“Eu aperto a barriga pra amenizar a dor”: sem renda, cearenses encaram avanço da fome na pandemia
Um a cada dez lares nordestinos amarga o nível mais grave de insegurança alimentar, segundo estudo nacional
Suor frio, dor de cabeça forte, dor “fina” no estômago, tremor, fraqueza. Além da Covid, cearenses têm enfrentado outra epidemia cruzada, de uma doença com causa e sintomas óbvios, mas cuja cura nenhuma ciência é capaz de desenvolver: a fome.
“Eu apertava a barriga pra amenizar a dor, parece que você tá morrendo. Passei dia e noite bebendo água porque não tinha o que comer. Nunca pensei que passaria por isso, já desejei minha própria morte. Só quem sente a fome de perto é que sabe.”
O desabafo cru e desesperador é de Vanusa da Silva, 50, cuidadora de idosos desempregada desde o início da pandemia. Moradores do bairro Álvaro Weyne, periferia de Fortaleza, ela, a filha e dois netos (de 6 meses e 1 ano) sobrevivem do Bolsa Família – R$ 500, dos quais R$ 350 vão só para o aluguel.
Tem dia que a minha mistura é a fome. Só como um ovo ou carne quando a vizinha dá. Um dia ela se admirou porque eu tava comendo arroz com laranja. A gente passa sem comer, criança não. Ou compra o leite ou a comida.
Segundo Vanusa, a situação piorou com o avanço da crise sanitária. Antes, apareciam trabalhos de faxina, lavagem de roupas, cuidados com algum paciente internado. Hoje, as portas estão fechadas.
“A sociedade depende dos periféricos, mas despreza. Ano passado, vinha muita gente doar cesta básica. Mas isso foi se acabando. Nunca imaginei chegar numa situação dessa, de ser saudável e não poder trabalhar”, relata, com a garganta entalada pelo que falta.
Insegurança alimentar grave
Acordar sem a certeza do café no copo, do pão no prato, sem saber se hoje vem só arroz, só feijão, ou se é dia de sorte e vem um miúdo de frango no almoço; se sobra para a janta ou se a última refeição do dia vai ser água com açúcar. Ou nada. Milhares de famílias do Ceará vivem assim.
Fazer malabarismo para a escassa comida chegar a todas as bocas da casa é realidade inimaginável para quem não está inserido num conceito cruel: a insegurança alimentar. Pesquisa divulgada pelo IBGE no último setembro apontou que quase 1,9 milhão de cearenses passaram fome ou tiveram dificuldades para conseguir acesso à alimentação, entre 2017 e 2018.
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A insegurança alimentar é classificada em três níveis, segundo o IBGE: leve, quando a qualidade da alimentação está comprometida e existe a preocupação quanto ao acesso futuro; moderada, quando os moradores têm quantidade restrita de alimentos; ou grave, quando a privação para obter alimentos é tão grande que chega à fome.
famílias do Ceará passaram fome ou tiveram dificuldades para acessar alimentação em 2017 e 2018. De 2,8 mi de domicílios entrevistados, 786 mil tinham insegurança alimentar "leve", 365 mil "moderada", e 175 mil "grave".
Um levantamento feito entre 5 e 24 de dezembro de 2020 com 2.180 famílias brasileiras evidenciou a realidade de quem não tem o que comer: 19 milhões de brasileiros estão passando fome, e 43,4 milhões não têm alimentos em quantidade suficiente.
Os dados são do Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil, desenvolvido pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar (Rede Penssan), e mostram que a do Nordeste está entre as piores situações.
No período do estudo, o índice de insegurança alimentar chegou a 70% entre os nove estados nordestinos – a fome, nível mais grave de privação de alimentos, foi constatada em 13,8% dos lares da região.
A maior dificuldade é a alimentação, que tem que ter todos os dias. E sem trabalho fica difícil. Quem é mãe aguenta a fome, mas não quer ver os filhos passando por isso. Tem dias que deixo de comer pra dar a eles.
Desempregada há mais de um ano, desde que adoeceu e perdeu o posto de trabalho “avulso” em um restaurante, a dona de casa sustenta a si e aos filhos de 11 e 13 anos de idade com doações e com o Bolsa Família – são, em média, R$ 7 por dia para comer, pagar as contas e suprir todas as necessidades básicas.
“Teve um dia que não tinha realmente nada pra comer, pedi uma quentinha a um amigo. Tem dias que a gente come só arroz, só feijão, o que tiver. Mistura falta sempre, é comum”, diz, com uma naturalidade difícil de digerir.
"A fome mostrou de onde vem"
Vitor Hugo Miro, economista e coordenador do Laboratório de Estudos da Pobreza (LEP) da Universidade Federal do Ceará (UFC), aponta que o desemprego e a informalidade são os principais fatores associados à condição de insegurança alimentar.
“Com a pandemia, há aumento do desemprego e redução do nível médio de renda familiar. Então, deve-se esperar que um maior número de famílias enfrente situação de insegurança alimentar e fome”, estima.
Segundo o economista, o Auxílio Emergencial “conseguiu ser bem-sucedido em manter, e até aumentar, a renda entre os mais pobres”, mas o cenário do benefício em 2021 ainda é “muito incerto”.
“Apesar de parecer que tais soluções são temporárias, a ausência delas pode ter um efeito negativo em médio e longo prazos. Privações alimentares e sanitárias, mesmo que temporárias, possuem efeitos de longo prazo sobre o desenvolvimento de crianças, por exemplo”, indica.
A realidade, de tão dura, distanciou Lucas Alves, cofundador do Instituto SOS Periferia, da “linha de frente” de doações. “Neste ano, a realidade das comunidades está surreal. A fome se faz presente. É muito difícil, fico mais só no administrativo, agora”, desabafa.
Em 2020, a ONG fundada por Lucas e um amigo em abril doou cerca de 32 mil marmitas a comunidades periféricas de Fortaleza, onde, segundo o estudante de Gastronomia, a situação é mais precária.
“Em uma das comunidades, levei uma cesta básica e a moça disse que não tinha comida, mas também não tinha como cozinhar. Não tinha fogão, botijão. Eu não imaginava que veria tanto fogão à lenha de novo. Falta água, saneamento básico… É totalmente insalubre”, descreve.
Lucas relata que moradores de comunidades das Regionais 5 e 10 de Fortaleza, de bairros como Bom Jardim e Canindezinho, são os que mais encaram diariamente geladeiras e mesas sem um grão para comer.
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“Não tem alimentação. E quando tem, não é nutricional, é o que eles conseguem no dia. Agora tá três vezes pior do que no ano passado. E a pobreza não se deu pelo lockdown, já existia, mas era anônima. Hoje, a sociedade rica vê. A fome mostrou de onde vem”, frisa.
“Uma voluntária nossa sempre pedia as sobras de frango, miúdos, pé, pescoço. Dizia que era pro cachorro, mas não era. Os filhos não tinham o que comer.”
Com o avanço da pandemia, até as doações diminuíram. “Em março de 2021, entregamos 3 mil refeições. Lá atrás, ano passado, isso era em dois dias”, lamenta Lucas, que amarga, ainda, o luto pela perda da avó para a Covid-19. Ela era uma das cozinheiras do projeto, que funcionava na cozinha da própria casa.
Em meio a uma desigualdade que desnorteia e expõe abismos, sobra pé no chão para alguns – como expressa o relato de Rosilane. “As pessoas que têm o que comer tentem economizar o máximo, pra que não venha a faltar. A coisa mais triste é você ver um filho pedir uma coisa e você não poder dar. A gente não sabe o dia de amanhã.”