Tradição é mantida entre risos e lágrimas

Escrito por Redação ,
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Antigos comerciantes mantém costume interiorano enfrentando a concorrência da modernidade

Quixadá. De domingo a domingo, Bodorô, como é conhecido o aposentado Francisco Ferreira de Assis, abre as portas de sua bodega ainda cedo, como ele mesmo diz, “antes do galo começar a cocoricar”. Passa o dia ali, de um lado para o outro do balcão. Arruma uma coisa, desarruma outra, sempre à espera de mais um freguês, coisa rara nos últimos tempos. Mesmo assim não perde o bom humor. Tem de quase tudo para vender. “E se está faltando é porque não tem”, responde sisudo ao cliente que sai desajeitado. Por essas e outras é comparado a “Seu Lunga”, personagem folclórico do Cariri.

De cara, parece enfezado, mas basta comprar uma ou duas iguarias para Bodorô aceitar uma boa puxada de conversa. E aos poucos, o bodegueiro de 70 anos vai soltando sua história. Confessa que já houve tempos melhores, quando pobre era pobre. A miséria era tão grande que vendia manteiga na colher. Todavia, naquela época, a freguesia aparecia de montão. Dava até para distribuir alguns bombons com a meninada. Hoje, são justamente os doces, cigarros, tudo na unidade, que sustentam o negócio montado há quase cinco décadas. Mantém a tradição.

Das histórias sobre Bodorô, uma das mais interessantes é do “gato por lebre”. Certa vez um desagradável freguês que não pagava as contas e ainda continuava a importuná-lo pediu meio quilo de açúcar. Inconformado com o descaramento do cliente por conta da extensa dívida e algumas exigências, o bodegueiro não se conteve. Na hora de colocar a mercadoria no saco trocou o produto por sal. O devedor nem notou. Foi embora, mas logo depois retornou para reclamar do engano. Recebeu boa resposta: “Vai ver que o açúcar estragou. Tá ruim. Se quiser só tem assim!”.

O freguês não pagou a dívida, mas também não voltou mais. Para Bodorô, “freguês é assim mesmo. Se a gente der mole ele leva tudo de graça”, contou o comerciante.

Bodorô diz que é exagero, conversa de quem não tem o que fazer. Se entrega no enorme sorriso, mas comenta que não foi bem assim. Para evitar confusão mandou pintar na parede do prédio: “Não aceitamos vale”. Desde então, é dinheiro pra cá e mercadoria pra lá. Todavia, foi só aguardar um pouco e observar: “Vai queimar freguesa. Taqui o fósforo”. Enquanto o comentário de duplo sentido na compra do cigarro tira sorrisos de umas, irrita outras freguesas. “Velho chato. Enxerido. Vai arrumar o que fazer” e saiu dali aborrecida, sem dar atenção a reportagem.

Símbolo de resistência

No encarte de seu último CD, a banda Contatos Imediatos, da região, utilizou como uma das ilustrações a fotografia registrada pelos músicos detrás do balcão da bodega de Bodorô. Guaracy Freitas, Júnior Jk, Denis Carlos, Etinho e Tirolês logo perceberam a afobação do anfitrião.

Eles haviam escolhido justamente a mercearia dele em reconhecimento por considerarem ser um importante símbolo de resistência ao capitalismo selvagem, tema abordado no último trabalho do grupo.

A rusticidade e a simplicidade estão espalhadas ali, por todos os lados. Apesar da homenagem ao comerciante, os integrantes da banda confessam que não foram recebidos de bom grado no local.

FIQUE POR DENTRO
Outros nomes dados para bodega

Armazém de secos e molhados, biboca, baiúca, empório, mercearia e venda são alguns sinônimos de bodega. Em algumas cidades do Brasil, o termo bodega é usado como gíria. Em alguns casos é pronunciado como ´budega´, para designar qualquer coisa de qualquer natureza, porém, com um tom hilário e pejorativo. Segundo historiadores, as bodegas surgiram na Europa, foram trazidas para o Brasil pelos colonizadores e imigrantes. Enquanto no Nordeste são o principal suporte para os pobres, nas necessidades do dia-a-dia, no Sul do País são sinônimos de luxo e requinte, já que funcionam para a comercialização de vinhos, alguns muito raros e caros.

BIBOCA DO AIRTON
Especialidade é a venda de cachaça

Quixadá. A algumas quadras dali, na extensão da Rua Eudásio Barroso, que mais adiante se transforma em calçadão da Travessa Tiradentes, outro bodegueiro mantém a velha biboca herdada do pai. De miudezas, quase nada, apenas alguns maços de cigarro, isqueiros e coisas do gênero. Nas prateleiras, os litros e mais litros de cachaça se destacam. De copo em copo. É desse jeito que Airton Cândido segura a freguesia. Situada naquele ponto nobre do Centro de Quixadá, divide com sapatarias e livrarias o movimento da clientela. Por conta da variedade de pingas, pinga gente toda hora, de toda parte, o dia todo.

Nas prateleiras empoeiradas estão à mostra mercadorias raras extraídas dos melhores canaviais do Nordeste, algumas delas envelhecidas há mais de meio século. Mas o simpático comerciante garante que o ambiente ainda mantém a mesma estrutura dos tempos de menino, quando se orgulhava ao ver o sortimento na venda do pai. Algum tempo depois, com a adolescência, viriam também as secas de 58 e 60, suficientes para devastar a colheita e arruinar os negócios. A mãe, a doença levou. Meses depois, a tristeza pela perda da companheira e o desespero das dívidas tiraram a vida do pai.

Mas se há tristeza por um lado, pelo outro, só alegria. Afinal de contas não é toda escritora célebre, imortal da Academia Brasileira de Letras, que adentra uma baiúca de cachaça e leva de 15 litros de uma única vez. O bodegueiro garante que Rachel de Queiroz era freguesa certa. Fazia questão de levar a aguardente empoeirada guardada no alto da prateleira. Nem pechinchava. Reconhecia no envelhecimento da bebida seu valor. Saia satisfeita com as garrafas na sacola para presentear amigos distantes. No entanto, a amiga não voltou mais porque a eternidade a levou, comenta consolado.

Quanto à rotina no pequeno comércio, se a saúde permitir, continua até a última dose. Não sabe ao exato a quantidade de estoque. Nem quanto tempo levará para acabar, talvez uns 30 anos ou mais. Por ironia, das mais de 20 variedades e os 48 anos contados na atividade, Airton nunca pôs um gole do aperitivo na boca. Nem faz questão, como também não quer um tostão do Governo. O ganho com a rara mercadoria é bom. O dobro do que cobram nos botequins.

Alex Pimentel
Colaborador

CENTRO-SUL
Mercearias resistem à modernidade

Iguatu. As bodegas fazem parte da vida das cidades do Interior. As vilas cresceram, alcançaram a condição de centro urbano, e com elas desenvolveram os tradicionais pontos de venda de secos e molhados. A modernização, a partir da década de 1970, trouxe os mercadinhos, mercantis, eliminando o balcão de atendimento ao freguês. Os novos tempos reduziram, mas não conseguiram acabar com as antigas mercearias que ainda resistem na periferia e na área rural.

Em Iguatu, principal pólo comercial da região Centro-Sul, as bodegas quase desapareceram. São poucas as que resistem às mudanças do tempo, na periferia e nas vilas rurais. “Até a década de 1970, havia muitas mercearias ou bodegas com seus tradicionais balcões”, observa o diretor da Câmara de Dirigentes Lojistas (CDL) de Iguatu, Valdeci Ferreira. “Depois, veio a modernização e surgiram os mercantis com sistema de auto-atendimento”.

A bodega ou mercearia, segundo o dicionário Aurélio, “é o local onde se vendem a retalho gêneros alimentícios, loja de secos e molhados, venda”. A principal característica é o balcão de madeira. Os antigos traziam, no interior dele, espécies de gavetas verticais para colocação dos cereais. É só levantar a tampa e retirar o produto para ser pesado na hora. Os mais comuns têm vidros para expor em prateleiras os artigos de perfumaria e papelaria.

Nas bodegas, o freguês não entra. É o dono do estabelecimento que recolhe os produtos solicitados pelos clientes. Outra característica é o surrado caderno, onde é feita a notação do que é vendido a crédito (fiado). Geralmente, o freguês tem caderneta onde também anota tudo para conferência posterior, devido ao pagamento.

A mercearia de Jeová Alves de Oliveira e Lídia Palácio Alves, em Iguatu, na esquina da Rua 15 de novembro com José de Alencar, resiste ao tempo. É um dos pontos mais antigos da cidade e remonta à década de 1950. Inicialmente, a bodega pertenceu ao então comerciante Lauro Barbosa Passos, depois a Pedro Juvenal Pontes (Pedro Romeiro), a Celso Damião, a José Uchoa e, nos últimos 20 anos, o negócio é administrado pelo casal Jeová e Lídia. “Temos uma boa freguesia e o fiado é anotado no caderno. A gente mora ao lado e passa o dia no trabalho”, explica ela.

O horário de expediente começa cedo, a partir das 6 horas e se estende até as 22 horas. Vende pão, leite, cereais, enlatados, artigos de perfumaria, de higiene pessoal, papelaria, corda, bebidas, ovos, bombons, doces e verdura, além de outros produtos. Não faltam cadeiras de tira de couro para os fregueses mais conhecidos sentarem e tirarem uma prosa.

O bodegueiro tem uma vida dedicada ao negócio. “Aqui, a gente é preso ao trabalho porque funciona direto”, explica Jeová. “Não temos funcionários”. Quando ele tem de sair para fazer compras ou resolver negócios e Lídia precisa dividir as tarefas de comerciante e dona de casa, o jeito é deixar o local sob a guarda de um cão, preso ao pé do balcão, que parece acostumado com o entra-e-sai dos fregueses. “Vamos continuar com o negócio até o dia que Deus quiser”, frisou.

Ao entrar numa bodega, a impressão que se tem é que o tempo parou. Mas com cuidado, percebe-se a presença da modernização. Na mercearia do casal, há um freezer horizontal para conservar as bebidas e outros produtos, sob refrigeração. “As mercearias antigas sequer tinham geladeiras”, observa o ex-presidente da Associação Comercial de Iguatu João Alves. “Nas bodegas, era mais comum por causa da venda de bebida a granel”. O estudante Gabriel Sales costuma comprar balas. Mais tarde, talvez, poderá ser um freguês antigo, com recordações da velha bodega, que também poderá estar em outras mãos.

BOM ATENDIMENTO
Jeito com o negócio garantiu boa clientela

Quixeramobim. No cruzamento das ruas Benjamim Barroso com Acrísio Mendes de Oliveira, no Centro de Quixeramobim, Miguel Eloy da Silva ainda mantém abertas as portas da Casa São Miguel. Naquela histórica esquina sertaneja, o comerciante de 86 anos continua atendendo sua freguesia. Logo após a 2ª Grande Guerra a boa época da atividade algodoeira lhe fez transformar a morada em ponto de venda. Era lucro certo. Tinha esposa e nove filhos para sustentar. De boa conversa e agradável entendimento, o jeito com o negócio lhe assegurou clientela fiel. Desde então, de 1948 para cá, mantém o costume bodegueiro. Tem freguesia certa, há mais de 30 anos. Revela o segredo: “Tratar todos com educação e alegria”.

Considerado por muitos o mais antigo bodegueiro em atividade no Ceará, Miguel Balbino, como é conhecido popularmente por conta do codinome herdado da avó, recorda que começou vendendo frutas e café. Logo o negócio expandiu com a comercialização de cereais e até bebidas. O sortimento atraiu mais fregueses e bom lucro. Mas fez questão de deixar claro para os “papudinhos” — consumidores de aguardente — que ali era e continua sendo um ambiente familiar. Fixou um cartaz na parede: “Nesta casa trabalha minha família, esperando pela sua”. Dos velhos fregueses ainda são poucos os que sabem ler, mas o respeito é mantido até hoje.

Apenas o hábito dos fregueses mudou. São poucos os que ainda compram a mercadoria no “retalho”, como ele mesmo diz. A quarta, instrumento utilizado para medir a quantidade de grãos no momento da venda - representava 1/4 de quilo - foi substituída pela balança de precisão. Mas na época em que o coronelismo e a miséria imperava no Sertão, a maioria só comprava o que ia comer no dia. E lá saía, meia quarta de arroz, de feijão, uma quarta de farinha, um tostão de rapadura, meio pão e até meia gillete. E muita coisa ainda saia fiado. Apesar da carência, a distinção e a alegria prevaleciam.

Honório Barbosa
Repórter