Alunos de 103 escolas estaduais estão há 561 dias sem aulas presencias no CE: 'Tinha crises de ansiedade'

Hoje faz um ano em que as primeiras turmas do ensino médio foram liberadas para o retorno às escolas pelo decreto estadual, mas apenas instituições privadas voltaram à época

Escrito por Lucas Falconery , lucas.falconery@svm.com.br
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Legenda: Estudantes buscam fortalecer estudos em grupos de mensagens da turma
Foto: José Leomar

Nesta sexta-feira (1º), completam-se 561 dias em que estudantes de 103 escolas da rede estadual de ensino trocaram as carteiras da sala de aula por telas de celulares e as atividades impressas devido às limitações impostas pela pandemia da Covid-19 no Ceará. Falta de acesso a equipamentos, desânimo com o modelo remoto e a falta de convívio social se somam em equação complexa para formação dos discentes.

Estão em funcionamento 731 escolas públicas administradas pelo Governo do Estado - em que 628 (86%) adotam o modelo híbrido de ensino e 103 (14%) estão em diálogo com a comunidade escolar e o Comitê Escolar para definir o início de atividades presenciais, segundo a Secretaria da Educação do Ceará (Seduc).

“Conforme definição do Decreto Estadual vigente nº 34.254, de 18 de setembro de 2021, as unidades escolares devem permanecer ofertando o ensino remoto de forma a atender aos estudantes cujas famílias optam em permanecer neste modelo de ensino”, informa a Secretaria por meio de nota. A administração dos produtos, equipamentos e cumprimento dos protocolos sanitários são feitos por cada unidade escolar.

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As atividades escolares foram suspensas no Estado no dia 19 de março de 2020 com a confirmação dos primeiros casos da doença. Hoje (1º) completa um ano em que as primeiras turmas do ensino médio foram liberadas para o retorno às escolas pelo decreto estadual, mas apenas as instituições privadas conseguiram o feito à época. Foi solicitado pela reportagem o número de alunos impactados e as cidades em que as escolas permanecem no modelo exclusivamente remoto, mas as informações não foram repassadas.

“Apesar de fazer parte de uma geração muito acostumada com a internet, a gente usava (a tecnologia) meio que como um ‘refúgio’ da escola. De repente, ter que incrementar a escola nessa realidade, e adaptar toda rotina, foi bem complicado”, resume o estudante do 2º ano, Gabriel Nepomuceno, de 16 anos. Os celulares passaram, então, a reunir telas de sociabilização e de reforço nos estudos com a criação de uma rede colaborativa entre alunos.

Gabriel dá continuidade aos estudos na Escola de Ensino Médio Adauto Bezerra, em Fortaleza - com alunos em destaque em olimpíadas e vestibulares - onde acontecem reformas estruturais. “Na minha turma diversos alunos reprovaram de ano por não conseguirem acessar, mesmo que minimamente, a aula. Apesar de já ser um grande avanço, os tablets e chips ainda chegaram muito tarde”, observa.

TROCAS ENTRE ESTUDANTES

Além do acesso à tecnologia, Gabriel acompanha o desânimo da comunidade escolar  em manter as atividades remotas. “Eu moro em uma casa bem cheia e apesar de ter meu quarto, ainda tem bastante coisa pra se distrair da aula. Com certeza, o desafio de combater o desestímulo não só meu, mas enquanto líder de sala, de toda uma turma, foi bem difícil”, frisa.

No pouco tempo que a gente teve de ensino presencial, a gente conseguiu criar um grupo tanto no Whatsapp como um círculo de amizades mesmo. Então, foi por lá que a gente continuou conversando durante a maior parte do ano
Gabriel Nepomuceno

A escola pode ser entendida como um espaço de formação humana e os prejuízos vão além do rendimento em disciplinas, como avalia Jackson Braga, professor da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Ceará (UFC). “O impacto maior desse período se refere à questão do isolamento social, que causa uma perda de referência nesse processo que dura tanto tempo. O ambiente escolar proporciona a ética escolar, os limites da convivência entre os adolescentes, a necessidade ouvir o outro e de falar. O isolamento causa uma perda de referência das relações”, conclui.

Em meio às adversidades que se somam, Gabriel destaca o esforço da comunidade escolar - onde também faz parte do movimento estudantil - em alcançar quem deixou a rotina de estudos durante a pandemia. “Minha escola, pelo menos, fez o máximo que estava ao alcance para recuperar esses alunos perdidos pela pandemia durante o último ano e trazê-los de volta à nova rotina. Não foi fácil para ninguém, mas para essa parcela mais pobre das escolas foi, especialmente, mais complicado”.

Hibrido
Legenda: Retorno ao ensino presencial pode vir acompanhado de sobrecarga pelo período remoto
Foto: José Leomar

Tal percepção é compartilhada pelo estudante Vicente Rodrigues, de 16 anos, matriculado no 2º ano da Escola de Ensino Fundamental e Médio Patronato Sagrada Família. “Muita gente inteligente e talentosa está deixando de estudar, mas claro que não é culpa dessas pessoas. Precisamos ver gente como a gente, que vem da periferia, estudando e se dando bem na vida, mas sempre foi muito difícil para nós”, reflete.

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Sem aulas presenciais desde o início da pandemia, Vicente se prepara para retornar à escola a partir da próxima segunda-feira (4) no sistema híbrido - intercalando os estudos em casa e no colégio. “Estou bem animado para voltar às aulas e rever os amigos, só que também vem muita a preocupação da gente não estar seguro dentro das escolas por conta da Covid-19”, reflete. Em diálogo com os colegas, Vicente diz que alguns alunos com comorbidades devem permanecer em casa.

PAUSA NOS ESTUDOS

A situação de falta de estrutura adequada para a transição no ensino - devido à falta de equipamentos - perpassa alunos, professores e a própria escola, como observa o estudante. “Não ter esse contato que a gente tinha antes no colégio dificulta muito, porque a gente se vê meio que sem referência alguma dos amigos e dos professores, que ficavam à nossa volta, estudando, fazendo atividades e debatendo”, acrescenta.

O acúmulo da falta de interação social com a demanda ampliada de estudos para evitar mais prejuízos pode acabar por emaranhar o cenário dos estudantes. “O retorno é muito em cima de conteúdos perdidos, ou não processados, e a quantidade do que as escolas têm de administrar é tão enorme que os alunos ficam desanimados. É um retorno que já vem com sobrecarga”, analisa Jackson Braga.

O rendimento prejudicado nas aulas remotas e a percepção de uma piora no estado emocional foram decisivos para o estudante que prefere se identificar apenas por Alex, de 18 anos, interromper os estudos no 2º ano do ensino médio em agosto.

Eu tinha crises de ansiedade pensando no futuro, era muita pressão em cima de mim vindo de mim mesmo. Foi por isso que decidi dar um tempo na escola, eu preciso me recuperar e também não quero prejudicar a saúde da minha avó, caso eu pegue Covid-19
Alex

O jovem foi procurado pelo diretor, mas manteve firme a decisão de priorizar à saúde mental e segue realizando acompanhamento psicológico. “Existe uma expectativa, que eu particularmente entendo como uma ordem, de que tenho que ser alguém. Tenho que acabar com meu psicológico estudando e eu já cansei de me sentir ansioso por isso”, compartilha sobre sua percepção.

CENÁRIO NOS MUNICÍPIOS

“Nós vemos alguns municípios com dificuldade na aquisição de EPIs (Equipamentos de Proteção Individual), alguns professores que não se sentem seguros e famílias que ainda não vêem suas crianças vacinadas”, resume sobre a atual situação para a permanência no ensino remoto, Hermano Beviláqua, secretário executivo da União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação (Undime/CE).

A participação das famílias e de mais profissionais ligados à educação pode contribuir para a disseminação de informações. “Eu vejo que muitos municípios conseguiram adequar a estrutura, mas muitos não tiveram essa condição”, pondera. Mesmo nos locais com ambiente pronto, o receio de contaminação pela doença se impõe. “Como tem especificações técnicas de salas, seria muito interessante se tivessem mais atores para ter conhecimento sobre esse fatores para o retorno ter mais força”, completa

AÇÕES PARA CONTER OS PREJUÍZOS

Como forma de realizar recuperar estudantes em evasão escolar, foi lançado o Programa Busca Ativa Escolar com 3 mil bolsas para atuação de alunos do ensino médio, no dia 11 de agosto deste ano. “A iniciativa fortalece a manutenção e permanência dos jovens nas escolas deste nível de ensino da rede estadual, ao mesmo tempo que apoia o orçamento familiar dos estudantes”, conforme a Seduc. São oferecidos benefícios de R$ 200.

Também foram entregues 150 mil tablets aos alunos que ingressaram na 1ª série do ensino médio para facilitar o acesso às atividades remotas. “Uma nova distribuição de mais de 150 mil tablets está em andamento para ampliar a oferta, que será contínua e permanente na rede estadual. Também estão em processo de aquisição 28 mil notebooks para os professores das escolas estaduais.”, completa a Seduc.

Chips com pacote mensal de 20GB de internet móvel foram encaminhados para alunos da rede pública estadual, além da entrega de kits de gravação, compostos de computador, câmera e tripé às escolas estaduais.

 

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