PM envolvido na morte de adolescente já era investigado por tortura

Dois militares foram afastados sob suspeita de participar da morte do menino Mizael, de 13 anos. Um deles já vinha sendo investigado por, supostamente, torturar um homem durante uma abordagem policial em Quixadá

Escrito por Emanoela Campelo de Melo , emanoela.campelo@svm.com.br

Um dos dois policiais militares investigados por participar da morte de Mizael Fernandes da Silva, de 13 anos, ocorrida no começo deste mês, em Chorozinho, responde a um Inquérito Policial Militar (IPM) por, supostamente, ter torturado um homem durante uma abordagem policial, em fevereiro do ano passado. Mesmo sob suspeita de ter cometido as agressões, o sargento do Comando Tático Rural (Cotar), membro do policiamento ostensivo especializado do interior do Ceará, continuava nas ruas.

O afastamento do sargento, que terá seu nome resguardado pela reportagem por ainda não ter sido denunciado, só aconteceu na última semana, após envolvimento em uma nova ocorrência. O governador do Ceará, Camilo Santana, anunciou os afastamentos, depois que a morte de Mizael repercutiu na imprensa nacional com depoimentos da família pedindo Justiça.

Além do sargento, um soldado do Cotar está afastado das suas funções. De acordo com apuração do Sistema Verdes Mares com fontes oficiais, consta no inquérito que a dupla de policiais teria, cada um, disparado uma vez contra Mizael. Os PMs disseram em depoimento terem decidido atirar contra o adolescente porque em determinado momento da ação o viram escondido atrás de uma porta e armado.

Depoimentos

Na versão dos PMs, eles estavam à procura de um adolescente com histórico de atos infracionais e que, segundo os servidores, "seria perigoso". Chegando à casa onde Mizael dormia, entraram no imóvel com a permissão dos moradores e saíram, instantes depois, com o corpo do adolescente.

A família diz ter acontecido uma sequência de fatos diferente naquela madrugada de 1º de julho de 2020, em Chorozinho, município da Região Metropolitana de Fortaleza (RMF). Conforme parentes, Mizael estava deitado e dormia quando foi brutalmente assassinado por um único disparo de arma de fogo.

Lizângela Rodrigues, tia da vítima e testemunha do fato, afirma reviver as cenas de terror desde o dia que o sobrinho foi morto: "O pior é eles dizerem que ele estava armado".

Uma fonte que acompanha o andamento do inquérito e conversou com a reportagem sob a condição de não ser identificada disse que a versão dos PMs requer apuração rigorosa. "Serão ouvidas testemunhas, veremos o local do fato. O laudo do exame de corpo de delito da vítima é importantíssimo, ele deve dizer as direções dos projéteis. Ainda não há um prazo específico para emissão do laudo, mas, o prazo de duração inicial do inquérito é de 40 dias e ele deve ser concluído dentro deste prazo", explicou a fonte.

O caso, inicialmente, foi levado à Delegacia Municipal de Eusébio. No entanto, por envolver policiais na condição de suspeitos, foi transferido para a Delegacia de Assuntos Internos (DAI) da Controladoria Geral de Disciplina dos Órgãos de Segurança Pública e Sistema Penitenciário (CGD). Questionadas sobre a apresentação de uma arma apreendida, Secretaria da Segurança Pública e Defesa Social (SSPDS) e CGD não se posicionaram sobre a existência ou não do armamento.

Liliane Rodrigues Fernandes, outra tia de Mizael, também diz não acreditar na existência desta arma. Segundo a agricultora, a família autorizou a entrada dos policiais na casa, como relatado pelos próprios militares, o que corrobora a versão de que ali não havia nenhum criminoso.

"Ele era uma criança. Cadê esta arma? Na vida, Mizael nunca deve nem ter visto uma arma. Estão mentindo. Minha irmã abriu a porta para eles. Se tivesse bandido ali, ela teria deixado entrar? O que custa assumirem o que fizeram? Não deixaram minha irmã acompanhar a vistoria. De repente ela só ouviu o barulho do disparo. Como esse menino reagiu?", questiona.

A família também afirma que mesmo após o disparo, não foi prestado o devido socorro ao garoto. Liliane acrescenta que o corpo do sobrinho foi pego "como um de cachorro e jogado dentro da viatura". A agricultora ainda conta que os PMs levaram o travesseiro e o lençol que estavam na cama onde Mizael dormia, levantando a suspeita da cena do crime ter sido modificada. No quarto, ficou um colchão com a mancha de sangue.

"Mizael não foi o primeiro e infelizmente não vai ser o último inocente a ser morto por policiais. Mataram uma criança que não devia nada a ninguém. Eu vejo os vídeos dele e choro, tento esquecer, mas não consigo. Só nós sabemos o que estamos passando".

A CGD informou que a Delegacia de Assuntos Internos adotou providências necessárias para elucidar os fatos: "A ocorrência também é objeto de apuração na seara disciplinar, já que esta é o meio adequado para a apurar a responsabilidade, na esfera administrativa, dos policiais militares envolvidos no caso. Ressalta-se que a instauração de um Processo Administrativo Disciplinar (PAD) depende da coleta de meios de prova que possibilitem compreender quem participou da ocorrência e em que medida concorreu para o resultado".

Tortura

A tortura supostamente ocorrida com a participação do sargento no ano passado permanece sendo investigada em paralelo ao caso do adolescente Mizael. Conforme os autos, em fevereiro do ano passado, um homem teria sido algemado, revestido com panos, torturado mediante colocação de uma toalha no seu rosto e afogado para que apontasse aos policiais onde estava uma pessoa de nome Ricardo.

A vítima prestou Boletim de Ocorrência (B.O.) com detalhes sobre a tortura. Após ter a casa invadida, ele disse ter sido algemado e teve a cabeça colocada dentro de um saco com água. Quando a vítima disse não saber onde Ricardo estava escondido, ela foi levada dentro da viatura até uma lagoa. No trajeto teve seu celular verificado pelos policiais sem sua autorização e foi ameaçado que, caso denunciasse a tortura, seria morto. No depoimento, o sargento negou ter participado desta ocorrência.

Em junho de 2019, um inquérito militar, presidido por um tenente do Batalhão de Choque, ao qual o Cotar pertence, concluiu que os policiais investigados não participaram do fato denunciado ou não praticaram os atos contra aquela vítima.

Quatro meses depois, o Ministério Público do Ceará se posicionou pedindo mais diligências sobre o caso. O MPCE pediu que os policiais fossem submetidos ao reconhecimento de pessoas de forma pessoal, sem uso de fotografia, que a esposa da vítima fosse ouvida e que fosse enviada ao Ministério cópia do sistema de rastreamento das viaturas do Cotar naquele dia. Em novembro, os autos foram devolvidos ao Comando Geral da PM para realizar as diligências solicitadas pelo MP.

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