Apenas um dos três Caps 24h de Fortaleza está internando pacientes da saúde mental

A carência de profissionais é um dos gargalos que limita a oferta desse tipo de atendimento voltado para pacientes que estão em crise

Escrito por Thatiany Nascimento , thatiany.nascimento@svm.com.br
Caps 24h da Aldeota
Legenda: O Caps 24h da Aldeota e outro no Cristo Redentor não estão garantindo atendimento a pacientes da saúde mental, apesar da demanda. Na Capital, somente o da Cidade 2000 tem realizado o acolhimento para internação
Foto: Fabiane de Paula

“Não está tendo internamento. Só lá no (Hospital de Saúde) Mental, em Messejana”. “Não está havendo acolhimento em nenhum horário. Não tem médico”. As respostas de profissionais de distintos Centros de Atendimento Psicossocial (Caps), sendo um Geral e um Álcool Drogas (AD), em Fortaleza, dadas por telefone, referem-se à pergunta: está ocorrendo internação de pacientes da saúde mental nessa unidade?. Na Capital, dos três Caps 24 horas, em dois o serviço de acolhimento de pacientes para internação, apesar da demanda, não está sendo ofertado

A equipe do Diário do Nordeste entrou em contato em dois dias diferentes com as duas unidades em busca do serviço. Mas, em ambos os casos, a resposta foi a mesma. Dois Caps 24h, um na Aldeota e outro no Cristo Redentor, não estão garantindo esse atendimento, apesar da demanda. Na Capital, informam os profissionais, somente o Caps 24h da Cidade 2000 tem realizado o acolhimento de pacientes para internação.

Nesses Caps devem ser internados pacientes com transtorno mental que estejam em crise e careçam dessa modalidade de tratamento. No caso da unidade AD, como a do Cristo Redentor e Cidade 2000, devem ser recebidos pacientes que demandam desintoxicação por uso de álcool, crack e outras drogas.

Interrupção do serviço

Mas, no Cristo Redentor, conforme uma profissional que atua na unidade (e prefere não ser identificada), o serviço de internação "não acontece desde fevereiro de 2021, quando findou contrato de trabalho das técnicas de enfermagem, somado à saída de um enfermeiro”. 

Na unidade do Cristo Redentor, relata, há estrutura para internar até 8 pacientes do gênero masculino. De acordo com ela, tanto a internação está suspensa, como os demais atendimentos acontecem com a equipe mínima de profissionais. “Inclusive o quantitativo de médico, pois temos apenas 28hs de atendimento médico por semana”, acrescenta. 

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O Diário do Nordeste também apurou que no Caps o atendimento médico é realizado a cada 60 dias. Mas, com a saída dos médicos não tem sido possível garantir esse retorno dos pacientes a cada 2 meses.

Com as internações suspensas em duas das três unidades 24h, dentre os Caps, somente o AD da Cidade 2000 tem recebido pacientes. Na unidade há 9 leitos. 

Dilemas no dia a dia

No local, relata outra profissional (que também terá a identidade preservada) “no momento, o acolhimento está funcionando. Estamos com sete internos hoje. Mas há uma rotatividade de profissionais muito grande. Agora estamos com quadro ok, mas vão sair, em outubro, duas técnicas de enfermagem e um enfermeiro em novembro. Ficará desfalcado, a menos que a Prefeitura convoque profissionais”. 

Uma das críticas entre os profissionais é que a rede de atenção psicossocial de Fortaleza funciona mediante a realização de seleções públicas, com contratos que valem por um ano e podem ser renovados por mais um.

“A rotatividade sempre foi muito grande. E isso prejudica a continuidade da assistência. Você está acostumado com um usuário de um determinado serviço, esse usuário cria um vínculo com você. Quando acaba o prazo de renovação você é desligado, ninguém quer saber se o usuário criou vínculo, se o serviço está sendo bem feito. Automaticamente você é desligado”, reforça. 

Como a profissional do Caps da Cidade 2000, Joyce Hilário Maranhão, presidente da Comissão de Psicologia em Saúde do Conselho Regional de Psicologia da 11ª Região, frisa que os contratos temporários dificultam o atendimento e quebram os vínculos dos profissionais tanto com as unidades de atenção psicossocial como, consequentemente, com os pacientes, que precisam de assistência continuada.

"É o maior problema crônico que a gente tem na rede. A gente não consegue criar raízes porque a gente sabe que é temporário. Eu não consigo, inclusive, ter saúde mental para cuidar da outra pessoa, porque sei que daqui a dois anos vou ter que me submeter de novo a um processo seletivo. Um concurso, vínculo de servidor público, ajuda a equipe a ficar mais coesa", destaca Maranhão.    

Para funcionar, o acolhimento noturno no Caps da Cidade 2000 tem uma equipe de enfermagem: um enfermeiro e dois técnicos de enfermagem. “O médico fica de sobreaviso. Não tem médico lá. Eles recebem telefonemas e vão, caso seja preciso. Pelo menos é assim que tem funcionado e durante o dia a equipe de enfermagem e os médicos (clínicos e psiquiatras) já estão presentes nos acolhimentos”, explica fonte ouvida pelo Diário do Nordeste

Depressão
Legenda: De acordo com a prefeitura, o município oferta acolhimento de urgência e estabilização na Santa Casa de Misericórdia
Foto: Shutterstock

Atendimentos

Questionada sobre a situação, a Secretaria Municipal da Saúde de Fortaleza (SMS) admite que dos três Caps 24h somente o da Cidade 2000 está realizando internações. 

De acordo com a gestão, além deste Caps, os pacientes em crise, que necessitem de atendimento noturno, “o município oferta acolhimento de urgência e estabilização na Santa Casa de Misericórdia com 12 leitos contratualizados para desintoxicação e a Sociedade de Assistência e Proteção à Infância de Fortaleza (SOPAI) com 25 leitos para crianças e adolescentes”.

A SMS também reitera que o Hospital de Saúde Mental, em Messejana, gerido pelo Governo do Estado, “atende as demandas que necessitam de internação”.

A secretaria informou que o Caps do Cristo Redentor “atualmente está convocando profissionais para a retomada das atividades noturnas”.

Já o Caps Geral da Aldeota passa por “uma mudança de imóvel para efetivação da habilitação tipo 3”. Além dessas unidades, outra na Regional de Saúde V, conforme a SMS, aguarda autorização do Ministério da Saúde.

O Diário do Nordeste também questionou a prefeitura sobre: quantos leitos ativos há em cada um desses CAPS 24h; quantos e quais profissionais compõem a equipe do Caps na Cidade 2000; se essa quantidade se repete nas demais unidades classificadas como 24h; bem como quantas internações foram realizadas nos CAPS 24h em 2020 e 2021. Essas questões não foram respondidas. 

O Ministério Público Estadual (MPCE) também foi procurado para saber se representantes da instituição estão a par da situação. Em nota, o MPCE informou que a 137ª Promotoria de Justiça de Fortaleza, “está ciente da situação, tendo sido comunicado pela própria Secretaria da Saúde de Fortaleza”. 

Segundo o MP, o Município ressaltou que “os Caps que não estão funcionando 24 horas voltarão ao atendimento normal em breve”. Não foi publicizado se há uma data específica para esse retorno. 

Concurso na saúde mental

Em 2018, após muitas pressões e assinatura de um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) com o Ministério Público Estadual, a Prefeitura realizou um concurso que contemplou também profissionais da saúde mental. Mas, muitos trabalhadores da rede de atenção psicossocial alegam que a quantidade de vagas foi insuficiente para a demanda de Fortaleza, tendo em vista que, atualmente, vários serviços funcionam com profissionais contratados via seleções públicas. 

A SMS também foi indagada sobre a situação. O Diário questionou à pasta se há algum plano de realização de novo concurso ou alguma discussão sobre a convocação do cadastro de reserva do anterior, por exemplo. A SMS informou que no concurso de 2018 “todos os médicos psiquiatras aprovados foram convocados. As vagas ofertadas, porém, não foram todas preenchidas. Houve novo concurso em 2020, para mesma especialidade, porém, novamente as vagas não foram totalmente preenchidas”.

Tratamento prejudicado

Sem que a rede assistencial funcione adequadamente, pacientes e seus familiares se veem desamparados em momentos de crise.

Segundo Joyce Maranhão, os profissionais já não dão prioridade à internação porque o ideal é o tratamento comunitário. No entanto, ela diz, "quando é necessário, é preciso que a gente faça a intervenção a tempo de conter a crise e de modo que o paciente possa sair dela e voltar à sua rotina. Se não tenho esse dispositivo, que é um amparo, não consigo intervir na crise e pioro o estado emocional do meu paciente", ressalta.

Não ter um Caps que faça esse tipo de cuidado prejudica todo o resto do tratamento, porque no momento em que ele [paciente] mais precisou, não teve ajuda"
Joyce Hilário Maranhão
Presidente da Comissão de Psicologia em Saúde do CRP-11

A falta de estrutura recai, também, sobre a família. "As pessoas erroneamente pedem muito internação porque elas também não têm apoio. Então, esperam que os profissionais façam. O adequado era que o suporte fosse no dia a dia e a crise fosse pontual, mas como uma coisa não acontece nem a outra, fica uma bola de neve. A família fica perdida", conclui Maranhão.

 

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