PEC da Anistia: o que está em jogo no maior perdão a irregularidades de partidos políticos
Fraudes à cota de gênero, descumprimento de investimento mínimo em candidaturas femininas e prestação de contas reprovadas estão entre os itens que podem ser perdoados pela PEC
O avanço acelerado de uma nova PEC da Anistia (9/2023) para partidos políticos tem colocado em xeque garantias legais tão duramente implementadas para dar espaço à participação de mulheres em locais de poder. Substitutivo apresentado pelo relator da matéria na Comissão Especial da Câmara dos Deputados criada para discutir o assunto alargou a absolvição às agremiações que descumpriram a legislação eleitoral em relação às candidaturas femininas, tornando a proposta o maior perdão que pode ser concedido a irregularidades partidárias cometidas nas eleições desde a redemocratização.
Uma reunião para deliberar o parecer com substitutivo apresentado pelo relator, deputado federal Antonio Carlos Rodrigues (PL-SP), está prevista para ocorrer esta semana. O texto da proposta de emenda à Constituição, que já era polêmico, ficou ainda mais após a análise de Antônio Carlos Rodrigues, que acrescentou itens que não estavam previstos na matéria e já tinham sido retirados da minirreforma eleitoral.
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Além de anular qualquer possibilidade de punição aos partidos que não cumpriram o investimento mínimo proporcional em candidaturas de pretos e pardos e de mulheres nas eleições de 2022, o substitutivo também veta qualquer sanção que resulte em perda de mandato ou inelegibilidade de candidatos eleitos em chapas com candidaturas femininas fictícias, ou seja, que fraudaram a cota de gênero. Este último item fica condicionado aos casos em que a decisão da Justiça Eleitoral de cassar a chapa inteira — sanção prevista no Código Eleitoral para a fraude à cota de gênero — diminua o número de candidatas eleitas. O ponto estava previsto na minirreforma eleitoral, mas foi retirado e, agora, incluído na PEC da Anistia.
É o valor que a organização Transparência Brasil projeta de perdão de multas aplicadas aos partidos
Nesta terça-feira (19), diante da pressão de organizações da sociedade civil, o relator apresentou um novo substitutivo acrescentando uma cota de gênero nas cadeiras da Câmara dos Deputados, Assembleias Legislativas e Câmaras Municipais. O novo texto manteve todos os itens já colocados anteriormente, sendo acrescentada apenas a garantia de "20% das cadeiras" nas Casas Legislativas às mulheres e regras de transição. O acréscimo é uma forma de tentar minimizar os impactos da anistia.
Para as eleições municipais de 2024, o substitutivo propõe assegurar 15% das vagas nas Câmaras Municipais para mulheres.
Todavia, para colocar a cota de gênero nas Casas Parlamentares, o texto retira a obrigatoriedade dos partidos lançarem, no mínimo, 30% de candidaturas femininas e coloca apenas a necessidade de "reservar" o percentual mínimo a um dos sexos.
Como regra para preencher as vagas da cota nas Casas, o substitutivo prevê que seja utilizado, primeiramente, o cálculo das "sobras". Caso os candidatos dos partidos mais votados na distribuição das sobras sejam homens, a candidata mais votada da legenda (que ainda não está como eleita) fica com a vaga, mesmo que tenham obtidos menos votos do que o outro quadro. A única condição é que ela tenha alcançado pelo menos 10% do quociente eleitoral.
Se a legenda que ficou com a vaga não tiver nenhuma candidata mulher dentro dos critérios, a vaga será remanejada para o partido que ficou em segundo lugar das sobras, por exemplo, e seguirá os mesmos critérios até o preenchimento dos 20%.
"Caso tenham sido efetuadas todas as substituições nas vagas das sobras e ainda assim o percentual mínimo de cadeiras não tiver sido alcançado, as substituições passarão a ocorrer nas vagas distribuídas pelo quociente partidário, iniciando-se pelo partido cujo candidato tenha obtido a menor votação nominal, o qual será substituído pela mulher mais votada e não eleita do mesmo partido; as substituições seguintes, se necessárias, seguirão a ordem decrescente das votações nominais dos candidatos do sexo masculino", diz trecho do último substitutivo apresentado pelo deputado Antonio Carlos Rodrigues.
Impacto no Ceará
A vedação à perda do mandato pelo lançamento de candidaturas fictícias impacta diretamente na cassação da chapa de deputados estaduais do PL Ceará em 2022, devido à comprovação de fraude à cota de gênero.
A decisão do Tribunal Regional Eleitoral do Ceará (TRE-CE), de maio deste ano, afeta os mandatos dos quatro deputados eleitos pela legenda, que podem ser perdidos caso a sentença seja mantida pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Todavia, como duas mulheres foram eleitas pela agremiação, o número de representantes femininas no Parlamento Estadual poderia diminuir com a cassação definitiva — motivo pelo qual a anistia se encaixaria.
Por meio de nota, Adelita Monteiro, primeira autora da denúncia ao TRE-CE sobre candidaturas fictícias lançadas pelo PL Ceará em 2022, lamentou a tramitação da PEC da Anistia, que pode ser votada em breve na Câmara dos Deputado. No documento, ela ressalta que dois deputados federais cearenses favoráveis à proposta possuem relação pessoal com estaduais eleitos cassados pelo TRE-CE. É o caso do deputado André Fernandes (PL), que é filho do deputado estadual Pastor Alcides (PL), e do deputado Dr. Jaziel (PL), que é esposo da deputada estadual Dra. Silvana (PL).
“Dois destes políticos possuem relação pessoal com deputados federais do PL que estão na Câmara Federal. Ter o perdão desta questão, que é considerado um avanço no processo eleitoral, que é a cota para candidatas mulheres, é um grande retrocesso”, defende Adelita Monteiro em nota.
Os dois deputados federais citados com interesses pessoais na proposta foram procurados, mas não se pronunciaram até o momento.
Principais pontos da PEC da Anistia
- Perdoar os partidos por não terem feito os repasses mínimos de recursos do Fundo Eleitoral e Partidário para candidaturas de pessoas pretas e pardas e para mulheres;
- Anular sanções que levem à cassação de mandatos ou inelegibilidade de candidatos ou candidatos eleitos por partidos que não cumpriram ou fraudaram a cota de gênero, desde que a decisão implique em redução do número de candidatas eleitas
- Perdoar qualquer punição aos partidos, como multa, devolução ou suspensão de recursos, por irregularidades na prestação de contas anteriores à PEC da Anistia;
- Reduzir recursos para candidatos pretos e pardo ao mínimo de 20% da verba dos fundos eleitoral e partidário, sem necessidade de aplicação proporcional;
- Limitar a 10% o valor que pode ser descontado mensalmente do Fundo Partidário para pagamento de sanções aplicadas pela Justiça Eleitoral;
- Cota para mulheres de 20% das vagas na Câmara dos Deputados, Assembleias Legislativas e Câmaras Municipais — sendo 15% na eleição de 2024, como regra de transição.
Descumprimentos liberados
Professora da Universidade Federal de Alagoas (Ufal) e pesquisadora do Observatório das eleições (INCT/UFMG), Luciana Santana explica que a obrigatoriedade de investimentos para candidaturas femininas, válida desde as eleições de 2018, até hoje não foi cumprida, já que os descumprimentos vêm sendo "liberados" por anistia. Ela ressalta que a lei, aprovada pelos próprios congressistas, é reiteradamente desrespeitada sem qualquer punição, porque os próprios congressistas voltam a aprovar perdões aos partidos.
"Os partidos políticos vêm descumprindo de forma reiterada vários dispositivos da lei eleitoral. Os principais são relacionados às candidaturas femininas, distribuição de recursos, cumprimento de cota. Essa anistia é para regulamentar a não necessidade de cumprimento da lei, é uma forma de os partidos manterem um status quo que eles têm hoje. As pessoas que tomam as decisões por esses partidos geralmente são brancas e não consideram a diversidade importante, apesar de às vezes tentarem não demonstrar isso"
Outra PEC da Anistia (18/2021) foi promulgada em abril do ano passado para sustar o pagamento de multas ou suspensão do Fundo Eleitoral de partidos que não tinham cumprido os investimentos mínimos proporcionais para candidaturas femininas até as eleições de 2020 — sendo que a obrigatoriedade começou a valer em 2018. A medida previa ainda que os recursos não aplicados para difusão e promoção da participação feminina na política (de no mínimo 5%, conforme prevê a legislação) deveriam ser utilizados na eleição subsequente — ou seja, na eleição de outubro de 2022.
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Agora, uma nova PEC quer conceder perdão para as irregularidades feitas na eleição do ano passado.
Pela lei eleitoral, pelo menos 30% dos recursos do Fundo Eleitoral devem ser destinados às candidaturas de mulheres em chapas proporcionais. O valor deve aumentar conforme a proporcionalidade delas na chapa, ou seja, se forem 50% dos candidatos, devem receber 50% dos recursos. Além disso, a destinação de recursos do Fundo Eleitoral e do Fundo Partidário em postulações de pessoas pretas e pardas, independentemente do gênero, deve ser proporcional ao concedido para as candidaturas de brancos.
Os dois itens são alvos da PEC da Anistia. No caso, o texto cria uma cota racial de no mínimo 20%, retirando a proporcionalidade.
"Isso mantém a situação muito prejudicial para a representação de mulheres na Política, principalmente no Legislativo. Vem na contramão dos avanços que tem tido — muito mais por pressão do Judiciário, do que efetivamente do Legislativo. É um impacto muito ruim, porque se a gente tem uma previsão de que em 2050 teria próximo de uma equidade, dificilmente a gente tem possibilidade de uma equidade na disputa eleitoral em um curto ou médio espaço de tempo", avalia Luciana.
Tramitação
Caso a PEC da Anistia seja aprovada, o quadro de deputados eleitos (e de suplentes) pelo PL no Ceará estaria mantido, sem nenhuma punição ao partido pela fraude à cota de gênero, por exemplo. Já aqueles casos que ainda não foram punidos, permaneceriam sem punição.
Para valer, a PEC precisa ser aprovada na Comissão Especial para depois ir à votação no plenário da Câmara dos Deputado. Lá, ela precisa ser apreciada em dois turnos e receber, pelo menos, 308 votos favoráveis em cada votação. Depois disso, a medida pode avançar para o Senado, onde também precisa passar por duas votações.
Para Carlos Zacarias, professor do Departamento do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal da Bahia (UFBA), o apoio de praticamente todos os partidos à matéria já demonstra a boa adesão que ela deve ter quando for colocada em votação no plenário. As únicas legendas que não apoiaram a PEC foram o Psol e o Novo.
"Muitos partidos tinham dívidas por descumprimento dos investimentos para a cota de gênero, e foi da direita à esquerda, com exclusão do Psol e Novo, todos os partidos entraram em um acordo para poder se autoanistiarem para deixar de pagar uma infração que cometeram"
Entre os cearenses que assinaram o projeto da PEC, estão o líder do Governo Lula, deputado José Guimarães (PT), e o bolsonarista André Fernandes (PL), por exemplo.
Cearenses que assinaram a PEC da Anistia
- Dep. Luiz Gastão (PSD/CE)
- Dep. Domingos Neto (PSD/CE)
- Dep. André Fernandes (PL/CE)
- Dep. José Airton Félix Cirilo (PT/CE) - Federação PT-PCdoB-PV
- Dep. Matheus Noronha (PL/CE)
- Dep. José Guimarães (PT/CE) - Federação PT-PCdoB-PV
- Dep. Moses Rodrigues (UNIÃO/CE)
- Dep. André Figueiredo (PDT/CE)
Impacto financeiro
A boa adesão é fruto de um benefício em causa própria, já que as sanções impostas pela Justiça Eleitoral podem impactar na distribuição do Fundo Eleitoral, também conhecido como Fundão, e do Fundo Partidário nas eleições de 2024 para as legendas, como explica Zacarias. Como precisam do dinheiro para lançar as candidaturas, a diminuição dos recursos ou retenção da verba para pagamento de multas poderia diminuir os investimentos das legendas.
"A autoanistia é justamente por isso (dinheiro). Eles estão se anistiando porque teriam que pagar multa pesada, mandatos cassados, é um dano gigantesco, diminuiria os recursos do Fundo Partidário e do Fundo Eleitoral. Os partidos estão lutando por dinheiro", acrescenta o professor.
É o valor do Fundo Eleitoral que os líderes no Congresso querem para as eleições de 2024
Para as eleições municipais do ano que vem, líderes no Congresso Nacional têm pressionado para que o Fundão, principal financiador de campanha, atinja a cifra de R$ 5 bilhões. O valor da verba pública que será disponibilizado para custear candidaturas deve vir discriminado no projeto de Lei Orçamentária Anual (LOA) de 2024, que deve ser votado no Congresso no fim do ano. Se o valor for alcançado, será o maior fundão da história.
Na eleição de 2022, o valo do Fundo Eleitoral foi de R$ 4,9 bilhões.
Em carta aberta, a Transparência Brasil e outras 49 organizações se posicionaram contra a medida por beneficiar não só os partidos que não cumpriram ou fraudaram a cota de gênero na eleição do ano passado, mas também os que descumpriram em pleitos anteriores e ainda não tiveram suas prestações de contas julgadas — já que o prazo para a Justiça Eleitoral julgar é de até cinco anos.
O impacto financeiro, segundo a carta, é de quase R$ 23 bilhões.
"Caso sejam consideradas apenas as contas pendentes de julgamento, o valor atingido pela anistia pode chegar a quase R$ 23 (vinte e três) bilhões (R$ 22.759.383.139,18), correspondentes à soma dos valores de Fundo Partidário e total de receitas eleitorais informadas pelos diretórios nacionais dos partidos no período 2018 a 2023, corrigida pelo Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo - IPCA", informa a carta contra a PEC da Anistia.
Além do perdão para os casos já pendentes de julgamento até então, a PEC da Anistia ainda prevê que, após a promulgação da medida, somente 10% montante dos recursos do Fundo Partidário poderá ser destinado ao pagamento de sanções pecuniárias. Ou seja, as punições aplicadas pela Justiça Eleitoral não poderiam ser maiores do que 10% da mensalidade da cota do Fundo Partidário da agremiação.