Covid-19: Óbito alerta para vulnerabilidade de quilombos no Ceará
Primeira morte no Estado foi confirmada pela Conaq, no entanto, organização não tem dados detalhados de contaminados, o que dificulta o mapeamento da doença. Especialistas alertam para as dificuldades históricas enfrentadas
O alcance do novo coronavírus a comunidades mais vulneráveis no Estado - como já ocorrera aos indígenas - foi ampliado com o registro da primeira morte pela doença entre quilombolas cearenses, como aponta a Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras, Rurais e Quilombolas (Conaq), em boletim divulgado no fim dessa semana. A perda acompanha o receio do vírus se propagar com maior facilidade devido à falta de infraestrutura básica nas comunidades. No Estado, 15 mil quilombolas vivem em 86 localidades rurais, segundo a Secretaria do Desenvolvimento Agrário (SDA).
Cada liderança regional atualiza as informações da doença nos quilombos para o levantamento feito pelo Conaq, mas ainda não há um detalhamento das infecções por localidade. Além do Ceará, outros sete estados fazem parte do monitoramento no qual a organização contabiliza 32 óbitos, 173 casos confirmados, duas mortes em investigação e 36 pacientes aguardando o resultado da detecção do novo coronavírus.
No Ceará, um quilombola de 85 anos teve a morte por Covid-19 registrada pela Conaq. "A comunidade ficou muito abalada porque, para nós, não é só um idoso. São bibliotecas vivas e ambulantes, fontes de memória e de resistência", reflete a representante da Coordenação Estadual de Comunidades Quilombolas (Cerquice), Ana Eugênio.
As comunidades de Alto Alegre, em Horizonte, de Batoque, em Pacujá, e no município de Tururu, já registram casos suspeitos e confirmados de infecção pelo Sars-CoV-2, como lista. "Além do nosso povo estar muito distante desses espaços de acesso à saúde, nós não temos a posse de nossos territórios e isso dificulta porque as casas ficam muito próximas. Na maioria das famílias, moram diversas pessoas na mesma casa pelo fato de não termos o território nas nossas mãos", pontua Ana.
Anastácio Queiroz, infectologista e professor da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Ceará (UFC), ressalta que as condições observadas nas comunidades tendem a facilitar a propagação do vírus. "Como nós sabemos, a maioria das pessoas tem uma doença autolimitada. No entanto, tem a população com a doença mais grave e que pode ser muito prejudicada, inclusive, com risco de óbitos porque, às vezes, essas comunidades demoram a receber assistência médica", pondera o especialista.
As dificuldades para manter o isolamento social nos quilombos aumenta a preocupação sobre a disseminação da doença. "Nós não temos imunidade e estamos fazendo todo esse distanciamento apenas para protelar o momento que seremos infectados. Quando voltarmos ao movimento normal, nós teremos contato com pessoas que, eventualmente, possam estar infectadas", acrescentou Anastácio.
Enfrentamento
Ana Eugênio percebe a falta de um recurso fundamental para evitar o contágio. "Quanto à água, é bem complicado. Um dos cuidados é a lavagem das mãos. Sendo que, na maioria dos nossos territórios, nem água tem. A água que nós temos, como no Sítio Verde, em Quixadá, é um pequeno reservatório de água, uma cisterna", relata.
Em meio aos desafios ampliados com a Covid-19, a força feminina atua com destaque para enfrentar a doença, como analisa a representante. "As mulheres quilombolas estão cada vez mais protagonistas nesse período de pandemia e estão sobrecarregadas porque são elas que cuidam e, como todo mundo fica em casa, o trabalho aumenta muito", observa.
Sobre o impacto na rotina, Ana Eugênia ressalta a quebra no convívio comunitário como um dos maiores desafios durante a pandemia. "Nossa vida e nossa luta são movidas por ações coletivas e é muito difícil esse isolamento porque nós estamos acostumados a ir para a calçada, visitar, partilhar, fazer a debulha de feijão. Mudar isso de uma hora para outra é impactante".
Contexto
"Se para as pessoas que não são quilombolas a situação está difícil, imagine no quilombo que já vem de uma fragilidade grande na construção, de perseguição, de exclusão, de não ter direito a própria terra que moram", analisa Marlene Santos, doutoranda em educação pela UFC, pesquisadora de quilombos há 12 anos e que já percorreu mais de 20 comunidades cearenses.
Ela observa que o atendimento onde, por vezes, falta médicos, se agrava com o aumento da demanda em decorrência da pandemia. "As (comunidades) que são mais próximas de Fortaleza, como Caucaia, Horizonte e Pacajús, ainda têm, digamos, um acesso ou fica menos difícil. Agora as que estão no Sertão dos Inhamuns, outros lugares mais distantes, a situação é bem pior em relação a ter médico, saneamento básico, água encanada e às vezes até de moradia mesmo", analisa.
Medidas
Sobre as ações específicas para as comunidades quilombolas, a Secretaria da Proteção Social, Justiça, Cidadania, Mulheres e Direitos Humanos (SPS), em nota, informou que viabiliza a doação de cestas básicas aos grupos necessitados. "Enquanto isso, estão sendo articuladas doações da iniciativa privada e de outros programas do Estado para atender necessidades imediatas. Na última semana, houve distribuição de 286 cestas que contemplou comunidades quilombolas", pontua.
Com apoio da Secretaria de Desenvolvimento Agrário, parte das comunidades quilombolas fabrica máscaras de tecido e recebe orientações sobre o distanciamento social como em Aracati, Baturité, Caucaia, Morrinhos, Pacujá e Porteiras. Na comunidade Córrego dos Iús, em Acaraú, o grupo resolveu adotar uma barreira sanitária.