Prevalência de homens em espaços públicos de poder não é mero acaso

São menos de três décadas desde que a legislação brasileira passou a olhar para a representação das mulheres na política, ainda assim, o caminho tem sido de reveses, como a atual minirreforma e a PEC da Anistia

Legenda: Protesto de deputadas na Câmara, em 2015, durante discussão de uma das frequentes reformas eleitorais no País
Foto: Zeca Ribeiro / Câmara dos Deputados

Os últimos dias na política brasileira foram difíceis para a participação de mulheres nos espaços públicos de poder. A aprovação da minirreforma eleitoral, o avanço da PEC da Anistia e a novela que se estende sobre criar uma reserva de vagas para mulheres nas casas legislativas seguem mostrando que defender a paridade de gênero fica bem no discurso e rende até voto, mas está longe de ser um compromisso de Estado. Em um cenário em que praticamente todos os partidos se unem para perdoar infrações eleitorais, flexibilizar o controle da Justiça sobre verba partidária e minar garantias legislativas que buscam a equidade de gênero e de raça, resta à sociedade observar boquiaberta o retrocesso operado pela política de forma alheia a qualquer chance de reação social.  

Não à toa o Brasil segue no rodapé de levantamentos internacionais de participação feminina na política. Três discussões recentes no Congresso Nacional são ilustradoras do quão longe o País está da igualdade entre homens e mulheres.  

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A participação política feminina no Brasil passou a constar no Código Eleitoral em 1932. A representação política das mulheres, no entanto, demorou bem mais a ser enfrentada e não tem ainda nem três décadas de existência, desde 1995. De lá para cá, falou-se em "reservar" o mínimo de 30% e o máximo de 70% de vagas no partido para candidaturas de cada sexo. Depois, avançou-se para a obrigatoriedade de "preencher" essas vagas. Tratou-se ainda da destinação de recursos para programas de incentivo à participação feminina na política, da reserva de tempo de propaganda eleitoral e do repasse de verba de campanha.  

O que parece ser uma crescente, no entanto, tem sido alvo de reveses no Congresso Nacional, especialmente na Câmara dos Deputados.   

O episódio dessa semana foi a aprovação da minirreforma eleitoral que, dentre alterações em várias temáticas caras aos partidos – como a distribuição de sobras e as mudanças nas regras de inelegibilidade – alterou pontos sensíveis em relação à presença de mulheres e negros na política. 

Ressalto a autorização para que recursos destinados às campanhas femininas sejam usados em despesas comuns com candidatos homens e também em despesas coletivas, desde que haja benefício para mulheres e pessoas negras. Como atestar esse benefício? Disso, a lei não fala. Mas é nítido o interesse em tornar letra morta a regra que obriga que parte dos recursos sejam usados apenas por mulheres. 

Outro ponto, também relacionado aos recursos, define como R$ 100 mil a multa máxima aos partidos que descumprirem as cotas mínimas de propaganda gratuitas para mulheres e negros. Uma multa de até R$ 100 mil para partidos que rateiam bilhões em verbas públicas não faz nem cócegas. 

Os partidos que formarem federações também deixam de ser obrigados a cumprir o preenchimento mínimo de 30% de mulheres na chapa de candidaturas. A obrigação fica estendida à federação.  

Reserva de cadeiras 

Nessa avalanche de mudanças, tornadas públicas na reta final do prazo de aprovação, acordada em bastidores e longe do escrutínio público, tentou-se ainda pautar uma discussão que está em banho maria no Congresso Nacional: a reserva de vagas para mulheres nas casas legislativas. 

O presidente da Casa, Arthur Lira (PP-AL), tentou construir, nos últimos dias, um entendimento sobre isso entre os parlamentares, manobrando a regra de 30% de candidaturas femininas nas eleições proporcionais.  

A ideia era resgatar uma Proposta de Emenda à Constituição de 2015 (PEC 134/15). Ela estabelece que a cota mínima para mulheres valerá por três legislaturas. O percentual aumentará de forma gradativa: 10% das cadeiras na primeira legislatura; 12% na segunda; e 16% na terceira. Em troca, os partidos não seriam obrigados a cumprir o percentual de candidaturas. 

Em 2021, o Senado aprovou um projeto de lei que previa uma reserva proporcional até 30% até 2040. Não avançou entre os deputados. 

Não houve consenso para incluir a reserva de vagas na minirreforma eleitoral. O próprio presidente do Legislativo deixou claro que "a reserva de vagas gera resistência". E pior: "Pelo mérito". O princípio da igualdade deveria nortear essa discussão, mas passa longe. 

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Por falar em igualdade, não pode ficar de fora desse balaio a PEC da Anistia, prestes a ser aprovada. O novo perdão põe fim a sanções, multas e suspensões de verbas para partidos que não destinaram o mínimo de repasses para mulheres e negros e não garantiram ao menos 30% de proporcionalidade de sexo ou raça nas eleições de 2022. A expectativa é de ser votado em plenário na próxima semana. 

Como se não bastasse, o auto perdão inclui ainda o livramento de punição aos partidos com prestação de contas irregulares antes da data de promulgação da PEC; o limite à cobrança de 10% da verba do fundo partidário em caso de multa pela Justiça Eleitoral e propõe ainda a redução de repasse do Fundo Partidário para campanhas de pessoas pardas e negras. 

É um explícito retrocesso no qual perdem as mulheres e as pessoas negras e ganham os partidos políticos. Não há compromisso partidário com a justiça de raça e de gênero no País para além dos discursos. 

A histórica maioria masculina em espaços públicos de poder não é uma aleatoriedade, é uma realidade intencionalmente mantida e renovada notadamente no Brasil. Não é difícil situar as decisões recentes da classe política nessa estratégia conservadora. O percurso das ações afirmativas para mulheres nas eleições brasileiras - e nisso também se encaixa a discussão racial - tem sido frequentemente uma queda de braço de ações judiciais e contrarreações legislativas, numa corrida dos partidos para explorar brechas. 

Falta aos atores político-partidários a compreensão de que a ausência de um compromisso efetivo com a justiça de gênero e raça no País mina a democracia e esvazia o pilar de representatividade no qual, teoricamente, os partidos estão assentados. 

*Esse texto foi publicado em primeira mão para os assinantes do Diário do Nordeste, na newsletter semanal "Antessala". Assine também o Diário do Nordeste.