Beleza moldada em pedras

Escrito por Redação ,
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Sítio mistura histórias de suor, devoção e patriarcalismo. Mas o legado maior é a edificação singular

Quixeré. Os homens do sertão foram capazes de muita coisa por água. Até hoje o são. Mas no início do século passado um enorme e isolado sítio no Município de Quixeré abrigou uma singular história de suor e lágrimas. Como quem constrói com as próprias mãos o seu pequeno reino, um homem manteve a família em regime de semi escravidão e juntos fundaram uma pequena vila toda feita de pedra. Numa vida orquestrada ao som de marteladas, enormes blocos de pedras foram se emoldurando. Uma gruta deu origem a uma cacimba para extração de água. Um templo foi erguido para evocar o divino. E a chuva. Escondida entre as vegetações da Caatinga, a Fazenda Mato Alto misturou água, sangue, suor e segredos.

Hoje considerado um trabalho de engenharia e empreendedorismo, a história da família que viveu e moveu pedra sobre pedra ainda é ecoada pelo último dos seus sobreviventes.

Onde houver um ponto fixo com água, é lá que o homem pode fincar estacas e morar. Então uma estreita e profunda gruta deu início à Fazenda Mato Alto, a 37 quilômetros da sede do Município de Quixeré. No ano de 1914, seu José Honorato reuniu mulher, seus oito filhos e alguns homens para quebrar pedras e dar formas a uma cacimba d´água. "O carregador dessas pedras fui eu. Não foi só chegar e rebolar lá dentro não", afirma Egídio Honorato.

Memória

A realidade vivida ali a partir da segunda década dos anos 1900 está toda na memória dele, num misto de orgulho e lamentação. Da vida entre as pedras, algumas coisas que não podem ser esquecidas só são desabafadas em tom de confissão. Mas do que se pode dizer é que José Honorato, filho de seu Egídio teve por sina a lida no campo. De plantar algodão, feijão, carregar água e muitas pedras.

A Fazenda Mato Alto possui, em pedras, uma imensa casa, onde vivia a família e se abrigavam peões, uma cacimba, uma cisterna e uma espécie de templo à Nossa Senhora da Imaculada Conceição. E tudo num espaço que no período chuvoso dá um imenso verde com árvores centenárias. Se contados os arredores, a Fazenda Mato Alto dá cerca de cinco mil hectares.

A dona Maria do Carmo, mulher de seu Egídio, defende que, com tanta história que possa ter acontecido, não se pode negar o empreendedorismo do sogro, José Honorato. Um homem sem estudos, mas com coragem, disposto a erguer com pedras e fundar um pequeno vilarejo, de onde se plantou e colheu. Sem ser engenheiro, moldou pedras e ergueu paredes. Colocou os filhos e filhas para a labuta pesada como a dele.

Isolamento

Mato Alto é um lugar isolado até hoje. Tem que se andar léguas, ou dezenas de quilômetros, para chegar ao local. O que faz o caminho de volta ainda são as histórias, ainda que "a boca miúda", impressões transmitidas de uma pessoa para a outra. "Eu soube que lá uma família ergueu a própria casa e várias edificações com pedras, mas eu nunca vi, só ouvi falar", conta a dona de casa Gumercinda de Sousa, de 74 anos. Com seu tempo todo de vida o mais que saiu de casa foi para ir a Limoeiro do Norte, cidade vizinha, planejar uma consulta.

Mas outras histórias contadas sobre a família Honorato são confirmadas só de forma acanhada e reticente por seu Egídio. Devoto de nossa senhora como o pai foi um dia, crê que tem coisas de família que na família devem permanecer. Mas dona Maria do Carmo admite que as lembranças de Egídio são anunciadas com lágrimas.

Do regime patriarcal de seu José Honorato, um homem empreendedor, mas obcecado pela sina de suas construções de pedra, ficou de lembrança o orgulho das construções. A mais especial delas seria o templo que abriga uma capela para Nossa Senhora da Imaculada Conceição (antes instalada dentro de uma gruta).

Foi na fazenda que seu Egídio, os irmãos e irmãs não só calejaram as mãos como perderam as unhas, de tanto carregarem pedras e as sobreporem em construções. Na Fazenda Mato Alto, o sangue das mãos, misturado ao suor, fizeram o primeiro (e involuntário) reboco das paredes de pedras.

"Ah, meu pai, me proteja pelo amor de Deus. E pelos meus familiares me entrego nas vossas mãos, ó pai, sob a proteção da imaculada conceição", pede em oração seu Egídio, enquanto transporta a imagem da Imaculada Conceição.

Uma cena forte de quem para quem se usou toda a força e o sangue que a vida lhe dispôs para trabalhar. Imagem registrada na lente do jovem documentarista Arthur Leite, que conseguiu ecoar a história da Fazenda Mato Alto para além das paredes de pedra.

MAIS INFORMAÇÕES
Fazenda Mato Alto -
"Pedra por Pedra" - Quixeré
Telefones: Arthur Leite - (85) 8843.5244 / (88) 9687.0360


IMAGEM
Saga dos Honorato é registrada em vídeo

Quixeré. Um jovem de Quixeré, movido pela curiosidade e impressionado com o que viu, decidiu e conseguiu levar a história da Fazenda Mato Alto para as telas do cinema. O documentário de Arthur Leite, de 19 anos, vem conquistando prêmios em festivais pelo País.

Ajudando um casal de idosos a resgatar as lembranças de uma memória de pedras e luta, o documentarista descobriu a história do último sobrevivente, e por meio dela também descobriu o próprio talento para a arte do audiovisual.

O filme conta de maneira não linear e sem preocupação explicativa a saga da família Honorato, por meio da construção de uma linguagem inovadora à do documentário tradicional, revelando sonho e vida de um patriarca. Filhos e esposa não foram poupados de trabalho semiescravos. É o último filho vivo, seu Egídio, e também sua esposa Maria do Carmo que exumam os fantasmas do passado e as reminiscências da memória de uma família inteira.

Harmonia

"Espero que o documentário Mato Alto tenha ampla repercussão, a fim de que possamos tomar medidas reais na tentativa de preservar o magnífico complexo que representa. Ou seja, não só a exuberância de suas paredes de pedra e a perfeita harmonia com a geografia erma do lugar, mas a espetacular arquitetura espontânea, ali concretizada pela força decisiva e as mãos calejadas de um sertanejo nordestino do século XX, cuja trajetória evidencia a pujança altaneira do homem cearense", afirma Arthur. Ele ficou sabendo do local pela professora de português, Elizabeth Lima. "Quando vi as fotos de lá fiquei encantado", conta.

O "Revelando os Brasis" é parte de um conjunto de ações do Ministério da Cultura para democratizar o acesso aos meios de produção audiovisual, possibilitando aos moradores dos pequenos municípios brasileiros contar suas próprias histórias por meio do vídeo. A iniciativa é um instrumento de registro da memória e da diversidade cultural do País e revela novos olhares sobre o Brasil.

O filme dirigido por Arthur teve fotografia e câmera por Lilia Moema, sonoplastia com Danilo Carvalho e Camila Battisteti. As fotos-still são de Francisco Flor. A realização da obra é do Instituto Marlin Azul, com patrocínio da Petrobras e, ainda, tem parceria com a Secretaria do Audiovisual do Ministério da Cultura. O projeto conta, também, com parceria do Canal Futura e apoios da TV Brasil e da Riofilme.

MELQUÍADES JÚNIOR
Repórter