparação".
O Cedeca acrescenta que o posicionamento do MP gerou indignação e destaca ser "fundamental que os familiares das vítimas tenham suporte e segurança garantidos, para que possam seguir na luta por justiça".
Na versão dos policiais, Mizael estava armado dentro da residência e tentou reagir contra os agentes. O laudo cadavérico feito no corpo do adolescente apontou que foi encontrada apenas uma entrada de tiro, na região próxima ao peito do jovem, que se encontrava deitado no colchão.
A perícia ainda constatou não haver traços genéticos do adolescente na arma de fogo apresentada pela composição investigada.
"Queremos entender a justificativa de legítima defesa, até porque é contrária à própria denúncia. O ato é para não só chamar a atenção para esse caso, mas para pedir ações mais eficazes, pedir Justiça. Na denúncia o MP destacou que havia indícios suficientes para o julgamento. Pedimos um posicionamento diante disso na tentativa de garantir que a Justiça seja feita. Queremos que o caso seja levado a julgamento e informações sobre o desaparecimento da Lizângela", disse Ingrid Lorena Leite, coordenadora de atendimento do Cedeca.
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ENTENDA O CASO
Em junho de 2022, o Ministério Público denunciou três policiais militares: Enemias pelo assassinato e fraude processual, enquanto os PMs Luiz Antônio de Oliveira Jucá e João Paulo de Assis Silva apenas por fraude processual. O trio teria interferido na cena do crime, com possível objetivo de dificultar o trabalho das autoridades na elucidação do crime.
A denúncia foi oferecida ao Judiciário depois que a Delegacia de Assuntos Internos (DAI) finalizou o inquérito. Na época, o MP disse que a denúncia estava baseada em provas testemunhais e periciais e chegou a divulgar trechos da acusação.
VEJA TRECHO DA DENÚNCIA:
"Por volta de 1h da madrugada, com a informação de que o criminoso estava escondido em uma casa de muro roxo no Residencial, os agentes de segurança cercaram a casa que Mizael encontrava-se, e que pertencia a sua tia, e ordenaram que todos os ocupantes do imóvel saíssem. Com exceção de Mizael, que estava dormindo em um dos quartos, todos saíram da casa e, na sequência, Enemias Barros da Silva entrou no imóvel".
O MP diz ainda que: "pouco tempo depois, o PM teria efetuado um disparo de arma de fogo contra o adolescente. Ao terem conhecimento do ocorrido, Luiz Antônio e João Paulo, juntamente com Enemias, não permitiram que a família da vítima adentrasse na casa e, pouco depois, colocaram Mizael na viatura e levaram o adolescente para o hospital, onde já chegou sem vida. Na sequência, os três PMs se dirigiram até a delegacia plantonista para prestar declarações e apresentar a arma que diziam estar em posse da vítima. Os policiais informaram ainda que Mizael estava armado quando a Polícia entrou na casa e não atendeu a ordem de se render, o que teria motivado o disparo por parte da PM".
MOTIVAÇÃO
O processo segue em segredo de Justiça. No entanto, a reportagem apurou que o real alvo dos policiais militares na madrugada de 1º de julho de 2020 era um homem, com alguns traços físicos semelhantes aos do garoto, e que, caso fosse entregue morto à traficantes, seus matadores poderiam ser recompensados em até R$ 50 mil.
A reportagem ainda apurou que o alvo da intervenção policial chegou a ser ouvido Judiciário cearense e disse às autoridades que não tinha envolvimento com Mizael e sequer o conhecia.
Em 2023, a Controladoria Geral de Disciplina (CGD) publicou no Diário Oficial do Estado (DOE) a demissão de Enemias. Já para o soldado Luiz Antônio de Oliveira Jucá ficou decidida punição com 10 dias de permanência disciplinar, porque, segundo CGD, ele não disparou contra a vítima, mas tentou a fraude processual junto ao sargento.
No caso do soldado João Paulo de Assis Silva, o processo disciplinar foi arquivado, "por insuficiência de provas para consubstanciar uma sanção disciplinar (a saber, suposta prática de fraude processual), ressalvando a possibilidade de reapreciação, caso surjam novos fatos".