Contador de histórias faz fama no Sertão Central
Alex Pimentel
sucursal Quixadá
Estórias de Saci Pererê e Mula-sem-cabeça. As crianças sertanejas já estão enjoadas de ouvir na porta de casa ou nas escolas. Os adultos nem se interessam mais por esses mitos populares. Quem mora sertão adentro, “no meio dos matos”, como diz o matuto, ouve aqui e acolá alguma estória de alguém que à noite, na estrada escura, “meteu o pé na carreira”. Garantem que não foi por conta de nenhuma coisa estranha não. Era medo de assalto mesmo.
Os personagens populares, que até algum tempo eram de assustar, passaram a ser motivo de gozação em Quixadá. Que o digam os integrantes do bloco carnavalesco “Bixo-papão”. Transformaram o personagem folclórico, criado para amedrontar criancinhas que não querem dormir, em mascote da agremiação. O “Bixo” só assusta mesmo no período momino, quando disputa com o Babau, o “Pitchu-babau”, o título de melhor cordão de folia.
Embora esses mitos brasileiros sejam banalizados, sua estórias persistem na região, graças aos trabalhos desenvolvidos nos estabelecimentos de ensino. Mas para as crianças tem sido mais interessante as histórias de um curandeiro rezador. Ele prende a atenção de muita gente com seus “causos de trancoso”, como ele mesmo diz. É Expedito Nogueira. Quando começa a contar algum fato, a roda de espectadores silencia. Do menino de colo à senhora idosa, todos prestam atenção. A medida que o enredo vai avançando, o público, já meio cismado, espera seu desfecho.
Uma das preferidas tem até cunho científico. Expedito explica como a água do mar ficou salgada. “Há muito tempo atrás, há milhares de anos, um ambicioso comerciante se deparou com um homem que havia construído uma engenhoca. A estranha máquina produzia sal. A iguaria era coisa preciosa na época. Não tinha comida que não fosse insossa. Apenas o inventor, sua família e poucos amigos tinham esse privilégio de comer com sal. O esperto comerciante se interessou pela máquina. Se a adquirisse, teria certeza de fortuna. E conseguiu fazer um bom negócio. Mas de tão apressado que saiu, com receio do negócio ser desfeito, não atentou para detalhes do funcionamento. Colocou o equipamento num navio, para levá-lo ao outro lado do mundo, onde morava. No caminho resolveu testá-lo. E sem parar, o engenho passou a produzir muito sal. O navio já corria risco de afundar. E por sua pressa, o comerciante não aprendeu a desligar o moinho. A alternativa foi jogar a máquina na água”.
Expedito complementa: “o moinho está perdido por aí. Em algum lugar no fundo do oceano. Enquanto estiver ligado, a água do mar vai continuar salgada”. Tem gente que ri. Mas há também quem vê lógica nas suas explicações. De uma forma ou de outra, todos aplaudem. Ele diz que tem um baú cheinho dessas histórias. Mas desencoraja quem tentar “roubá-las”. “Guardo as histórias no baú da minha cachola”.
O psicólogo Hidário Cavalcante realiza estudos de pós-graduação em Antropologia. Se interessou pelos interessantes “causos” de trancoso e seu protagonista. Passou a analisar os feitos do contador. Descobriu que Expedito ficou cego quando, por ironia, participava de uma tradicional dança popular, o bumba-meu-boi. Desde pequeno, fazia questão de participar da brincadeira. Se empolgava tanto que a máscara de papelão logo se desmanchava na face. Resolveu utilizar algo mais resistente, um equipamento dos soldados americanos usado na II Grande Guerra que ganhara de presente. Brincou um pouco e sentiu ardor nos olhos. Havia algum produto químico no equipamento. O líquido afetou sua vista. Deixou de enxergar aos 26 anos. Na época era o caboclo do boi.
Do ponto de vista do especialista, apesar da mídia televisiva e radiofônica ejetar constantemente no mercado a chamada cultura consumista, ainda existe muitos guardiões dos nossos mitos e lendas. Expedito é um exemplo vivo dentre tantos outros que se espalham pela região. Ele está velho. Mas se deixar, vira a noite contando as histórias estranhas que herdou do pai. Já o pai pegou do avô, o avô do bisavô... os filhos já apreenderam todas. O estudioso, também. Encontrou no ancião de 76 anos um rico acervo lendário.