Frei Damião e a evangelização do Nordeste
Frei Hermínio B. de Oliveira (*)
especial para o Regional
Hoje é o dia de relembrarmos mais uma vez o missionário do Nordeste, Frei Damião de Bozzano, nascido em 5/11/1898.
Aos 16 anos ele ingressou na Ordem dos Capuchinhos recebendo o hábito no Convento de Vila Basílica. Mas logo foi convocado para o Exército e na 1ª Grande Guerra foi enviado para um acampamento em Zarra, zona disputada pela antiga Iugoslávia.
Após o serviço militar ele cursou Teologia no Colégio Internacional dos Capuchinhos, em Roma, e foi ordenado sacerdote em 5 de agosto de 1923. Em seguida ingressou na Universidade Gregoriana onde doutorou-se em Teologia Dogmática e fez bacharelado em Direito Canônico. De imediato trabalhou como professor dos jovens religiosos no Convento de Massa.
MISSIONÁRIOS – É possível identificar a constante presença de missionários capuchinhos no Brasil, desde os primeiros aqui chagados em 1612, frei Cláudio de Abbeville e frei Ivo d’Evreux, que com seus livros, cada um escreveu um, iniciaram a moderna história do Maranhão.
Depois deles vieram frei Cirilo de Mayenne e em seguida frei Martinho de Nantes, cujo livro, História de uma Missão faz parte da famosa Coleção Brasiliana. Ele lutou muito contra o c oronel Dias D’Ávila, “um homem pequeno, feio e muito ambicioso”, pois se apropriou de 600 quilômetros de terra ao longo do rio São Francisco.
Frei Carlos de la Spezia, a partir de 1752, pregou missões no Nordeste por cerca de 30 anos. Frei Vidal da Penha entre 1780 e 1820 pregou em todo a região nordestina e ficou imortalizado no imaginário popular, por seus inflamados sermões sobre os “novíssimos do homem”. Ele está perpetuado na literatura de cordel, por suas supostas profecias sobre o fim do mundo.
Frei Apolônio de Todi, que desde 1750 até início do século seguinte, pregou missões populares, especialmente no interior da Bahia. Ele construiu em Monte Santo a Capela do Senhor Morto e uma Via Sacra na subida de um monte ao longo de três quilômetros. Até hoje se realizam ali as celebrações da Sexta-feira Santa, com grande participação popular.
FREI DAMIÃO – Embora doutor pela Universidade Gregoriana de Roma e professor, Frei Damião tinha dentro de si o ideal missionário, por isso ele pediu e obteve de seus superiores a licença de vir para as missões no Brasil. Desembarcou no porto de Recife em maio de 1931. Após três meses de aperfeiçoamento da língua portuguesa no Convento da Penha, ele lançou-se ao trabalho. Sua primeira celebração pública oficial aconteceu em 5 de agosto de 1931, em Gravatá, no agreste pernambucano. O missionário agradou pela simplicidade e caridade no acolhimento ao povo, sendo logo convidado para um tríduo na festa de São Miguel, realizada em 29 de setembro, no qual confessou por três dias de modo quase ininterrupto para grande edificação do povo. A fama de “santo” – no sentido popular – começou a se espalhar pelo Nordeste e começaram a se multiplicar os convites.
A MENSAGEM – De muito freqüentes, com o passar dos anos, os convites se tornaram quase contínuos, sendo necessário preparar uma agenda. A partir de 1947 ele passou a ter um confrade, frei Fernando Rossi, como auxiliar permanente que o acompanhou até a sua morte.
Como sacerdote ordenado em 1923 marcado pelo peso do conhecido “juramento antimodernista” de São Pio X (de 1903), que os jovens tinham de pronunciar antes da ordenação, Frei Damião tinha uma mensagem conservadora, mas uma doutrina sólida. Note-se que o juramento antimodernista só foi abolido por volta de 1975, pois eu mesmo fui obrigado a pronunciá-lo em Salvador da Bahia, em 1972.
O Convento da Penha editou em 1953 um livro da autoria de Frei Damião: “Em Defesa da Fé”, onde em 150 páginas ele discorre sobre 21 grandes temas. O título e o conteúdo mostram uma mentalidade conservadora. Eis alguns temas: A verdadeira Igreja – A infalibilidade do Papa – A indissolubilidade do matrimônio – O culto de Deus, dos santos e das imagens – A intercessão da Virgem Santíssima e dos anjos – O purgatório.
Em seus sermões Frei Damião combatia explicita e duramente o concubinato, o adultério, o divórcio, o uso da pílula anticoncepcional, as roupas decotadas. Apresentava uma imagem terrível do inferno, dizendo que lá o calor era bilhões de vezes mais quente do que o do Nordeste no tempo da seca e que as labaredas queimam sem parar o corpo dos adúlteros, das prostitutas, dos afeminados, dos criminosos.
Com a aura de renovação da Igreja Católica advinda com o Concílio Ecumênico Vaticano II (1962-1965), o discurso de Frei Damião passou a ser considerado muito conservador. Embora a Igreja não tenha mudado nenhum dogma, propôs uma atualização no modo de comunicar a sua mensagem. Um dos temas preferidos de Frei Damião, como dos missionários antigos, “os novíssimos do homem”, simplesmente saiu de pauta.
Algumas dioceses, se não o proibiram, ao menos desaconselharam que ele fosse convidado para pregar em suas paróquias. O povo, porém, jamais se afastou dele atraído por seu carisma, sua santidade pessoal, sua vida austera e a extrema dedicação às missões, mesmo em idade avançada. Isso fez com que muitos párocos, por insistência do povo que o considerava um enviado de Deus, o chamassem mesmo contra o parecer dos bispos. Pois, apesar da roupagem conservadora, sua doutrina não estava fundamentalmente contra o ensinamento da Igreja e por isso ele não podia ser condenado.
A MISTIFICAÇÃO – O povo nordestino tem muita facilidade de mistificar quem realmente tem méritos. O Padre Cícero Romão Batista foi um desses que o povo mistificou. Frei Damião é outro que pela fidelidade ao evangelho, pela pregação simples, conselheira e conciliadora, sendo ao mesmo tempo austero e misericordioso, fiel à Igreja e à tradição, causava grande admiração ao povo que o tem como um santo.
Frei Damião não conheceu o Padre Cícero que morreu em 1934. Ele esteve pela primeira vez em Juazeiro do Norte, em 1936, e desde esse tempo alguns devotos o identificaram com o religioso cearense. Esse fato está registrado no livro de Tombo da Paróquia de Nossa Senhora das Dores (folha 32 v. “Viram muitos na pessoa de Frei Damião algo de mistério e nele encarnaram o Padre Cícero Romão Batista”. E a partir daí começou a sua popularidade.
A meu ver a razão da popularidade de Frei Damião está na coerência e aceitação de sua mensagem, na clareza meridiana de sua doutrina e na constatação da continuidade do discurso e da doutrina pregada por antigos missionários dos séculos XVII, XVIII e XIX. Isso pode ser provado pela teoria do “inconsciente coletivo” de Karl Gustav Jung, pela qual o povo se identifica de modo inconsciente com valores do passado. Frei Damião mantinha o caráter apocalíptico de antigos pregadores, mas não lhe faltava a caridade e a capacidade de confortar os pecadores, os pobres e os infelizes, dando-lhes esperança no atendimento pessoal.
No fim de sua vida não foram poucos os políticos de todos os níveis, desde um candidato a presidente da república, Collor de Melo, até prefeitos e vereadores, que tentaram se aproveitar de seu prestígio, tirando fotos a seu lado e convidando-o para inaugurações.
Frei Damião faleceu em 31 de maio de l997. O seu processo de beatificação em vista da canonização, já foi introduzido junto ao Vaticano.
(*) Professor de Patrística no Itep