"Não tinha comida nem água para banho", diz homem resgatado de trabalho análogo à escravidão no CE

Nos últimos dez anos, foram 289 trabalhadores resgatados em condições análogas à de escravidão – ampla maioria no meio rural. Só em 2013, foram 103, ano com maior número.

Escrito por André Costa , andre.costa@svm.com.br
Foto: Sérgio Carvalho

Algumas marcas da vida transcendem o corpo e se fixam na alma. Em alguns casos essa "perpetuidade" é louvada por remeter doces e boas lembranças. Em outras, o sentimento é oposto. A síntese desses casos pode repousar na frase em tom de desabafo de um homem de 54 anos, resgatado de um trabalho análogo à escravidão em Beberibe, no litoral cearense. "Aquilo era um inferno", rememorou Pedro, nome fictício.

O dia 28 de janeiro é a data nacional de combate ao trabalho escravo. Essa data, para Pedro, tem forte significado. Em 2018 ele entrou para a triste estatística do Ceará, sendo um dos 608 trabalhadores resgatados nos últimos 25 anos. Na última década foram 289. O Sistema Verdes Mares conversou nesta quinta-feira (28) com o homem que por 40 dias viveu em condições sub-humanas na cidade de Beberibe. "Foi um sofrimento grande", diz Pedro

Proposta e esperança 

Tudo começou com uma proposta de emprego que, embora não fosse tão tentadora, conforme ele mesmo avalia, teria grande valia para a "ajudar no sustento de casa". O ano era 2018. Desempregado, assim como sua esposa, Pedro não conseguia trabalho fixo em sua cidade natal, Viçosa do Ceará. "Vivia de bico" - expressão usada para fazer referência a um trabalho esporádico, sem vínculos ou garantia de periodicidade. 

"Um amigo meu disse que tinha um homem atrás de pessoas que trabalhassem como pedreiro. Ele pagava R$ 80 a diária, dava refeição e um local para dormir. A gente ia trabalhar em uma obra, por 15 dias. Depois desse período, voltava para casa. Aceitei. A situação estava muito ruim. Eu desempregado, minha mulher também fazendo apenas bico.Tinha dia que não tinha nem como comprar comida para os meninos", relatou Pedro.

Proposta aceita, Pedro embarcou para Beberibe. Na bagagem, poucas roupas e muita esperança de retornar com algum dinheiro que pudesse aliviar a situação da família. 

Início de um pesadelo

Logo no primeiro dia, a esperança foi nocauteada pela dura realidade encontrada por Pedro e outros nove homens também atraídos pela proposta salarial. "Não era nada do que ele tinha dito. A gente comia só uma vez por dia. O lanche da manhã era só café puro, não tinha pão, não tinha nada. Nem água para tomar banho tinha no local. Era muito sofrimento".

Legenda: Muitos só faziam uma única refeição por dia
Foto: Divulgação

A única parte verídica do que fora mencionada pelo "contratante" era a construção civil. A obra existia. O trabalho, também. Muito, por sinal. "Trabalhava de 7  da manhã até 10 horas da noite. Sem parar e todo dia, até no fim de semana. Ninguém descansava não", relembra.

Tamanho esforço físico não era recompensado nem por uma noite digna de repouso. Pedro detalha que em "dois quartos pequenos dormiam todos os dez [trabalhadores]". O local de apoio não contava com água encanada, assim como não dispunha de banheiro. "A gente fazia as necessidades no mato", acrescenta.  

Legenda: Trabalhadores não tinha acesso a água encanada, nem a banheiros
Foto: Divulgação

Dias sem fim

A promessa inicial de que seriam 15 dias de trabalho também não foi cumprida. Logo nos primeiros dias o "contratante" informou ao grupo que seria um mês de trabalho. O prazo foi além. "Vivemos 40 dias nesse inferno"

A essa altura, comunicar-se com a família era uma missão impossível para Pedro e os demais colegas. "No começo eu ligava para minha esposa todo dia. Tinha crédito no celular. Mas depois que acabou não teve mais o que fazer. O local que a gente tava era afastado demais, só chegava de camionete, não tinha como pedir ajuda de ninguém e também ninguém se arriscou sair do local, já que a gente não conhecia a área", relembra. 

Foto: Divulgação

Os "dias sem fim" fizeram brotar uma semente de esperança naquele grupo que vivia em situação de trabalho escravo contemporâneo. Foi na ausência de contato que a esposa desconfiou. Ela então acionou uma mulher que contactou o Ministério do Trabalho. Ali era, finalmente, o início do fim.

Início do fim

"Minha esposa sabe que não sou homem de ficar sem dar notícia. Quando ela desconfiou de que tinha algo errado, ligou para um pessoal e contou quem foi o caba que tinha chamado a gente", relatou Pedro.

Em posse das informações fornecidas, auditores-fiscais do Trabalho investigaram e, poucos dias depois, chegaram ao local em que estavam os dez trabalhadores. "Quando eles chegaram, a gente estava trabalhando. Ave Maria... Não gosto de nem de lembrar daquele sofrimento". Essa marca em Pedro, que transcendeu o corpo e fez morada - ainda que indesejada - em sua alma não é um caso isolado.

Desde 1995, foram resgatados mais de 55 mil pessoas em situações semelhantes no Brasil. Todas carregam histórias e acumulam marcas, assim como as de Pedro, difíceis de serem digeridas. "Hoje a gente ainda vive com dificuldade, mas pelo menos estou perto da minha família", finaliza.

Sem receber qualquer remuneração pelo trabalho desempenhado ao longo de 40 dias, Pedro voltou à Viçosa do Ceará. Hoje ele continua no ofício de pedreiro. Sua esposa segue fazendo bicos para complementar a renda familiar. 

Foto: Divulgação

Luz no futuro

Histórias como a Pedro apesar de ainda ecoarem no Brasil, estão "cada vez menos frequentes", conforme avalia Daniel Arêa Leão Barreto, chefe de fiscalização do trabalho no Ceará. "A atuação nos últimos anos tem sido mais intensa e isso reflete na diminuição dos casos. Em 2020, por exemplo, não houve nenhum registro no Ceará".

Daniel reforça que, para uma atuação efetiva do Ministério do Trabalho, é preciso que a população denuncie, ainda que anonimamente. Essa necessidade se torna ainda mais evidente frente a redução do efetivo no número de fiscais que atuam em campo no Ceará, regredindo de 160 em 2010 para 73 em 2020.

“A redução de 45,6% dificulta o combate à contratação de mão-de-obra em situação precária e análoga à escravidão”, pontuou Daniel. “Isso nos traz preocupação, mas, ao mesmo tempo, observamos que houve redução de casos ilegais graças ao combate sistemático da fiscalização”. 

Em casos de flagrantes, a lei prevê multa e embargo das obras, para casos de construções, como foi enquadrado o contratante de Pedro. A penalização pode ser ainda na esfera criminal. Neste caso, o Ministério do Trabalho direciona toda documentação ao Ministério Público. 

Situações análogas ao trabalho escravo: 

  • Trabalhos forçados: manter a pessoa no serviço através de fraudes, isolamento geográfico, ameaças e violências físicas e psicológicas
  • Jornada exaustiva: em que o trabalhador é submetido a esforço excessivo ou sobrecarga de trabalho que acarreta a danos à sua saúde ou risco de vida
  • Condições degradantes: incompatíveis com a dignidade humana, caracterizadas pela violação de direitos fundamentais coloquem em risco a saúde e a vida do trabalhador
  • Servidão por dívida: fazer o trabalhador contrair ilegalmente um débito e prendê-lo a ele

Redução 

O Ceará é o terceiro estado do Nordeste com o menor número (608) de pessoas localizadas em situação de trabalho escravo contemporâneo desde que a condição foi reconhecida no Brasil, em 1995. O Rio Grande do Norte figura com a segunda soma mais baixa de casos na região, totalizando 79. Pernambuco desponta como modelo, por não registrar nenhum caso nessas duas últimas décadas e meia.

Em todo o País, foram encontradas 55.712 vítimas em circunstâncias de trabalho análogas às de escravo neste recorte temporal. Os dados são do Painel de Informações e Estatísticas da Inspeção do Trabalho no Brasil, compilados pela Secretaria de Inspeção do Trabalho do Ministério da Economia. 

Número no Ceará desde 1995

  • 1.043 pessoas tiveram os contratos formalizados no curso de ação fiscal;
  • 85 estabelecimentos foram fiscalizados;
  • 563 guias de seguro desemprego foram emitidas;
  • R$ 1.226.728,48 em verbas rescisórias pagas aos trabalhadores.

Perfil das vítimas 

As atividades econômicas que concentraram as irregularidades foram o cultivo de café (140), a produção de carvão vegetal (107), o comércio varejista (91), o cultivo de cebola (65) e a montagem industrial (63). Em 2020 prevaleceram as ocorrências de trabalho escravo no meio rural, com percentuais muito próximos aos de 2019. O quantitativo de casos de trabalho escravo rural foi de, aproximadamente, 78% do total. 

O trabalho escravo urbano teve 211 vítimas em atividades econômicas, dentre elas: comércio varejista de produtos não especificados (78), montagem industrial (63), construção civil (38). No meio urbano foram resgatadas pessoas de trabalho escravo doméstico.

Migrantes

Em 2021 foram resgatados 41 migrantes em todo o País, sendo 15 paraguaios, 10 peruanos, oito venezuelanos, cinco bolivianos, dois chineses e uma filipina. A Lei de Migração prevê a autorização de residência de vítima de tráfico de pessoas, de trabalho escravo ou de violação de direito agravada por sua condição migratória.

Nesses casos, o requerimento é encaminhado ao Ministério da Justiça e Segurança Pública pela Inspeção do Trabalho, garantindo a permanência do migrante no País, caso seja sua vontade.

Psicológico afetado

Amparos legais não são as únicas demandas destas pessoas que vivenciaram momentos degradantes. A psicóloga Aryele  Lima, especialista em terapia cognitiva comportamental, explica que esse tipo experiência "rebaixa a pessoa social e emocionalmente, uma vez que ela está completamente fora do que seria o modelo de convivência em sociedade".

A profissional explica que durante o trabalho análogo à escravidão, a pessoa pode desenvolver transtornos mentais. "Alguns transtornos que estão relacionados a este tipo de experiência são os traumas e a estressores; transtornos de estresse pós traumático; transtorno de estresse agudo; transtorno de adaptação;  transtorno de pânico; transtorno de fobia específica, dentre outros".

Pedro vivencia alguns desses transtornos na prática. Mesmo passados dois anos desde que foi resgatado pelos auditores-fiscais, ele conta que passou a ser mais céticos nas propostas que lhe aparecem. Segundo Aryele, essa postura defensiva pode ser explicada pela psicologia.

"Tratamentos desumanos provocam grande sofrimento, as vítimas são submetidas a esforços que ultrapassam seus limites, dessa forma o meio em que essa pessoa se encontra acaba levando ela a ter comportamentos primitivos e disfuncionais. O medo, raiva, tristeza, são emoções sentidas de forma muito intensa e que estão presentes no dia-a-dia dessas vítimas", detalha Aryele.

Traumas

A especialista detalha que pessoas que vivenciam uma situação de extremo sofrimento por um curto período, estão propensas a desencadear um trauma ou transtorno psicológico relacionado a essa situação especifica.

"Transtornos esses que vão estar relacionados ao contato social, a confiança, as mudanças comportamentais e que impedirão que esse indivíduo se relacione bem e tenha comportamentos adequados a sua rotina", conclui Aryele Lima. 

 

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