Como a vitória de Javier Milei pode impactar para o Brasil e os planos do Mercosul
O canditato de extrema-direita venceu a disputa pela presidência da Argentina no domingo (19)
A vitória do ultraliberal Javier Milei para a presidência da Argentina deve ter repercussões diretas no Mercosul, organismo de integração regional da América do Sul. Crítico da entidade, Milei ameaçou, durante a campanha eleitoral, retirar a Argentina do Mercosul. Uma decisão passível de mudança, apontam pesquisadores ouvidos pelo Diário do Nordeste.
A decisão do novo presidente argentino depende da aprovação do Congresso — onde não tem maioria —, além de precisar lidar com a pressão do mercado, a quem interessa a manutenção das relações comerciais dentro do bloco, principalmente com o Brasil.
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E se, por um lado, será difícil para Milei cumprir a promessa de campanha, por outro não há como impedir o impacto da vitória do economista de extrema-direita dentro do Mercosul. "O Mercosul está enfraquecido (com a vitória de Milei)", ressalta o professor do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal do Ceará, Uribam Xavier.
A perspectiva é de que, caso mantenha a Argentina no bloco, Milei pressione por uma reformulação do funcionamento do Mercosul, tendo como aliado o presidente do Uruguai, Lacalle Pou — que também já ameaçou a saída do Mercosul.
As duas perspectivas fragilizam a posição internacional do Brasil, que tem como "política tradicional" o fortalecimento do Mercosul, destaca o professor e pesquisador de Relações Internacionais da Universidade de Fortaleza, Philippe Gidon.
"O Mercosul é visto como bem mais do que uma ferramenta econômica de alavancagem. O econômico tem sido usado (pelo Brasil) como ferramenta para conseguir apoio político em agendas de projeção internacional", explica. O bloco permite ao Brasil falar não apenas por si, mas também pela América do Sul, o que garante força internacional ao País, completa.
Negociação com a União Europeia
O resultado da eleição presidencial na Argentina saiu poucos dias antes da reunião da cúpula de presidentes do Mercosul, agendada para o dia 7 de dezembro no Rio de Janeiro. O tema central será o acordo de livre comércio com a União Europeia.
O encontro ocorre apenas três dias antes da posse de Javier Milei na Casa Rosada e terá como representante, portanto, o atual presidente da Argentina, o peronista Alberto Fernández. O governante possui posicionamentos mais alinhados ao presidente Lula (PT).
Uribam Xavier aponta que a decisão sobre data do encontro teve como um dos definidores a possibilidade de vitória de Milei — e o risco de uma eventual interferência.
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"Porque tem uma decisão importante que vai ser tomada, que é o fechamento da proposta de relação do Mercosul com a comunidade europeia. Se conseguir fechar a proposta, já isola o Milei", projeta o professor.
O acordo entre UE e Mercosul é negociado há mais de 20 anos e foi finalizado em 2019, quando iniciou um processo de revisão pelas duas partes. Divergências sobre a política ambiental tem sido um entrave e paralisado o andamento das negociações nos últimos quatro anos.
A "afinidade" com a União Europeia, assim como a perspectiva de livre comércio, podem ser relevante para Milei, mas um acordo fechado apenas três dias antes da posse do argentino pode ser considerado um "ato de provocação" e acabar ainda mais o entendimento, pondera Gidon.
"Ele tem essa peculiaridade, essa imprevisibilidade do tipo de reação que pode ter. Ideologicamente, ele tem uma certa afinidade com a visão liberal da União Europeia. (...) Mas a probabilidade maior é que não vai aceitar serenamente que o governo anterior assine um acordo dessa magnitude a três dias do seu fim", ressalta o professor.
Ele considera que isso pode gerar um "terremoto" na Argentina e chegar até a relação entre o país e o Brasil. "E qualquer avanço que consiga fazer (no acordo com a UE), vai ser sujeito a rediscussão", pontua.
Enfraquecimento do Mercosul
A rediscussão pode ser feita porque qualquer acordo assinado no Mercosul — assim como ocorre em outros organismos internacionais — deve ser aprovado pelo parlamento de cada país. No entanto, o acordo com a União Europeia prevê uma "cláusula de vigência bilateral".
O trecho, aprovado ainda em 2019, prevê que a vigência do acordo entre Mercosul e UE ocorre, em cada país individualmente, à medida em que forem aprovados pelo legislativo. Portanto, não há necessidade de esperar por todos os integrantes do bloco, formado também por Uruguai e Paraguai.
A regra, no entanto, cria um "Mercosul de vários andares", que perde a força de atuação em grupo, pondera Gidon. Transformando-se, assim, em "mais uma porta aberta para exigir que as condições do Mercosul sejam revistas".
A revisão da dinâmica existente no Mercosul pode ser o caminho encontrado por Javier Milei, já que a saída do bloco — conforme prometeu em campanha — pode ser inviabilizado pelo parlamento. Esse também é um cenário difícil, no entanto.
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Uribam Xavier ressalta que o Mercosul "sempre foi uma tentativa de integração muito frágil". "Só existe porque existe a relação entre Brasil e Argentina", reforça o pesquisador.
Esses são os dois países "determinantes" para a construção do bloco, reforça Xavier, mas com a posse de Milei, o Brasil pode acabar isolado dentro do Mercosul. Isto porque, ideologicamente, os governos da Argentina e Uruguai estarão mais próximos — além de tanto Milei como Lacalle Pou já terem ameaçado deixar o bloco.
O atual presidente do Paraguai, Santiago Peña, também desafiou decisões do Mercosul — reforçando, por exemplo, que o acordo com a União Europeia não será prioridade quando assumir a presidência do bloco em janeiro de 2024.
O que fará o Brasil?
"Se o Brasil quiser salvar o Mercosul, vai ter que entrar em concessões. O Brasil vai ser minoria, vai ter que fazer concessões" resume Gidon. Ele ressalta a importância do Mercosul para a estratégia de política externa brasileira.
Ele aponta, por exemplo, que mesmo com a importância econômica da relação comercial com a Argentina, a parceria com Uruguai e Paraguai não traz tantos benefícios ao Brasil. Contudo, acaba sendo uma forma de "ganhar lealdade política, inclusive em agendas internacionais".
O bloco permite ainda que o discurso do Brasil, a nível mundial, ganhe força. "Liderar o Mercosul como bloco representativo, direta ou indiretamente, da América do Sul (...) dá nova dimensão", explica Philippe Gidon. Isto porque além dos quatro membros fundadores do Mercosul, outros sete países são associados.
O momento será, então, de colocar na balança se as eventuais concessões feitas caso exista uma reformulação do Mercosul irão valer a pena para o Brasil. Principalmente em um cenário de difícil relação entre o presidente brasileiro e o argentino.
Uribam Xavier cita, por exemplo, o convite feito por Javier Milei para que o ex-presidente Jair Bolsonaro compareça à posse na Argentina. "É uma descortesia com o Brasil e sinaliza que vai ter uma relação de tensionamento. Na diplomacia, é de bom tom não convidar um desafeto do presidente (de outro país)", explica.
Gidon concorda. "A relação pessoal dos dois presidentes será praticamente inexistente, limitada aos protocolos. Claro que as necessidades do lado argentino poderão forçar o Milei a rever. Vai ser mais difícil fomentar desenvolvimento, aprofundamento dessa relação", projeta.
Os próprios pesquisadores admitem, no entanto, a dificuldade em fazer projeções sobre o novo presidente argentino, que classificam como "exótico" e "imprevisível". "Tudo que estamos falando aqui é dentro de uma racionalidade razoável, mas com o Milei nada é razoável", resume Xavier.