Marília Quinderé: a fotógrafa por trás dos retratos da linha de frente da pandemia
Fisioterapeuta do Hospital Universitário Walter Cantídio, Marília Quinderé atua na linha de frente também captando, com suas lentes, a luta de profissionais e pacientes contra a Covid-19.
Pelas lentes de uma mulher, a luta de profissionais da saúde na pandemia da Covid-19 no Ceará está sendo documentada. As fotografias da fisioterapeuta e fotógrafa Marília Quinderé narram um momento histórico que só quem esteve na linha de frente sabe contar em detalhes. Nos plantões, ela se paramentava para atuar salvando vidas, juntamente com médicos, enfermeiros, técnicos de enfermagem e todo o pessoal que trabalha no Hospital Universitário Walter Cantídio (HUWC). Nas folgas, a fisioterapeuta dava espaço para a fotógrafa documental. Com a câmera e o olhar sensível, a maranguapense de 36 anos retratou cenas únicas dessa batalha contra o coronavírus.
Algo em torno de 5 mil imagens foram feitas pela fotógrafa até agora. São fotografias que mostram o trabalho árduo dos profissionais para salvar “o amor de alguém”, expressão que eles usam para humanizar cada paciente. Mas o ensaio fotográfico também revela momentos de esperança, quando uma pessoa recebe alta ou quando enfermeiras se unem, mostrando parceria e companheirismo nessa luta diária.
Em entrevista à série Dona de Si, Marília Quinderé conta que o registro começou como uma forma de terapia, já que a fotografia era um escape da rotina. A ideia era montar um acervo para o hospital, mas as imagens tiveram tamanha repercussão que já foram parar em exposições fotográficas em São Paulo, Minas Gerais e até na Ucrânia. O que era apenas um hobby virou um projeto documental e deve virar fotolivro em breve. Conheça detalhes dessa história e do olhar da fotógrafa Marília Quinderé.
Como e quando começou os registros do trabalho da linha de frente?
Comecei a fazer os primeiros registros fotográficos em maio de 2020, a princípio com o objetivo de me proporcionar uma melhor saúde mental e, segundo, por entender a importância de documentar esse período ímpar na história da humanidade. Percebi, nos primeiros meses da pandemia, acompanhando o trabalho dos fotojornalistas e fotógrafos documentais no Brasil e no mundo, que suas imagens, quando abordavam o trabalho das equipes de saúde, se restringiam a fotografias na entrada dos hospitais. O interior do hospital era um território de acesso restrito, limitado. Nesse período também, me deparei com uma recomendação da Revista ZUM, do Instituto Moreira Salles, de um ensaio fotográfico de uma enfermeira-fotógrafa norte-americana que voltou a fotografar, depois de 20 anos, para registrar o cotidiano de sua equipe de saúde no combate à pandemia de Covid-19 num hospital de Seattle. As imagens me chamaram atenção e, inspirada nela, resolvi contar a nossa realidade, a realidade de uma unidade pública de saúde de alta complexidade no Nordeste brasileiro. Pedi autorização formal à direção do hospital e iniciei o ensaio fotográfico em parceria com a Unidade de Comunicação do HUWC.
Nessa época, qual era o seu momento na fotografia? Já considerava carreira? Ou era um hobby virando algo sério?
Até 2020, eu considerava a Fotografia apenas como um hobby, como uma ferramenta de saúde mental, que me possibilitava estar em outros espaços e socializar com outras pessoas para além dos colegas da área da saúde. Hoje, encaro a Fotografia de uma outra forma, faço parte de um coletivo de mulheres fotógrafas e artistas visuais do Ceará, o Sol Para Mulheres, coordenado pela Imagem Brasil Galeria, e penso em projetos e temas sociais relevantes para as minhas narrativas visuais.
Reflito, exaustivamente, sobre qual a minha contribuição, como mulher branca cisgênero e de classe média, na Fotografia. Reflito sobre como posso colaborar com as lutas, sem tirar o protagonismo de quem sente na pele as dores e as delícias do existir.
O que mais chamou a atenção do seu olhar durante esse trabalho?
A interação e união da equipe nesse momento tão difícil. Estamos superando juntos esse período e isso fica evidente nas imagens. Gosto, particularmente, das fotografias que mostram o esforço coletivo dos profissionais, durante as pronações na UTI COVID, para salvar "o amor de alguém". Temos utilizado bastante essa expressão. É uma maneira de não perdermos nossa humanidade e individualizarmos o cuidado.
O que foi mais desafiador e mais gratificante em fazer esse documental?
Importante mencionar que todas as fotografias foram autorizadas, por escrito, pelos fotografados. Considero muito gratificante os feedbacks positivos que tenho recebido, diariamente, dos meus colegas de trabalho, pacientes e gestores do Complexo Hospitalar da UFC. Eles se sentem valorizados, respeitados e protagonistas desse momento histórico. Todos não só entendem a importância dos registros como me pedem para que eu os faça.Considero um grande desafio realizar imagens no ambiente hospitalar, um ambiente que expõe a fragilidade e vulnerabilidade do ser humano. É preciso delicadeza ao abordar os profissionais da saúde e pacientes e, sobretudo, ética e empatia.
Você tinha noção da importância histórica que suas fotos iriam ter?
Sim, mas não tinha noção da repercussão nacional e internacional que elas causariam. Minha intenção, quando comecei a realizar as imagens, era de gerar um acervo, um banco de imagens desse período, para entregar ao Memorial da Universidade Federal do Ceará. Seria um registro da atuação dos profissionais da saúde do Complexo Hospitalar da UFC durante a pandemia da COVID-19. Me sensibilizei com tal ideia, porque, em 2019, participei da organização de uma exposição sobre os 60 anos do Hospital Universitário Walter Cantídio. Nela, resgatamos fotografias do primeiro ano de atividade do hospital. Daí, senti que seria de extrema importância histórica registrar nosso tempo e contribuir com o acervo fotográfico da Universidade.
Qual era o sentimento ao realizar esse relato visual?
Um sentimento pessoal de conforto, em meio à pandemia, de realizar uma atividade que amo e distrair um pouco o medo e a ansiedade, e uma sensação de orgulho do trabalho incessante, da resiliência e da coragem dos meus colegas nessa árdua batalha contra um inimigo invisível.
Na sua opinião, que fotografia sua resume o que tem sido essa pandemia para os profissionais de saúde?
Acho que duas resumem: uma fotografia que fiz na UTI COVID, durante um procedimento de pronação, que envolve o trabalho da equipe multiprofissional em prol de uma vida e uma fotografia que fiz na entrada da UTI COVID, que demonstra o grau de companheirismo e parceria da equipe. Na foto, duas profissionais se olham e desejam força uma para a outra antes de entrar na UTI para mais um dia de plantão.
Teve alguma experiência ou história durante o trabalho fotográfico que te foi mais marcante?
Uma história me marcou profundamente! Um paciente que atendi na enfermaria COVID me contou, durante o atendimento, que sua mãe havia falecido no dia anterior ao nosso encontro. Ele me contou que estava cumprindo o isolamento social de forma rígida, porque sua esposa era asmática, mas que no Dia das Mães passou no supermercado e foi para a casa de sua mãe comemorar com ela. Dias depois, os dois apresentaram sintomas de covid e foram encaminhados para a UPA do Jangurussu. A mãe permaneceu por lá e ele foi transferido para o HUWC. No HUWC, ele soube da morte de sua mãe e afirmou, com lágrimas nos olhos, que se sentia culpado. Dias depois, esse paciente teve alta e foi aplaudido por todos os profissionais da saúde, no famoso "corredor de palmas".
Emocionado, o paciente deu um depoimento lindo que vale a pena transcrever: “Quero agradecer primeiro a Deus e segundo a todos vocês aqui, dos serviços gerais até a administração. Aqui eu encontrei seres humanos. Aqui eu encontrei caridade, honestidade no que se faz. Vocês não estão aqui à toa. Deus vai fazer dez vezes mais na vida de vocês”.
Tem planos de publicar um fotolivro ou exibir as imagens em uma exposição?
Sim. Estou trabalhando na edição de um fotolivro, em parceria com o editor Ademar Assaoka. Espero, em breve, publicá-lo. Quanto à exposição, já participei, com esse trabalho, de exposições coletivas na Ucrânia, em Minas Gerais e em São Paulo.
Você acredita que essa experiência como profissional da saúde e fotógrafa documental na pandemia te transformou?
Sim, sem dúvida! A pandemia me fez refletir muito sobre a vida, sobre o que vale, verdadeiramente, a pena. Me fez refletir sobre a beleza do viver, a importância da simplicidade e de estarmos próximos às pessoas amadas, que nos fazem bem.
Hoje, mais do que nunca, me apego à urgência de viver do mestre Belchior e acredito que "viver é melhor que sonhar", mas "há perigo na esquina". É preciso, mais do que nunca, termos a consciência de que somos seres coletivos e que nossas ações impactam na vida dos outros.