Onde estão os 244 mil adolescentes que não se cadastraram para a vacinação contra Covid-19 no Ceará?

Burocracia da inscrição, acesso dificultado à internet e o desconhecimento dos pais podem estar relacionados à defasagem nessa população

Escrito por Nícolas Paulino , nicolas.paulino@svm.com.br
Legenda: Só em Fortaleza, mais de 100 mil jovens ainda não se inscreveram.
Foto: Fabiane de Paula

Mesmo após orientação do Ministério da Saúde para interromper a vacinação de adolescentes de 12 a 17 anos sem comorbidades, contra a Covid-19, o Governo do Ceará resolveu manter a imunização desse público. Com a decisão, permanece o desafio de localizar os 244,5 mil jovens sem cadastro para receber a vacina.

Eles representam 2,7% da população cearense  contra a Covid-19. A Secretaria da Saúde do Ceará (Sesa) tem como meta imunizar 824.226 pessoas dessa faixa etária, mas, até esta sexta-feira, apenas 579.662 (70%) confirmaram o cadastro por e-mail, um pré-requisito para o agendamento da imunização nos municípios.  

Só em Fortaleza, cerca de 102 mil (35%) dos 289 mil adolescentes estimados atualmente pela Prefeitura de Fortaleza ainda não se cadastraram.

A reportagem conversou com um adolescente de 17 anos, morador de Canindé, ainda sem cadastro. Ele alegou que ainda não o fez porque está passando por “problemas pessoais” e não teve tempo de pensar no assunto. Contudo, pretende completar o processo nos próximos dias.

O rapaz conta que tem o link da plataforma Saúde Digital, mas não chegou a entrar no sistema de cadastro e nem recebeu orientação de pessoas próximas sobre como proceder com a inscrição.

Em Fortaleza, entre 18 de junho e 15 de setembro, o projeto "Cadastra Eu na Vacina", desenvolvido por estudantes da Universidade Federal do Ceará (UFC), inscreveu 52 adolescentes de 12 a 17 anos. 

Embora a procura desse público seja menor do que a de pessoas adultas ou idosas, no geral, a iniciativa tem ajudado pessoas sem acesso à internet estável ou a equipamentos adequados, somadas àquelas com dúvidas de informação. 

“Muitos dos que nos procuram até têm internet, um celular ou computador em casa, mas não sabem onde, como e o que precisa para se cadastrar, por exemplo”, exemplifica.

A presidente do Conselho Estadual dos Direitos da Criança e do Adolescente do Ceará (Cedca-CE), Mônica Sillan, enumera pelo menos três hipóteses para o número ainda defasado:

  • Dificuldades de acesso à internet, assim como no caso das aulas remotas;
  • Burocracia no processo de cadastramento;
  • Negacionismo ou desconhecimento dos pais ou responsáveis sobre o processo.

Legenda: Cadastro com informações técnicas é diferente de utilizar redes sociais, explica especialista.
Foto: Camila Lima

No primeiro caso, ela pondera que a conectividade, ainda que beneficiada pelo Cinturão Digital do Ceará, cobre mais o meio urbano, deixando de fora as comunidades rurais.

“No Interior, tem gente que divide o mesmo celular para duas, três pessoas. Se o jovem entra mais nas redes sociais, esse tipo de informação deveria chegar por esses canais”, reflete.

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Estratégias de inscrição

Para a representante, os adolescentes, sozinhos, também podem esbarrar no emaranhado técnico do cadastro, que exige o informe de documentação e de dados médicos - ao contrário das redes sociais, que são mais intuitivas.

“Não existe essa equação simplificada que ficam repetindo de que o jovem não se vacina porque não quer”, observa.

Sillan cita algumas linhas de ação que os municípios podem utilizar para facilitar o processo:

  1. A vacinação poderia ocorrer dentro das escolas que já retornaram ao ensino presencial, com o cadastro sendo realizado na hora;
  2. As secretarias escolares poderiam realizar mutirões de cadastro, já que possuem os dados básicos dos estudantes;
  3. Estudantes de cursos técnicos de Tecnologia da Informação poderiam ser parceiros no cadastramento de estudantes da rede.

 

“O ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente) diz que eles são sujeitos de direito, e a sociedade adulta deve promover proteção integral. No momento em que estamos, vacina não é apenas uma questão individual, de interesse ou do adolescente querer. O importante é não deixar ninguém de fora”, garante. 

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Negacionismo e ignorância

Uma jovem, que prefere não ser identificada, afirma que duas amigas dela, de 13 e 16 anos, moradoras de Caucaia, na Região Metropolitana de Fortaleza, foram “proibidas” de se vacinarem pelos pais e nem mesmo possuem cadastro.

“Eles falaram que não iam se vacinar (nem eles nem as minhas amigas) porque a vacina era uma criação do governo para deixar todo mundo sob o ‘poder’ dele. Enfim, coisas sem sentido e sem noção”.

Ela conta que os amigos até tentaram convencê-los sobre a importância do ato, mas não conseguem debater. “Eles dizem que a gente ficou 'assim' por causa da vacinação”, lamenta.

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adolescentes de 12 a 17 anos foram vacinados em todo o Ceará, até a última quarta-feira (15), segundo o vacinômetro estadual.

Para Mônica Sillan, do Cedca, alguns preceitos religiosos, negacionismo ou desconhecimento dos pais são outros obstáculos que precisam ser enfrentados na imunização dos jovens, que não tiveram oportunidade de discutir o tema com mais profundidade pelas limitações do ensino remoto. 

Muitas vezes, os pais também não tiveram acesso. Temos uma parcela grande da população que é analfabeta funcional. Então, não adianta só culpabilizar as famílias, não dá tempo fazer isso. É desenvolver mecanismos para que todo mundo seja convencido sobre a importância de todos se vacinarem.
Mônica Sillan
Presidente do CEDCA-CE

Ações entre secretarias

Em Fortaleza, as Secretarias de Saúde e Educação têm feito um trabalho integrado para localizar os jovens não cadastrados. “A equipe da Educação está trabalhando o Ensino Fundamental, do 6º ao 9º ano, que já foram chamados a se cadastrar e se vacinar. Temos uma boa adesão dos nossos alunos da rede municipal”, disse o prefeito José Sarto em live.

No entanto, segundo o sociólogo e integrante da Rede de Desenvolvimento Local, Integrado e Sustentável do Grande Bom Jardim (Rede DLIS), Adriano Almeida, a integração entre as pastas ainda não é suficiente, visto não haver, por exemplo, estruturas da rede de saúde próprias para o acompanhamento escolar.

"As escolas vão fazer sua parte de busca ativa e jogar as testagens para os postos de saúde, mas, quando o aluno for diagnosticado, já tem espalhado [o vírus]", observa o sociólogo.

Além disso, ele lembra que estudantes de bairros periféricos da Capital muitas vezes não têm acesso adequado à Internet ou mesmo a um computador ou celular, o que dificulta não só os cadastros para a vacinação como, também, o acompanhamento do agendamento. 

"Esse aluno não tem condições, muitas vezes, de atravessar a cidade pra tomar uma injeção no shopping center. No caso dos adolescentes, eles têm que tomar a Pfizer, e a Pfizer não está capilarizada nos postos de saúde", acrescenta Adriano. 

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Conforme a reportagem verificou nas redes sociais oficiais, a maioria das gestões municipais tem emitido mensagens aos cidadãos reforçando a necessidade do cadastramento na plataforma Saúde Digital.

Municípios como Maracanaú, Salitre e Potengi também possuem articulações para conscientizar, mobilizar e cadastrar os alunos nas próprias escolas. Tejuçuoca disponibilizou a sede da Secretaria da Saúde para ajudar quem tiver dificuldade no processo.

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