Fortaleza tem 8 CAPS infantis a menos do que o ideal, alerta Cedeca; consulta demora até 3 meses

Profissionais alertam que demanda de saúde mental entre crianças e adolescentes aumentou e agravou após a pandemia

Escrito por Redação ,
Crianças e adolescentes que têm transtornos graves e permanentes, mas não necessitam de atendimento urgente ou emergente, acabam por não iniciar o acompanhamento adequado, agravando os quadros existentes, segundo especialistas
Legenda: Crianças e adolescentes que têm transtornos graves e permanentes, mas não necessitam de atendimento urgente ou emergente, acabam por não iniciar o acompanhamento adequado, agravando os quadros existentes, segundo especialistas
Foto: Shutterstock

Oito meses, em média, para conseguir uma consulta psiquiátrica pública. Esse é o tempo previsto por Walber Leite, 41, para agendar atendimento para os dois filhos com autismo em um dos CAPS infantis de Fortaleza. A cidade tem só duas unidades, quando deveria ter 10, segundo denuncia o Centro de Defesa da Criança e do Adolescente (Cedeca).

No primeiro semestre deste ano, a entidade realizou um diagnóstico sobre a situação da Rede de Atenção Psicossocial para crianças e adolescentes na Capital. O Diário do Nordeste teve acesso ao levantamento, que alerta, entre outras deficiências, para o número insuficiente de Centros de Atenção Psicossocial Infantis (CAPSi).

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“A partir do cálculo da população, deveria haver 39 CAPS em Fortaleza, sendo 9 gerais; 20 para Álcool e Drogas (AD) e 10 infantis”, aponta o documento. Hoje, como confirma a Prefeitura, há apenas 15 Centros: 6 gerais, 7 AD e 2 infantis.

Em nota, a Secretaria Municipal de Saúde (SMS) garantiu que "está prevista a expansão da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) com a implantação de mais 3 equipamentos, além da reforma e ampliação de 8 unidades", até 2025.

Para 2021, a Prefeitura afirma que "está finalizando o processo de implantação de mais um CAPS infantil, que contemplará a população do Grande Bom Jardim, na Regional V de Saúde.

Demora para consulta

Um dos efeitos mais óbvios e imediatos é a superlotação, com longas esperas para atendimento especializado, situação vivenciada pela família de Walber: cujos filhos Weslley, 16, e Gabrielle, 11, são acompanhados no CAPS Infantil Estudante Nogueira Jucá, no bairro Parquelândia, desde 2017.

A última consulta deles foi em julho. Vou hoje lá, de novo, tentar marcar pro próximo ano, sabe-se lá quando. Até março, a agenda do psiquiatra tá lotada. É uma lotação constante.
Walber Leite
Desempregado

O tempo de espera médio por consulta na unidade citada por Walber “varia de 60 a 90 dias para casos não agudos”, conforme o Cedeca, e há mais de 5 mil pacientes vinculados a uma equipe de 20 profissionais. O CAPS é responsável por atender as Regionais I, III e V.

Já no CAPS Maria Ileuda Verçosa, no bairro Cidade dos Funcionários, cerca de 8 mil meninos e meninas de 0 a 17 anos estão vinculados, mas a unidade conta com apenas 15 profissionais para atender as Regionais pares de Fortaleza (II, IV e VI).

“Todo dia, em períodos ditos ‘normais’, chega gente nova para fazer a triagem e marcar a primeira consulta. Com a pandemia, aumentou de forma gritante. Minha filha precisou de uma consulta e, com essa demora, tivemos que fazer o sacrifício e pagar particular”, desabafa Walber.

A psicóloga Ana Cristina Melo destaca que crianças e adolescentes que têm transtornos graves e permanentes, mas não necessitam de atendimento urgente ou emergente, acabam por não iniciar o acompanhamento adequado, agravando os quadros “e demandando, inclusive, atendimento em hospitais psiquiátricos”.

Populações em situação de vulnerabilidade social e que vivem nas periferias da cidade são as mais afetadas pela deficiência da rede, como analisa Ana Cristina, já que, em muitos casos, não têm recursos para arcar com assistência privada.

“Os CAPSi estão distantes de grande parte das periferias, e o número insuficiente de equipamentos impede o funcionamento proposto na Rede de Atenção Psicossocial: a alta demanda impossibilita as atividades comunitárias, ficando restrito a atendimentos psiquiátricos e medicamentosos”, lamenta a psicóloga.

Caps Infantil em Fortaleza
Legenda: Fortaleza tem 8 CAPS infantis a menos do que o ideal, alerta Cedeca
Foto: Fabiane de Paula

Fragilidades além da pandemia

Durante a pesquisa, o Cedeca ouviu dezenas de profissionais e usuários dos dois CAPSi da cidade, que descreveram um cenário mais profundo do que o aumento do número de casos recebidos nas unidades. 

Há a percepção da intensificação da gravidade dos pacientes já em acompanhamento. “Os casos graves tornaram-se gravíssimos”, disse um dos profissionais de saúde ao Cedeca.

A psicóloga Ana Cristina alerta que o afastamento do ambiente presencial escolar, restringindo meninos e meninas do convívio com pares, deixou “muitos com comportamentos depressivos, pois sentiam falta da convivência com amigos, de sua rotina como um todo”.

Ingrid Lorena, assessora técnica do Cedeca Ceará e integrante da pesquisa, lista transtornos de ansiedade, insônia, ideação suicida, automutilação e depressão como os mais frequentes entre crianças e adolescentes atendidos pelos CAPS em Fortaleza, antes e durante a pandemia.

Isso porque, segundo ela, há uma “fragilidade ou ausência” de prestação de serviços psicológicos para a população na atenção primária, por meio dos postos de saúde.

“Como a rede de atenção primária tem pouco investimento, há uma super demanda pra atenção terciária. Em Fortaleza, crianças e adolescentes não tem conseguido acessar a rede numa perspectiva de promoção à saúde mental – quando acessam, já é no contexto de urgência ou emergência”, analisa Ingrid.

Orçamento congelado

A raiz das deficiências da Rede de Atenção Psicossocial de Fortaleza também é abordada pelo diagnóstico do Cedeca Ceará: reflete a falta de investimento na manutenção dos equipamentos já existentes e na criação de novos.

Análise do Projeto de Lei Plurianual 2022-2025 (PPA) feita pelos pesquisadores mostrou que o orçamento destinado à Implantação da Rede Psicossocial foi reduzido em 80,7%, passando de R$ 31,1 mi para R$ 6 mi – um corte de R$ 25,1 milhões para os próximos 4 anos.

A não garantia de uma política efetiva, com orçamento efetivo, também é potencial de letalidade para crianças, adolescentes e familiares. O grande impacto é na qualidade de vida dessas pessoas.
Ingrid Lorena
Assessora técnica Cedeca Ceará

O estudo também verificou que Fortaleza não executava, de 2018 até julho deste ano, o orçamento previsto para Implementação dos Pontos de Atenção da Rede Psicossocial. A cidade também não havia investido, de 2019 até julho, os recursos previstos para ampliação, reforma e manutenção da rede.

R$ 875 mil
é o recurso previsto na Lei Orçamentária Anual (LOA) de Fortaleza para ampliar e reformar a rede psicossocial em 2021. Até julho, R$ 0 foi executado, conforme estudo do Cedeca.

Questionada, a SMS não se pronunciou sobre o "congelamento" dos recursos, e informou apenas que "o valor mensal para manter os 15 CAPS gira em torno de R$ 2,8 milhões" e que, desse montante, "o Ministério da Saúde realiza repasse mensal de R$ 621.949, e o restante é custeado pelo tesouro municipal".

A reportagem entrou em contato com o Ministério Público do Estado do Ceará (MPCE) e solicitou representante para falar do assunto, a fim de saber se o órgão fiscaliza a situação da rede de atenção psicossocial de Fortaleza. A assessoria de comunicação informou não ter fonte disponível para entrevista.

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