Cariús surgiu com ferrovia

Escrito por Redação ,
Legenda: O trem exercia o papel de propulsor do progresso e também dos interesses do governo. Modificou hábitos entre os moradores e enriqueceu a vida social
Foto: Honório Barbosa
O crescimento do antigo Distrito Cariús está associado à construção da ferrovia, a partir de Iguatu

Cariús. No primeiro quartel do século passado, o projeto de construção do Açude Poço dos Paus e a construção da ferrovia a partir da cidade de Iguatu atraíram centenas de pessoas em busca de trabalho e de oportunidade de abrir empresas comerciais. A consequência foi o rápido crescimento. O antigo Distrito de Jucás foi mais uma localidade favorecida pela linha férrea no sertão cearense.

Aos 98 anos, a professora aposentada, Diva Targino Cavalcante, traz na mente e no coração memória viva daquela época. São lembranças da infância e da adolescência que ficaram indeléveis. Em 1925, ela chegou a Cariús, na companhia do pai, Joaquim Targino, que foi atraído pelas notícias da construção do açude e instalou uma loja de tecidos. "Tinha um bom comércio e logo o lugar cresceu", contou. "Foram construídos prédios, casas e aos sábados havia uma feira intensa".

O crescimento do antigo Distrito Cariús está associado ao projeto da administração do presidente Epitácio Pessoa em construir o Açude Poço dos Paus. Essa era a denominação do lugar. A ferrovia impulsionou o progresso. Facilitou o transporte de material, máquinas, importadas da Inglaterra e dos Estados Unidos, e de operários, que chegaram de várias cidades.

O ramal foi aberto em 1922, época da construção da antiga estação ferroviária, onde hoje funciona o hospital municipal. Essas obras deram origem à cidade, mas que somente alcançaria a emancipação política de Jucás em 1954.

O flagelo de sucessivas secas que atingiam o Nordeste reclamava providências para combater os seus efeitos. Em 1915, houve intensa estiagem, que resultou na morte de milhares de agricultores. "Meus pais contavam que foram anos difíceis e de muito sofrimento para os flagelados", recorda a professora.

Projetos de açudes

A antiga Inspetoria Federal de Obras contra as Secas (IFOCS), hoje Dnocs, projetou a construção de vários açudes no Nordeste. Um deles foi o Poço dos Paus, em Cariús, e Orós, na cidade de mesmo nome. A empresa inglesa Dwight P Robinson & Cia foi contratada pelo governo para executar as obras de barragem. Foram construídas três casas para engenheiros, uma para o diretor, e várias que formaram a vila operária. "Havia acomodação para operários negros, ex-escravos, que ficavam isoladas das outras habitações", lembra Diva. O projeto, porém, não saiu do papel. O governo mudou. Assumiu a presidência Artur Bernardes. O orçamento ficou superior ao estipulado e em 1923 as obras foram suspensas.

Mesmo assim, a cidade continuou crescendo graças à ferrovia que transportava passageiros e mercadorias. Três indústrias de beneficiamento de algodão foram instaladas. Os fardos de pluma eram transportados para Iguatu e de lá para Fortaleza, onde seriam transportados em fios para matéria-prima das fábricas de tecelagem.

"Era simpático e agradável morar aqui", afirma ela. "As casas construídas pela empresa eram altas, tinham alpendres, jardins e nas janelas havia telas para não entrar mosquitos".

Engenheiros e técnicos foram embora, mas muitos operários permaneceram. Um hospital, uma fábrica de gelo, uma casa de força e seis caldeiras que forneciam energia até para a cidade de Jucás e uma ponte pênsil sobre o Rio Cariús permaneceram por mais algum tempo. A ferrovia permaneceria por mais seis décadas. Em 1976, ainda havia trens partindo de Iguatu para Cariús, mas em 1978 eles não são mais citados.

A médica psiquiatra, Angélica Sales, confirma a importância da ferrovia que facilitou as comunicações e o transporte de carga e de passageiros. "A cidade surgiu com o projeto do açude e com a chegada do trem". A sobrinha dela, arquiteta Isabela Sales Bridi, apresentou monografia de término de curso analisando aspectos arquitetônicos das casas construídas pelos americanos. No documento, há referência sobre a história da cidade, a ferrovia e o projeto de construção da barragem.

Em 1932, houve intensa seca e o drama dos flagelados ressurgiu. Milhares tentavam chegar a Fortaleza e o Governo do Estado, na época, instalou campos de concentração para barrar os deserdados do sertão em Senador Pompeu, Ipu, Quixadá, Quixeramobim, Cariús e Crato. Os retirantes não podiam embarcar no trem para a Capital. Era preciso evitar a tragédia de 1915, quando os flagelados ocuparam ruas de Fortaleza, levando fome e doenças. (H.B.)

Recordação

"As pessoas eram esperadas na estação do trem por moradores bem trajados, com terno e vestido"
Diva Targino
Professora aposentada

MAIS INFORMAÇÕES
Prefeitura do Município de Cariús: (88) 3514.1222
Região do Centro-Sul
http://www.estacoesferroviarias.com.br

NO CEARÁ
Transporte foi extinto em 1988

Durante décadas, a estação ferroviária foi o centro da vida social e econômica de várias cidades do Interior

Iguatu. Em 1909, a Estrada de Ferro Baturité e a Estrada de Ferro Sobral foram unificadas e surgiu uma nova empresa, denominada Rede Viação Cearense (RVC). Naquela época, os ingleses construíram a ferrovia no Ceará. Décadas depois, surgiria a Rede Ferroviária Federal S.A (RFFSA), empresa pública, do Governo Federal, que no ano de 1997 foi privatizada pela Companhia Ferroviária do Nordeste (CFN). No Estado, o transporte ferroviário de passageiro foi extinto em 1988.

Os registros históricos revelam que em outubro de 1910, os trilhos da Estrada de Ferro de Baturité chegavam a dois quilômetros da cidade de Iguatu. A estação desta cidade foi inaugurada no dia 5 de novembro daquele ano. O ramal Sul que partiu de Fortaleza em 1870 iria ser concluído 53 anos depois, finalizando na cidade do Crato.

Os trilhos cortaram serras e o vasto sertão, venceram riachos e, também, rios sobre longas pontes metálicas.

A ferrovia transformou o cenário urbano em várias cidades do Interior e trouxe crescimento. Iguatu é um exemplo. Foram construídas muitas casas, instalados dois hotéis e houve necessidade de implantar um novo cemitério, porque o antigo ficava próximo à estação ferroviária. O comércio expandiu com a abertura de novas lojas. A cidade ganhou um cinema.

Saudade

O ex-agente de estação, Expedito Bandeira, lembra com saudades do tempo em que trabalhou na ferrovia por três décadas seguidas. "Fiz muitas amizades e passei grande parte da minha vida dedicada à empresa", contou ele. Começou em 1957, como telegrafista e aposentou-se em 1987.

Bandeira lembra que era através do telégrafo, no antigo código Morse, que chegava o aviso de partida do trem da última estação. Era por meio dele que se dava a licença para uma nova partida. "Não havia telefone", observa. A composição transportava, em média, 200 passageiros e havia os trens de carga, que levavam algodão em pluma, animais, frutas, farinha, rapadura para a Capital, e de Fortaleza traziam produtos industrializados, bebidas, tecidos, jornais e muitas novidades.

O pesquisador Wilson Lima Verde lembra que a chegada do trem era um acontecimento social. "Dezenas de pessoas, bem vestidas, ocupavam a plataforma da estação", frisou. Os moradores iam receber parentes, amigos, simplesmente ver quem estava viajando, desembarcando, e comprar jornais e revistas que vinham da Capital. "Até a primeira metade da década de 1960, a passagem do trem era um acontecimento social, importante, que reunia as famílias", disse.

Como bem escreveu o poeta Fernando Brant, na música "Encontro e despedidas", interpretada por Milton Nascimento, "a plataforma dessa estação é a vida desse meu lugar". Durante décadas, a estação ferroviária foi o centro da vida social e econômica de várias cidades do Interior. Na década de 1980, entretanto, o trem parou de transportar passageiros. Em muitos lugares, antigos prédios da companhia ferroviária estão abandonados. As locomotivas agora só puxam vagões de carga e a velocidade média é de apenas 10 km/h porque os trilhos e os dormentes estão velhos e estragados. (H.B)