As fraudes à cota de gênero nas eleições e a falsa empatia com as mulheres

Candidaturas fictícias de mulheres já atingiram pelo menos 10 Câmaras Municipais no Ceará

Legenda: Partidos são obrigados a cumprir um mínimo de 30% em representação de cada gênero
Foto: Divulgação/TRE-RN

O ministro do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) Kassio Nunes Marques proferiu voto, nesta semana, em um caso de fraude à cota de gênero no Ceará, no qual pedia "empatia" às mulheres, que, após se filiarem a um partido para disputar uma campanha eleitoral, sofreriam "um completo abandono", "não sabem percorrer esse caminho". A tal empatia, no entanto, não o mobilizou a votar pela punição ao partido, pelo contrário. Com quem tem sido, então, essa "empatia" do discurso?

No Ceará, pelo menos dez câmaras municipais tiveram (ou estão prestes a ter) a composição alterada, desde 2020, por fraude à cota de gênero. E, após as eleições de 2022, uma chapa de deputados estaduais ameaça ser cassada pela primeira vez.

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O último caso foi registrado no dia 27 de abril, quando o Tribunal Superior Eleitoral decidiu, por 4 votos a 3, cassar uma chapa do Cidadania na Câmara Municipal de Itaiçaba, no Ceará. O partido tem um representante na Câmara, o vereador José Ribamar Barros. 

Nesse mesmo mês, o TSE já havia reconhecido fraude nas candidaturas do PSB para o cargo de vereador em Tururu. Desses casos recentes, ainda não houve alteração na composição nas casas legislativas.

Os episódios repetem as mesmas circunstâncias que atestam a fraude: votação nula ou inexpressiva, ausência de campanha nas redes sociais, ausência de material impresso de campanha, registro de atividades de campanha em prol de familiares candidatos a vereador do gênero masculino... 

Fraudes à cota de gênero já foram confirmadas pela Justiça Eleitoral e impactaram a composição das Câmaras Municipais em Croatá, Nova Russas, Potengi, Santana do Acaraú, Senador Pompeu, Alto Santo, Santana do Cariri e Quixadá.

As punições têm sido a nulidade dos votos recebidos pela legenda, a cassação do Demonstrativo de Regularidade dos Atos Partidários (DRAP) e dos diplomas e registros a ele vinculados, com o consequente recálculo dos quocientes eleitoral e partidário. Também é declarada a inelegibilidade das candidatas envolvidas na fraude.

O que diz a lei

Desde 1997, com a Lei das Eleições (Lei nº 9.504/1997), partidos e coligações devem respeitar o percentual mínimo de 30% e o máximo de 70% para "candidaturas de cada sexo". Ainda que a lei não especifique um gênero a ser atendido com o mínimo, o que vemos, desde então, é o mínimo ser tratado com um teto para candidaturas especificamente de mulheres. Até hoje, não houve nenhum partido tendo problemas em cumprir um mínimo de candidaturas masculinas.

Em 2020, a Emenda Constitucional nº 97/2017 pôs fim às coligações e atingiu diretamente um escudo tradicional dos partidos para evitar fomentar a candidatura de mulheres: os 30% não precisavam ser atendidos por cada partido, mas pela soma de todos juntos na coligação. 

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Mesmo com esse benefício, já se registrava fraude à cota de gênero. Nos poucos casos que vinham à tona, era comum as vítimas serem registradas sem consentimento e descobrirem a fraude quando se viam barradas de assumir vaga de concurso ou se candidatar em um processo eleitoral por vontade própria, por terem pendência na Justiça.

Na prática, desde as eleições de 2020, quando cada partido teve de atender ao mínimo de candidaturas de cada gênero, o que se tem visto é uma avalanche de fraudes sendo descobertas.

A maior anistia da história

Outra medida que deveria ser atendida desde 2018 e também tem sido seguidamente burlada é a que obriga os partidos a reservar pelo menos 30% dos recursos do Fundo Especial de Financiamento de Campanha, o Fundo Eleitoral, e do tempo destinado à propaganda eleitoral gratuita no rádio e na televisão para candidatas.

Nos últimos dias, o Câmara dos Deputados tem tratado com celeridade uma proposta de emenda à Constituição (PEC 09/2023) que promove anistia geral para irregularidades cometidas pelos partidos políticos nas últimas eleições. Na terça-feira (25), parlamentares contrários à PEC fizeram manobra para impedir o avanço da proposta na Comissão de Constituição e Justiça.

A PEC livra os partidos de serem penalizados por qualquer irregularidade nas prestações de contas referentes ao uso dos fundos partidário e eleitoral até a promulgação do texto. Eles serão perdoados, inclusive, pelo descumprimento da distribuição da cota mínima de recursos para candidaturas de negros e mulheres nas eleições de 2022 para trás. Seria a terceira eleição com perdão a fraudes partidárias.

Um dos trechos permite também que partidos possam receber doações de pessoas jurídicas para pagar dívidas contraídas até agosto de 2015. Um jabuti no meio de uma discussão que nada tem a ver com isso.

Dirigentes partidários

Principais responsáveis pelo lobby da anistia, os dirigentes partidários frequentemente ficam à margem do debate público sobre as fraudes. 

O TSE tem discutido a possibilidade de as fraudes à cota de gênero - para a qual não tem perdão - serem declarados inelegíveis também. Hoje, apenas as mulheres lançadas de forma fraudulenta ficam inelegíveis.

É difícil imaginar fraude à cota de gênero sem a coparticipação daqueles que estão à frente dos partidos. 

E é nesse ponto que retomo a pergunta inicial desta coluna. A Justiça brasileira está tendo empatia com quem? 

As sucessivas anistias a partidos por fraudes às regras que tratam de gênero nas campanhas enfraquecem a capacidade de fiscalização e representação política, além de consolidarem a impunidade ao descumprimento de preceitos legais. É uma falta de compromisso com as mulheres e outras minorias.

"Precisamos de respeito"

Como disse a ministra Cármen Lúcia em resposta ao ministro Nunes Marques, "Não somos coitadas. Não precisamos de empatia, precisamos de respeito".

A fraude começa muito antes do registro de uma candidatura feminina fictícia. Começa na tolerância da Justiça e da legislação brasileira, por tantos anos, à ausência de candidaturas competitivas de mulheres, na vista grossa dada aos dirigentes partidários e na falsa normalidade da aprovação de anistias a crimes. 

Não há como falar em empatia a mulheres quando se trata de violências políticas e econômicas de gênero.