Covid-19 já fez vítimas entre seis dos sete povos tradicionais do CE

Já foram registradas mortes entre indígenas, pescadores artesanais, povos de terreiro, quilombolas, ciganos e extrativistas. Os ribeirinhos não têm registro de óbitos, mas já contabilizam casos confirmados do novo coronavírus

Escrito por Redação , regiao@svm.com.br
Legenda: Povos indígenas cearenses estão entre os mais vulneráveis às infecções pela Covid-19
Foto: Fabiane de Paula

A Covid-19 já atingiu todas as comunidades tradicionais do Ceará e fez vítimas em seis dos sete povos. Das mais de 14,5 mil famílias ribeirinhas, extrativistas, indígenas, quilombolas, ciganas, pescadores artesanais e povos de terreiro que vivem no Estado, a reportagem só não confirmou mortes entre os ribeirinhos. As informações foram repassadas por lideranças, entidades representativas e órgãos oficiais.

No contexto da pandemia, o avanço do vírus nas comunidades, que vivem dos recursos naturais de seus territórios, preocupa pelas vulnerabilidades históricas presentes. Entidades e lideranças cobram medidas mais específicas para garantir a vida destas populações.

A população indígena apresenta a situação mais preocupante. Segundo a Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), são mais de 170 casos confirmados da doença, o que representa mais de 50% de todos os infectados do Nordeste. Além disso, segundo a Sesai, o Estado já registra quatro óbitos em terras indígenas, sendo três na Grande Fortaleza e um no interior do Estado.

Veja:

Caucaia e Itarema são os municípios que concentram o maior número de infectados. "Tivemos muitas dificuldades de fazer o povo entender. Quando começou a atingir a aldeia, foi caindo a ficha", relata Fernando Tremembé, presidente do conselho local de saúde do povo Tremembé.

O professor indígena Itamar Tremembé avalia que a chegada da doença na aldeia teve impacto na saúde psicológica dos indígenas. "A situação é desesperadora. Desde dos anos 1500, lidamos com doenças, mas essa está machucando demais", relata. A liderança conta que um psicólogo passou a atuar na aldeia.

"Devido a esta vulnerabilidade, todas as questões que a pandemia coloca em cena se agravam ainda mais", avalia o antropólogo da Universidade Federal do Ceará, Kleyton Rattes. Ele pontua que a "morosidade na demarcação de terras" dificulta o isolamento.

"O fato de não ter terra demarcada é um dos principais fatores. Alguns povos estão fazendo barreiras sanitárias, mas sem apoio. Sem ter a terra demarcada, é difícil ter controle sobre o território".

Atualmente, apenas um dos 15 territórios indígenas no Ceará está com processo de demarcação finalizado - o dos Tremembés.

Avanço Preocupante 

Já entre os cerca de 15 mil quilombolas que vivem em 87 localidades rurais do Estado, a Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras, Rurais e Quilombolas (Conaq) já contabilizou um óbito causado pela doença. A vítima foi um idoso de 85 anos de idade.

"Hoje temos sete territórios quilombolas com casos suspeitos ou confirmados", relata Cristina Quilombola, coordenadora nacional da Conaq e vice-coordenadora da Coordenação Estadual das Comunidades Quilombolas do Ceará.

"A pandemia aumentou a vulnerabilidade social dentro dos territórios quilombolas", ressalta a representante. As principais reivindicações, segundo ela, são pela aplicação de "testes rápidos nas famílias quilombolas" e maior "assistência na saúde", além de fortalecimento na garantia da segurança alimentar.

A mesma realidade reside nos povos de terreiros. Pelo menos 10 membros já foram vítimas da Covid-19, segundo Ogan do ILE Axé Omindá, presidente do Conselho Estadual de Igualdade Racial. Segundo ele, são pelo menos 20 infectados em Fortaleza. No interior, há dificuldade para fazer o acompanhamento.

Já entre os ciganos, são duas mortes. Uma das reivindicações é a desinfecção de bairros com comunidades ciganas em Sobral e Crateús, onde ocorreram os casos mais graves. Além disso, a insegurança alimentar das comunidades preocupa. "A maioria é de autônomos. Se o cigano não morrer de Covid-19, morre de fome, de depressão. Já há um histórico", lamenta Rogério Ribeiro, Instituto Povo Cigano do Brasil (ICB).

Retorno preocupante

Entre os cerca de seis mil pescadores artesanais que atuam no Ceará, lideranças da categoria demonstram preocupação com o quadro atual. Com a liberação da pesca da lagosta, que começou no último dia 1º, os trabalhadores estão voltando à atividade. Os barcos passam de 10 a 15 dias no mar, com tripulação de cinco, seis homens.

"Não há um exame de temperatura e aplicação de teste rápido nos pescadores antes de entrarem no mar", observa João Cláudio Rodrigues, presidente da Cooperativa dos Armadores da Pesca do Ceará (Coopace).

 

Segundo a entidade, pelo menos uma morte por Covid-19 já foi registrada. "Um pescador em Acaraú morreu ainda no barco, quando tentava retornar, um dia depois, após passar mal", lamenta o representante.

Em estados como Santa Catarina e Bahia, foram criados protocolos para funcionamento da atividade. No primeiro, por exemplo, os pescadores devem sair imediatamente da praia após a pescaria. No Ceará, essas medidas ainda não foram impostas. O presidente da Federação dos Pescadores Artesanais do Ceará, Raimundo Félix, afirma que há vários dias vem alertando para a ausência de políticas públicas de saúde voltadas aos pescadores.

"A nossa preocupação é grande. Os homens só deveriam embarcar depois de examinados e testados."

O risco do contágio na zona costeira é visto como "preocupante" por Andréa Camurça, assistente social e assessora de campo do Instituto Terramar. "A chegada do novo coronavírus aos territórios vem junto a recente crise ambiental do derramamento do petróleo", ressalta, acrescentando que na zona costeira existem comunidades tradicionais "que enfrentam cotidianamente conflitos fundiários e ambientais". "A pandemia escancara uma situação de desigualdade que já existe".

O Terramar já acompanha seis municípios do litoral cearense, porém, ampliou essa atuação. "Passamos a monitorar a questão da segurança alimentar e as ações desenvolvidas a nível local para conter o avanço da doença", pontua Camurça.

Segundo levantamento com base em informações das lideranças comunitárias e divulgadas pelas Prefeituras, já são 31 casos confirmados em nove comunidades de pescadores, marisqueiras e catadores de caranguejo. Também estão inclusas comunidades ribeirinhas, único povo tradicional sem registro de óbitos. Já entre os extrativistas, há uma morte confirmada, a de uma senhora de 65 anos, em Amontada.

Órgãos demandados

A reportagem tentou contato com todos os órgãos citados - prefeituras de Beberibe e Itarema, Secretarias de Proteção Social (SPS) e Especial da Saúde Indígena, Ministério do Meio Ambiente, e Secretarias da Saúde (Sesa) e do Desenvolvimento Agrário (SDA), que acompanham comunidades quilombolas.

A SDA destacou, em nota, que inclui comunidades quilombolas em projetos produtivos em 41 municípios. Ressaltou ainda que investe na implantação de abastecimento de água para 828 famílias quilombolas através dos projetos Paulo Freire e São José. "Em obediência aos decretos de calamidade pública e emergência sanitária, a Secretaria presta assistência técnica remota", completa.

Questionada sobre as medidas adotadas especificamente para cada um dos sete povos tradicionais do Ceará e se há um plano de testagem específico, a Sesa limitou-se informar que "recebeu a notificação da Defensoria Pública do Estado e foi respondida dentro do prazo". Os outros órgãos não responderam até o fechamento desta edição.

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