Mães de vítimas da Chacina do Curió criticam absolvição de PMs: 'Assim é o sistema: se omite'

Sete policiais militares acusados de omissão no massacre que vitimou 11 pessoas em Fortaleza foram considerados inocentes

(Atualizado às 21:54)
Mães de vítimas da Chacina do Curió discursam em mesa
Legenda: Mães de vítimas e sobreviventes da Chacina do Curió reafirmaram a luta por justiça
Foto: Kid Júnior

Poucos minutos após a decisão do júri popular que inocentou os sete policiais militares acusados de omissão na noite e na madrugada da Chacina do Curió, em novembro de 2015, as mães das vítimas e de sobreviventes do massacre reafirmaram a luta por Justiça e criticaram a absolvição dos réus.

"O que vimos hoje, esses dias, mostra bem como é o sistema e como esse sistema trata as periferias. É dessa forma: se omitindo. Da mesma forma que aqueles policiais se omitiram de impedir mortes e socorrer vidas. Assim é o sistema: se omite", reprovou Silvia Helena Pereira de Lima, mãe de Cícero, um dos sobreviventes, e tia de Jardel, que foi morto na chacina.

78 horas
Foi a duração total do julgamento do 4º Júri do Curió.

Apesar da frustração com a decisão, ela e as outras do grupo "Mães do Curió" não sentem que perderam, mas, sim, que renovaram as forças para seguir em busca da responsabilização e da condenação dos que assassinaram — ou deixaram de socorrer — as 11 pessoas que perderam suas vidas na matança.

Familiares e amigos das vítimas fizeram vigília em frente ao Fórum Clóvis Beviláqua enquanto aguardavam o resultado do júri
Legenda: Familiares e amigos das vítimas fizeram vigília em frente ao Fórum Clóvis Beviláqua enquanto aguardavam o resultado do júri
Foto: Ismael Soares

"Não viemos aqui comemorar nada. Mesmo se tivessem sido condenados, a gente não estava comemorando. A gente não tem o que comemorar. [...] Mas a gente não desceu um degrau, pelo contrário, subimos mais um. [...] Quando a gente entrou nessa luta, a gente sabia quem a gente estava enfrentando, em momento nenhum a gente baixou a cabeça. Nossa cabeça é erguida 24 horas. Não fomos nós que fizemos a coisa errada. Foi quem deixou nossos filhos morrerem", acrescentou Suderli de Lima, mãe de Jardel.

Edna, mãe de Alef, outra vítima, reforçou: "Iremos continuar. Esse tombo foi só para a gente aprender a subir cada vez mais. Somos fortes. Somos mães".

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Ministério Público se prepara para o próximo júri

O Ministério Público do Ceará (MPCE), que atuou na acusação contra os agentes públicos, recorreu da decisão do júri e submeteu o recurso ao crivo do Tribunal de Justiça do Estado (TJCE).

Na visão do MP, a opinião dos jurados contraria provas como vídeos e documentos anexados ao processo que demonstram que os policiais sabiam dos crimes que estavam sendo praticados naquela região.

O procurador estadual da Justiça, Haley de Carvalho Filho, garantiu que os promotores devem analisar o processo para se preparar para o próximo júri sobre o caso, marcado para o próximo 22 de setembro. "É um julgamento importante, o último que a gente vai ter nessa primeira fase. A gente já vem se preparando", disse.

Urnas para votação no júri
Legenda: O processo de votação deste júri demorou cerca de nove horas
Foto: Sara Parente/Ascom TJCE

A defensora pública geral, Sâmia Farias, acrescentou que a Defensoria Pública do Estado (DPCE) também interpôs recurso contra a decisão, mas entendeu que o processo enfrenta dificuldade pela natureza jurídica.

"A gente respeita a soberania dos votos, mas não concorda. Esse era um processo em que se sabia das dificuldades. São sete réus, é necessário individualizar a ação ou omissão de cada um", observou.

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Saiba quem foram os sete PMs absolvidos na decisão

  1. Sargento PM Farlley Diogo de Oliveira;
  2. Cabo PM Daniel Fernandes da Silva;
  3. Cabo PM Gildácio Alves da Silva;
  4. Soldado PM Francisco Fabrício Albuquerque de Sousa;
  5. Soldado PM Francisco Flávio de Sousa;
  6. Soldado PM Luís Fernando de Freitas Barroso;
  7. Soldado PM Renne Diego Marques.

Eles estavam distribuídos em três viaturas na madrugada do crime. Respondiam por 11 homicídios, três tentativas de homicídio, três torturas físicas e uma tortura mental.

Pela decisão do júri, tiveram suas medidas cautelares e restrições de direitos revogadas e poderão voltar às ruas — até então, os militares estavam em serviço administrativo.

Como funcionou o chamado "Núcleo da Omissão"?

Conforme o MP, os sete agentes estavam de serviço pela Polícia Militar, divididos em três viaturas, entre a noite de 11 de novembro e a madrugada de 12 de novembro de 2015.

Três dos réus estavam na viatura RD 1087: o sargento Farlley de Oliveira (comandante), o soldado Francisco Flávio (motorista) e o soldado Renne Diego (patrulheiro). Segundo testemunhas e imagens de câmeras de segurança, a composição policial teve contato com integrantes de um "comboio", que estavam encapuzados e teriam participado do assassinato de Renayson Girão da Silva (uma das vítimas da chacina).

Já o cabo Daniel da Silva (comandante), o soldado Luís Fernando (motorista) e o soldado Gildácio da Silva (patrulheiro) estavam na viatura RD 1301, que recebeu uma ocorrência de disparo de arma de fogo na rua Ozélia Pontes, por volta de 23h17 do dia 11, mas permaneceu parada até 23h22 e, em seguida, se dirigiu ao sentido oposto à ocorrência, segundo o Ministério Público.

Outra ocorrência de disparo de arma de fogo, na rua Nelson Coelho, foi registrada às 0h26 do dia 12 de novembro daquele ano e despachada, às 0h34, para a viatura RD 1301. A equipe policial, porém, não se colocou em rota nem informou ter comparecido ao local, o que obrigou a Coordenadoria Integrada de Operações de Segurança (Ciops) a transferir a ocorrência para a viatura RD 1072.

O patrulheiro da Viatura RD 1072 era o soldado Francisco Fabrício Albuquerque de Sousa, que também foi declarado inocente. O comandante da equipe, o cabo Thiago Aurélio de Souza Augusto, e o motorista da viatura, o cabo Ronaldo da Silva Lima, já foram julgados e absolvidos no júri popular de agosto de 2023.

Defesa celebra absolvição

Para o advogado Valmir Medeiros, que defendeu a composição de uma das viaturas, "a justiça foi feita" neste domingo (31). Ele disse que os clientes deixaram o Fórum Clóvis Beviláqua "de cabeça erguida" e celebrou a absolvição de todos os agentes por unanimidade.

"Os jurados entenderam que nenhum deles praticou nenhum dos crimes. [...] Isso não tira a injustiça que foi feita contra os que morreram", afirmou.

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Outros júris da Chacina

O Ministério Público denunciou 45 policiais militares por participação na Chacina do Curió. A Justiça recebeu a denúncia contra 44 PMs, que viraram réus. Na sentença de pronúncia (ou seja, na decisão de quem iria a júri popular), dez acusados foram impronunciados (em outras palavras, inocentados).

Dos 34 réus restantes, três tiveram as condutas desclassificadas para crimes de menor gravidade, com julgamento a ser realizado pela Vara da Auditoria Militar. O soldado Daniel Campos Menezes — incluído na lista de réus — foi morto em uma tentativa de assalto no bairro José Walter, em Fortaleza, em junho de 2020.

Os 30 policiais militares pronunciados estavam divididos em três processos criminais. Devido ao andamento de recursos, cinco julgamentos foram marcados, dos quais três já foram realizados.

214 horas
e 30 minutos foi o tempo de duração dos três julgamentos da Chacina do Curió, ocorridos até então. Com as pausas para descanso, os júris se estenderam por 20 dias.

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Resultados anteriores:

Primeiro júri - 20 de junho de 2023

  • Antônio José de Abreu Vidal Filho - condenado a 275 anos e 11 meses de prisão e expulso da Polícia Militar;
  • Ideraldo Amâncio - condenado a 275 anos e 11 meses de prisão e expulso da Polícia Militar;
  • Marcus Vinícius Sousa da Costa - condenado a 275 anos e 11 meses de prisão e expulso da Polícia Militar;
  • Wellington Veras Chagas - condenado a 275 anos e 11 meses de prisão e expulso da Polícia Militar.

Segundo júri - 29 de agosto de 2023

  • Sargento PM Francinildo José da Silva Nascimento - absolvido de todas as acusações;
  • Sargento PM José Haroldo Uchoa Gomes - absolvido de todas as acusações;
  • Cabo PM Ronaldo da Silva Lima - absolvido de todas as acusações;
  • Cabo PM Thiago Aurélio de Souza Augusto - absolvido de todas as acusações;
  • Soldado PM Gaudioso Menezes de Mattos Brito Goes - absolvido de todas as acusações;
  • Soldado PM Gerson Vitoriano Carvalho - absolvido de todas as acusações;
  • Soldado PM Josiel Silveira Gomes - absolvido de todas as acusações;
  • Soldado PM Thiago Veríssimo Andrade Batista de Moraes -absolvido de todas as acusações.

Terceiro júri - 12 de setembro de 2023

  • Tenente PM José Oliveira do Nascimento - condenado a 210 anos e 9 meses de prisão;
  • Subtenente Antônio Carlos Matos Marçal - teve um crime desclassificado para a Vara da Auditoria Militar e foi absolvido pelos outros;
  • Sargento PM Clênio Silva da Costa - absolvido;
  • Sargento PM Francisco Helder de Sousa Filho - absolvido;
  • Sargento PM José Wagner Silva de Souza - condenado a 13 anos e 5 meses de prisão;
  • Sargento PM Maria Bárbara Moreira - absolvida;
  • Cabo PM Antônio Flauber de Melo Brazil - absolvido;
  • Soldado PM Igor Bethoven Sousa de Oliveira.

O quinto julgamento está marcado para o dia 22 de setembro deste ano. Serão julgados: o cabo Luciano Breno Freitas Martiniano e os soldados Eliézio Ferreira Maia Júnior e Marcílio Costa de Andrade. O trio está incluso no mesmo processo em que quatro PMs foram condenados a 275 anos de prisão, cada.

Como aconteceu a Chacina

Onze pessoas foram assassinadas a tiros em diversos pontos da Grande Messejana, em Fortaleza, entre a noite de 11 de novembro e a madrugada de 12 de novembro de 2015. As investigações policiais apontaram a participação de PMs nos crimes, como retaliação à morte de um colega de farda, no início daquela noite.

"Segundo a denúncia, os réus tomaram parte em uma ação articulada de policiais, com divisão de tarefas, como retaliação à morte do policial militar Valtenberg Charles Serpa, assassinado durante roubo ocorrido horas antes no campo de futebol do Uniclinic, situado nas proximidades dos locais dos fatos", descreveu o Ministério Público, nos Memoriais Finais.

Conforme o MPCE, "diversos homens encapuzados circularam pelos locais do fato durante longo tempo, contando com a conivência dos policiais militares que estavam de serviço que, apesar dos insistentes e desesperados apelos da população, não socorreram a tantos que precisavam de proteção".

Quem são as vítimas da matança:

  • Álef Souza Cavalcante, morto aos 17 anos;
  • Antônio Alisson Inácio Cardoso, morto aos 16 anos;
  • Francisco Elenildo Pereira Chagas, morto aos 40 anos;
  • Jardel Lima dos Santos, morto aos 17 anos;
  • Jandson Alexandre de Sousa, morto aos 19 anos;
  • José Gilvan Pinto Barbosa, morto aos 41 anos;
  • Marcelo da Silva Mendes, morto aos 17 anos;
  • Patrício João Pinho Leite, morto aos 16 anos;
  • Pedro Alcântara Barroso do Nascimento Filho, morto aos 18 anos;
  • Renayson Girão da Silva, morto aos 17 anos;
  • Valmir Ferreira da Conceição, morto aos 37 anos.
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