De fura-filas à falta de oxigênio: as principais dificuldades do Ministério Público na pandemia
O promotor de Justiça Eneas Romero relata em entrevista exclusiva como tem sido a atuação do Ministério Público do Ceará no enfrentamento à Covid-19 e detalha a situação do Interior e da Capital
Em paralelo às autoridades sanitárias, o Ministério Público do Ceará (MPCE) é um dos órgãos que mais têm atuado na garantia de direitos ao longo da pandemia de Covid-19.
Cumprindo sua função de fiscalizador do poder executivo, o MPCE foi o responsável, por exemplo, por garantir a transparência da lista das pessoas vacinadas contra a infecção no Estado e investiga constantemente casos de “fura-filas” — são 75 denúncias atualmente.
Atualmente, o Ministério tem cobrado municípios por um planejamento mais adequado das próximas etapas de vacinação e tem se envolvido na cobrança pela garantia de oxigênio em hospitais do Interior. Ao Diário do Nordeste, o promotor de Justiça Eneas Romero, coordenador do Centro de Apoio Operacional da Cidadania (CAOCidadania) do MPCE, conta quais têm sido as principais dificuldades do órgão no enfrentamento à pandemia.
Diário do Nordeste - Estamos há um ano enfrentando uma crise de saúde pública atípica e muito grave. Como essa realidade orienta a atuação do Ministério Público do Ceará?
Eneas Romero - O Ministério Público iniciou esse trabalho [direcionado à pandemia] há mais de um ano. Em janeiro [de 2020] a gente antecipou, porque vinha acompanhando as informações na imprensa internacional e conversando com a Secretaria da Saúde do Estado. A gente temia que a crise ocorresse, o que acabou acontecendo. A partir daí, a gente definiu alguns parâmetros para atuação. O primeiro é que, em relação à saúde, quem deve guiar o caminho são as autoridades sanitárias, os técnicos especializados, os cientistas. Não cabe ao Ministério fazer escolhas de mérito sobre questões relativas à saúde. Isso tem de ser decidido pelos especialistas e por quem tem competência legal. Uma das polêmicas que até hoje ocorrem é a respeito dos medicamentos. Desde o começo, a postura do Ministério Público é a mesma: o MP não vai dizer que medicamento um médico deve prescrever. Não vai determinar um protocolo quando não existe um protocolo estabelecido pelos órgãos com competência legal para estabelecer. Essa questão é uma escolha do médico e das autoridades sanitárias. E, juntamente a essa diretriz, a outra é atuar preventivamente para garantir que as medidas sejam as mais efetivas possíveis, cumprindo a constituição e a lei. E aí a necessidade de garantir a diminuição da circulação viral, o isolamento social. O MPCE, por exemplo, foi o primeiro órgão do Brasil que defendeu publicamente o uso de máscaras ainda em março, porque já havia informações da Organização Mundial da Saúde e de várias instituições.
DN - Além de não haver doses suficientes para todos, quais têm sido os principais entraves identificados pelo Ministério Público na garantia do direito à vacina?
Eneas - O primeiro, que é nacional, é o problema da prioridade dentro da prioridade. Quem são os profissionais da saúde prioritários? E é um problema que não ocorreu só no Ceará. Ocorreu no Brasil todo. Em Fortaleza, no primeiro dia da vacinação, se chegou a vacinar personal trainer, professor de pilates, psicólogo de RH, pessoas que não têm contato direto com pacientes e não os examinam por Covid-19 e, portanto, têm risco muito menor do que um médico que trabalha numa UTI, um enfermeiro, uma fisioterapeuta. No primeiro dia [da vacinação], a gente marcou reunião com a Secretaria da Saúde do Estado e do Município e isso foi revertido. A partir daí se decidiu que haveria uma lista de profissionais da saúde prioritários, começando pelos da linha de frente [de combate à] Covid-19, e, em seguida, os que trabalham na assistência a pacientes, cuidando deles. Esses outros foram deixados pra depois porque é inaceitável que você vacine um personal trainer e não tenha vacina para um médico de UTI ou que não tenha vacina para um idoso de 85, 90 anos. Além disso, alguns gestores se vacinaram. E, em relação a isso, está sendo feito apuração. Inclusive, já foi proposta ação de improbidade no município de Jijoca [de Jericoacoara], onde a secretária e o prefeito se vacinaram. Então, o MP tem também atuado no âmbito da responsabilização, mas, em primeiro lugar, da prevenção e garantia dos critérios. De igual modo, para garantir que, no grupo de idosos, fossem priorizados acamados e com idade mais avançada. E o que a gente vem defendendo e deve ser seguido, também, na próxima fase, é que, iniciando a vacinação dos idosos de 60 a 75 anos, comece com os de 74, depois 73, até chegar aos de 60. O critério para isso é muito claro: risco. Quanto maior a idade, maior o risco de óbito.
DN - Na sua opinião, as prioridades estabelecidas pelos governos federal, estadual e municipal na campanha de vacinação estão, hoje, adequadas?
Eneas - Sem sombra de dúvidas. Vacinar os profissionais da saúde da linha de frente e, primeiro, os idosos com idade mais avançada, é uma medida necessária, corretíssima e que vai evitar muitas mortes.
DN - Estamos prestes a entrar em outra etapa da campanha de vacinação que alcança pessoas de 60 anos para cima e outros grupos. Como o senhor vê essa nova etapa? Pode acontecer alguma outra confusão de prioridades ou já deu para adquirir expertise nesse processo?
Eneas - A primeira expertise é se antecipar e planejar adequadamente. O Ministério tem tido diálogo com a Secretaria da Saúde do Estado e dos municípios, especialmente Fortaleza, no sentido de se antecipar, planejar adequadamente e exigir a aplicação rigorosa dos critérios para todos. Não importa se a pessoa é parente de um gestor, rica ou pobre, os critérios têm de ser iguais para todos. Em relação aos idosos, é necessário fazer o cadastro com antecedência. A Secretaria da Saúde já abriu esse cadastro, agora sem prazo. Tem circulado muitas fake news e é importante que as pessoas somente se cadastrem ou peguem informação na página oficial da Secretaria da Saúde do Estado ou do seu município. Informações de outras fontes não devem ser confiáveis e devem ser checadas sempre.
DN - Quantas denúncias o MPCE já recebeu sobre “fura-filas” e quantas dessas provocaram ações judiciais concretas? O que essa prática pode causar a prefeituras, por exemplo?
Eneas - O Ministério Público recebeu 75 denúncias de “fura-filas”. E o procedimento é muito similar em todos os municípios. O promotor, recebendo a denúncia, vai verificar se, de fato, aquela pessoa se vacinou, se aquela informação é verdadeira e a que grupo pertence. Se ela foi vacinada, tem que verificar se está em alguma das categorias [prioritárias]. Estando, passa a ter direito à vacina. Mas tem que verificar se, de fato, pertence. No caso da idade é muito fácil, é um critério biológico, é só ver a certidão de nascimento. Nos outros, vai ter que ver se é profissional da saúde, se está entre os prioritários. Caso isso tenha sido desrespeitado, vai ser dada oportunidade para que a pessoa beneficiada e o eventual gestor ou funcionário que deu causa ao ilícito se justifiquem. E, tendo desrespeitado a lista, o MP pode responsabilizar, entrar com ação de improbidade administrativa, se for o caso, e, também, com ação criminal. Há diversos crimes possíveis aqui: abuso de autoridade, corrupção. Vai depender da apuração. Já houve ação de improbidade no município de Jijoca contra dois gestores e esse processo está em tramitação. Os demais ainda estão em fase de oitiva.
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DN - A maior parte dessas denúncias é no Interior ou na Capital?
Eneas - Tem muito na Capital, mas a maioria é no Interior. Temos 184 municípios, então, é natural que haja mais no Interior. As denúncias são das mais variadas: desde autoridades religiosas a parentes de gestores e a pessoas que teriam conseguido [a vacina] por outras formas. São muitas denúncias. E todas elas são apuradas com muita responsabilidade, mas, ao mesmo tempo, com bastante vigor, porque uma pessoa que se vacina, jovem, que não está nos critérios, está tirando a vez de outra pessoa que precisa mais.
DN - O Ministério, sozinho, dá conta de fiscalizar Capital e Interior nesse contexto caótico?
Eneas - O MP faz seu trabalho com bastante esforço. É muito difícil. Até porque temos quase 100 vagas de cargos de promotor vagos para o Estado todo. Mas o MP é o único órgão do sistema de justiça que atende diretamente à população em todos os municípios, porque entende que não pode deixar a população sem atendimento, ainda que isso implique num grande sacrifício para os membros. Em relação às denúncias, o MP nunca trabalha só, trabalha com a sociedade e sempre em diálogo com os poderes do Estado. O controle social é muito importante. Daí por que tem se pedido a divulgação da lista [dos vacinados].
DN - Antes da nova variante do coronavírus chegar ao Ceará, assistimos à rede assistencial de Manaus colapsar com aumento de casos e falta de oxigênio. Essa situação também pode acontecer aqui?
Eneas - Infelizmente, a demanda assistencial nos hospitais e nas Unidades de Pronto Atendimento [UPAs] tem crescido exponencialmente. Sem sombra de dúvidas, a gente tem a maior demanda por vagas em hospital da história. Para se ter uma ideia, se você pegar dados de antes da pandemia, tinha pouco mais de 400 leitos de UTI no Estado. Hoje, são mais de 1,5 mil. E, mesmo assim, temos uma fila. Ontem [9 de março], eram 175 pessoas aguardando uma vaga em UTI no Estado, mesmo tendo quase triplicado o número de leitos. Isso se repete na rede privada. Os hospitais privados estão todos lotados, apesar de terem, também, a maior expansão de leitos da história. Temos uma pressão assistencial sem precedentes. E isso aconteceu em Manaus. O número de óbitos tem crescido nas duas últimas semanas de modo bastante preocupante, daí a necessidade de cumprir o isolamento social, tanto as pessoas, voluntariamente, quanto os gestores terem essa responsabilidade, especialmente os dos municípios do Interior que ainda não declararam lockdown ou medidas mais rígidas. Porque podem estar colocando sua população em risco. Então, é muito importante esse controle. E, em relação ao oxigênio, em janeiro, o MP requisitou informações sobre a situação do estoque à Secretaria da Saúde do Ceará, à Secretaria da Saúde de Fortaleza e à empresa White Martins, que é a principal fornecedora do Estado. Todos garantiram que haveria oxigênio suficiente. A White Martins disse que teria como fornecer, inclusive, convertendo parte do oxigênio industrial para medicinal. Entretanto, o que se verificou nas últimas três semanas é que o esforço de aumentar capacidade de armazenamento e se planejar não foi repetido por muitos municípios. E aí já está começando a ocorrer problema em vários que não se prepararam, mesmo sabendo da situação de Manaus. E o MP, no sentido de cooperar e de evitar uma situação mais grave, se reuniu nesta semana e vai se reunir novamente na sexta-feira para dialogar com prefeitos e empresas para procurar soluções. É muito importante que cada gestor faça seu dever: planejar e executar a política adequadamente. Procurar por todos os meios garantir que não falte oxigênio para o cidadão do seu município. Além do que temos efeito em cadeia. Se num município falta oxigênio, o cidadão daquele município vai para outro e aquele vai lotar mais. Então, cada um tem que cumprir seu papel. Todos têm o dever constitucional, legal, de se preparar, ampliar sua rede, garantir profissionais, EPIs [Equipamentos de Proteção Individual], insumos, especialmente oxigênio, e as drogas utilizadas para o tratamento. A falta dessas drogas foi o problema de Manaus. Sabemos o que aconteceu lá. Então, é dever de cada gestor procurar resolver esse problema o quanto antes, para não agir na hora da crise, porque pode ser tarde demais. E quem vai pagar pela incúria de um gestor omisso é a população.
DN - Quais são esses municípios que não se prepararam suficientemente?
Eneas - Está sendo apurado por cada promotor e em cada comarca. Houve episódios em vários municípios: Eusébio, o mais recente, que teve paciente transferido no sábado e no domingo, e em outros como Maranguape e São Gonçalo. Nosso temor é que isso possa ocorrer em outros. A própria Aprece [Associação dos Municípios do Ceará] disse que 74 municípios estariam em situação crítica e dez em situação de colapso. Então, é hora dos gestores se reunirem. Não foi feito consórcio de governadores? Pode ser feito também um consórcio de prefeitos para encontrar soluções em defesa da saúde e da vida da população.
DN - A desinformação segue sendo desafio no combate à pandemia. Quais informações falsas, no momento, mais preocupam o MPCE?
Eneas - Uma médica e um pastor, infelizmente, divulgaram informações completamente inverídicas sobre os riscos das vacinas. O MP pediu a apuração criminal e, também, a responsabilização da médica e do pastor pela fake news. Felizmente, o que está se verificando é que a população tem procurado se vacinar, em sua grande maioria. Hoje, o maior problema é a falta de vacina, não as pessoas não quererem se vacinar. Outra preocupação é que tem muita gente recomendando medicamentos. Não cabe a nenhum leigo ou mesmo a um médico ficar dizendo publicamente que medicamentos a pessoa tem que tomar. Cada pessoa que ficar doente tem que procurar o seu médico, pedir a prescrição e seguir rigorosamente o que o médico diz. Prescrever medicamentos é um ato privativo de médicos, de modo que não cabe, como tem ocorrido, as pessoas dizerem que têm soluções fáceis, kits que vão resolver o problema. Isso não foi comprovado pela ciência. A população não deve guiar seu comportamento por informações de WhatsApp, de correntes.