Do medo à dependência: por que mulheres desistem das denúncias de violência doméstica

Alvo de julgamentos pela sociedade, renúncia à queixa contra agressor envolve fatores emocionais e até financeiros

Escrito por Theyse Viana , theyse.viana@svm.com.br
Mulher com letra X desenhada em tinta vermelha na mão, como pedido de socorro contra violência
Legenda: Lei de 2021 define X vermelho na mão como sinal para vítima pedir socorro de forma silenciosa
Foto: Paulo H. Carvalho / Agência Brasília

“Quer aparecer”, “quer prejudicar o cara”, “é porque gosta de apanhar”. Quando uma mulher sofre agressão e resolve retirar a queixa contra o autor, todos os dedos voltam-se a ela. Os motivos para isso, porém, são inúmeros – vão do medo à dependência, como pontuam especialistas ligadas à rede de proteção à mulher no Ceará.

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Daciane Barreto, coordenadora da Casa da Mulher Brasileira (CMB), cita que a dificuldade de romper o ciclo da violência, diante das dependências emocional e financeira, por exemplo, é uma das razões mais frequentes para que as vítimas não sigam com a denúncia.

“A sociedade patriarcal não produz estrutura suficiente, políticas públicas nem transformações culturais que propiciem que elas sigam em frente. Tem a questão financeira, a dependência psicológica, a afetiva. É uma série de ingredientes. É muito fácil quem está de fora julgar”, alerta Daciane.

A coordenadora da CMB destaca ainda a opressão familiar como um dos motivos para vítimas retirarem as queixas contra os agressores. “É muito comum elas falarem que a mãe do agressor chorou, pediu que não denunciasse, porque o filho seria preso. Tem casos com filhos pequenos envolvidos. A mulher recua diante de tudo isso.”

A mulher não retira a denúncia porque gosta de estar com o criminoso. É preciso acolhê-la, para que ela se sinta segura e confiante com relação ao que vai enfrentar.
Daciane Barreto
Coordenadora da Casa da Mulher Brasileira

Daciane ressalta que, mesmo que desista de seguir em frente com o processo, a mulher pode retomar a denúncia quando quiser. “Se ela retira uma queixa, existem N motivos. Mas a rede de proteção está sempre de portas abertas. Ela pode e deve denunciar novamente”, frisa.

“A mulher não está denunciando um desconhecido”

O vínculo afetivo com o agressor é outro fator determinante para as mulheres cearenses desistirem das denúncias, como cita Rosa Mendonça, juíza titular do 1º Juizado da Mulher de Fortaleza. “É muito difícil, porque não está denunciando um desconhecido, mas alguém com quem já teve relação de afeto ou parentesco”, observa.

A crença na “mudança de comportamento” do agressor, um dos degraus mais simbólicos e perigosos do ciclo de violência doméstica, é outra justificativa dada pelas vítimas. “Outras vezes elas têm vergonha, se sentem culpadas. Ficam nesse turbilhão e desistem do processo”, conclui Rosa.

Muitas vezes, a mulher nem tem consciência do perigo que corre. Ela despreza determinados comportamentos, acha que o sujeito não tem capacidade de fazer mal a ela.
Rosa Mendonça
Titular do 1º Juizado da Mulher de Fortaleza

A juíza declara que, quando uma mulher declara intenção de retirar a denúncia contra o agressor, ela passa pelo atendimento de um grupo especializado, “onde é levada a refletir sobre as possíveis consequência disso, para que tome ciência da decisão”.

O processo pode seguir sem denúncia?

Um dos questionamentos que surge quando a vítima retira a queixa é o que pode ser feito, na Justiça, quanto ao agressor. A resposta é: depende. A juíza Rosa Mendonça explica que cada caso de violência doméstica tem peculiaridades, e que tudo varia de acordo com o crime cometido. 

“Lesão corporal, por exemplo, é de ação penal incondicionada: não depende da mulher para ser denunciada. Já difamação, injúria e calúnia necessitam da queixa da vítima para serem denunciadas”, exemplifica a juíza.

O crime de ameaça, como o inicialmente denunciado pela ex-companheira do cantor Ávine Vinny, também é de “ação penal condicionada”: sem queixa da vítima, não há como ocorrer denúncia nem punição. O processo de investigação, nesse caso, é arquivado. 

Por outro lado, o artigo 16 da Lei Maria da Penha (nº 11.340) estabelece que "nas ações penais públicas condicionadas à representação da ofendida, só será admitida a renúncia à representação perante o juiz, em audiência especialmente designada com tal finalidade, antes do recebimento da denúncia e ouvido o Ministério Público".

O Projeto de Lei 355/2021 quer estabelecer a ameaça contra a mulher no âmbito doméstico como ação penal pública incondicionada.

Na prática, o projeto prevê que todos os casos de ameaça contra a mulher no escopo da violência doméstica sejam investigados e processados pelo Estado, mesmo que a vítima não queira – acabando com a possibilidade de renúncia (retirada de queixa).

A proposta foi apresentada em fevereiro deste ano e segue em tramitação na Câmara dos Deputados.

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Pra a juíza Rosa Mendonça, o fato é que “o cerco está cada vez mais fechado para os agressores”. “Ninguém gosta de apanhar, nem um animal irracional gosta de ser maltratado. Mas muitas mulheres não têm estrutura, suporte ou apoio para denunciar. Temos tido recursos e campanhas para protegê-las, a sociedade está se mobilizando”, finaliza.

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Onde buscar ajuda

  • Casa da Mulher Brasileira – Rua Tabuleiro do Norte, S/N. Bairro Couto Fernandes, Fortaleza, Ceará. Telefone: (85) 3108-2999
  • Disque 180 – Central de Atendimento à Mulher
  • 190 – Polícia Militar
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