O sustento que vem do barro em Caridade

Escrito por Redação ,

Na comunidade de Pató, um grupo de ceramistas preserva a arte de confeccionar objetos de barro sem utilizar forno

Maria do Carmo é considerada um "patrimônio vivo" do artesanato local Fotos: Antº Carlos Alves

Caridade Na comunidade de Pató, neste Município, a arte da cerâmica, transmitida de geração a geração, se mantém viva com um saber intimamente ligado à história das famílias do povoado do Distrito de São Domingos. Mesmo assim, há uma indagação importante sobre o futuro dessa arte: até quando ela vai sobreviver?

Todos os dias é a mesma coreografia. Mãos cheias de energia deslizam para lá e para cá. Amassam, apertam, moldam, criam e recriam a arte. As pernas, por sua vez, se revezam entre atos de agachar, sentar e levantar repetidas vezes. O palco que acolhe esse bailado são as casas humildes da comunidade de Pató, distante 100 quilômetros de Fortaleza.

Ali, um grupo de ceramistas comandado por dona Maria do Carmo Teixeira Gomes, de 88 anos, preserva a arte de confeccionar sem utilizar forno. As panelas de argila de diversos tamanhos são queimadas somente com a temperatura do sol.

Sobrevivência

A produção de cerâmica, em Pató, permite a sobrevivência das famílias, organiza e regula as relações cotidianas, confere legitimidade social no interior da comunidade e dá lastro à vida familiar. Na cidade, todos os artesãos mostram-se conhecedores de uma arte peculiar, em que as mãos e a criatividade de cada um dá vida a novas formas, organizadas a partir do barro.

Extensão do corpo

Outro fator interessante é o destaque para a relação estabelecida quase orgânica, com o barro, que chama a atenção das pessoas. É como se ele fosse uma extensão do próprio corpo. Não há como eles se manterem privados desse contato feito diariamente e sem intermitências.

Embora cada artista fabrique suas peças individualmente, todos compartilham da última etapa da produção, a queima. O que se percebe é uma atividade coletiva realizada sob o calor emitido pelos raios solares.

Orgulho

Para a artesã Maria do Carmo, é um prazer ver a arte que segue gerações. É caso de sua filha Benedito do Carmo Gomes, que não deixa a tradição sem sua essência, e segue firme na modelagem do barro, transformando-o em arte. "Enquanto vida eu tiver, vou continuar na arte do barro", avisa dona Benedita.

A líder de todos, por consenso, é a carismática dona Maria do Carmo, que molda o barro desde os nove anos. Ela reúne em si valores e regras do grupo e funciona como catalisadora das demandas da comunidade.

A importância da anciã pode ser medida pela quantidade de seguidores em Pató. "Muitos ainda respeitam a dona Maria do Carmo. Ela é uma espécie de relíquia do artesanato da região", observa Arcelino Tavares, ex-prefeito de Caridade, que mora próximo à artesã e é um dos maiores clientes de Maria.

Atividade milenar

Quem visita a comunidade de Pató leva registrada em sua memória algumas palavras que juntas definem a essência das ceramistas do lugar. Altivez, vitalidade, capacidade, superação, inventividade e graça.

A arte do barro é uma atividade antiga, existente há mais de três mil anos antes de Cristo. No Brasil, é uma prática muito representativa para a cultura popular, é uma herança deixada pelos povos indígenas.

As índias faziam brinquedos de barro para os filhos e objetos domésticos como gamelas, tigelas, alguidares, potes e modelavam de acordo com a criatividade e necessidade. Pintavam as peças com tintas fortes e coloridas, inspiradas na natureza.

Espontaneidade

Essa profissão é uma produção espontânea que parte da sensibilidade e da ingenuidade do artesão. Em Caridade, os artesãos, antes anônimos de Pató, dão demonstração da coragem de tirar do barro a ideia que transforma a dignidade de cada um deles.

Maria do Carmo diz que sua grande alegria é ver, todos os dias, seus seguidores colocando em prática novos modelos, e o que é mais importante: tirando da lagoa (local da extração do barro na comunidade) as relações sociais e econômicas entre as famílias que preservam essa prática no lugar.

Em Pató, a produção de cerâmica permite a sobrevivência das famílias, organiza e regula as relações cotidianas e confere legitimidade social

Embora cada artista fabrique peças de forma individual, todos participam da última etapa da produção, a queima, realizada sob o sol

Inspiração

88

anos é a idade de dona Maria do Carmo Teixeira Gomes, matriarca do grupo de artesãos. Desde os nove anos, ela trabalha com barro e fez diversos seguidores

Conhecimento perpassa gerações

As peças são vendidas para a Central de Artesanato do Ceará, em Fortaleza. Lá, chamam a atenção dos turistas e ganham o Brasil e o mundo

Caridade Receber a bênção da matriarca do barro, Maria do Carmo, além de reconfortante, é um ritual diário entre crianças, jovens e adultos. "Todas as pessoas daqui tomam bênção à Maria do Carmo. Aqui, quem vive do barro, aprendeu com ela. Eu mesmo só sou artesão por causa dela e me sinto orgulhoso de ter sido seu aluno´´, conta José Bernardo da Silva, que deixou de lado a agricultura de subsistência para dedicar-se à cerâmica.

Maria do Carmo sintetiza a história, os desafios, as contradições vivenciadas por muitas mulheres da comunidade, que superam as dificuldades com a renda do artesanato. "Quem não seguiu a linha dos estudos, o jeito foi cair de corpo e alma no barro. Em Pató, muita gente tem orgulho de ser artesão", declara a jovem Maria Ioneide da Silva, de 11 anos, que já molda o barro.

Apreensão

Apesar de relatos que enchem de orgulho os ceramistas, o futuro é motivo de apreensão. O comércio já teve momentos mais pujantes. Hoje, as artesãs se queixam da diminuição do interesse em relação à cerâmica utilitária que produzem. A concorrência com peças fabricadas em outros centros do Estado enfraquece os negócios da região.

Pelo menos esse é o ponto de vista da agricultura Maria de Jesus Ferreira que, mesmo trabalhando com barro, ainda cuida da roça quando há inverno. A pesca e agricultura, encabeçadas pelos homens, não oferecem fartura como antigamente.

Reconhecimento

Apesar das dificuldades, as peças fabricadas pelo grupo de artesãos são vendidas para a Central de Artesanato do Ceará (Ceart), localizada em Fortaleza. De lá, ganham o Brasil e mundo. São compradas, principalmente, por turistas europeus, de países como Alemanha, Bélgica, Itália e França, que ficam encantados com a perfeição e beleza dos produtos.

Desde os invernos incertos, a atividade ficou prejudicada pela redução dos peixes, do milho e do feijão. Os homens ainda são minoria, somente dois, mas já demonstram as mesmas destrezas e satisfação das demais integrantes do grupo ceramistas.

Entretanto, mesmo sabendo que essa cultura milenar sobrevive sob ameaças do mundo tecnológico, os artesãos de Pató vão tocando a vida, acreditando no poder que a atividade tem em integrá-los e moldando o barro em defesa da sobrevivência.

A atividade gera orgulho entre a comunidade, mas artesãos vivem apreensivos quanto ao futuro dessa produção no lugar
Mais informações:

Secretaria de Ação Social do Município de Caridade Rua Coronel Francisco Linhares, 250, Centro
Telefone: (85) 9194.3347
 
ANTONIO CARLOS ALVES
COLABORADOR