Teletrabalho na Defensoria: o que está em jogo na votação sobre trabalho remoto de defensores
Proposta que regulamenta a atuação também de forma remota no órgão deve ser retomada no Conselho Superior da instituição
A necessidade de viajar junto à mãe para consultas em Fortaleza fez com que a técnica de enfermagem Vanessa Rayane precisasse do atendimento da Defensoria Pública do Estado. Monitorada por meio da tornozeleira eletrônica e sem poder deixar a cidade do Crato, ela precisava de autorização judicial cada vez que precisava acompanhar a mãe, Francisca Evalmiza Queiroz.
Com as restrições impostas pela pandemia de Covid-19 - que tornaram remoto o atendimento de defensores e defensoras públicas -, o contato com a Defensoria foi feito por whatsapp e telefone.
O atendimento remoto permitiu, inclusive, que ela ficasse mais tranquila quanto aos riscos de transmissão de Covid-19, já que a mãe, por conta de problemas renais, estava mais vulnerável à doença. "Tive muita assistência. Não tive dificuldade", conta ela sobre o processo.
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Morando em Maracanaú, a costureira Elisangela Rodrigues teve uma experiência diferente. O filho dela está no sistema prisional há três anos e ela acompanha o processo por meio da Defensoria Pública. "Eu insistia sempre. (Mais) de doze tentativas, só teve duas vezes que consegui falar (com a instituição)", relata.
Em uma das situações, ela acessou os canais virtuais durante três dias para ser atendida. "Quando atendem, são vagas as informações. (...) Não tem como falar com o defensor, tem que ligar novamente para saber", conta.
Apesar de opostos, os dois casos são exemplos da forma como a Defensoria Pública precisou se adaptar durante a pandemia de Covid-19 e a vigência das medidas restritivas para continuar atendendo o público assistido pelo órgão. Agora, o trabalho remoto, também conhecido como teletrabalho, volta à pauta da instituição - que retornou ao atendimento presencial em março - para discussão sobre se mantém essa modalidade na rotina ou não.
Discussão sobre forma de trabalho
O Conselho Superior da Defensoria Pública-Geral pode retomar, nesta sexta-feira (20), a votação a respeito da regulamentação do trabalho remoto. Proposta por um dos conselheiros, o defensor Francisco Rubens de Lima Júnior, a medida permitiria aos defensores públicos escolherem se querem trabalhar de forma remota ou se prosseguem com a rotina presencial - medida que teria impacto direto no atendimento à população.
A iniciativa tem gerado críticas da sociedade civil organizada. Em nota assinada por mais de 70 entidades, a possibilidade de teletrabalho foi caracterizada como uma "grave ameaça" e que, se aprovada, pode indicar um "distanciamento cada vez maior" entre a Defensoria e o público assistido pelo órgão.
Quem defende a proposta, por outro lado, fala da importância de regulamentar o trabalho remoto como mais uma modalidade de atendimento ao público - não excluindo o presencial -, mas também como parte da rotina processual de defensores públicos. Entre os argumentos, está a possibilidade de aumento de produtividade e maior celeridade no atendimento.
Discussão no Conselho Superior
Formado por sete conselheiros, incluindo a Defensora Pública-Geral, Elizabeth Chagas, o Conselho Superior da Defensoria Pública é responsável pelas atividades consultivas e normativas dentro do órgão.
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Era prevista para o último dia 6 de maio a votação da proposta que regulamenta o teletrabalho na Defensoria Pública. Contudo, o adiamento ocorreu após a Associação dos Defensores Públicos do Estado do Ceará (ADPEC) - que tem assento no Conselho, mas não tem direito a voto - pedir o sobrestamento da pauta. Três conselheiros resolveram aguardar a manifestação da entidade antes de votar.
Com o adiamento, os quatro conselheiros que já haviam apresentado o voto podem mudar o posicionamento, incluindo o relator, Jorge Bheron Rocha. A princípio, ele votou por rejeitar a proposta e propôs a criação de Comissão de Estudos para a temática com a presença de defensores e sociedade civil, no que foi acompanhado por três conselheiros.
A expectativa é de que o assunto volte à pauta da sessão desta sexta-feira (20). Apesar de, em tese, haver votos suficientes para a rejeição, a possibilidade de mudança nas avaliações dos conselheiros torna a situação indefinida.
Por outro lado, por meio da assessoria de imprensa, a Administração Superior da Defensoria Geral informou que "não coaduna com a proposta apresentada de teletrabalho", inclusive com o voto pela rejeição de Elizabeth Chagas. No momento, todo o trabalho e atendimentos realizados pelo órgão estão em regime presencial.
Barreiras para atendimento
Entidades que acompanham públicos assistidos pela Defensoria relatam barreiras que já dificultavam o pleno acesso desta população aos serviços, como a distância até as sedes do órgão e a quantidade limitada de fichas para o atendimento.
A implementação do teletrabalho como permanente, no entanto, é vista com muitas ressalvas por movimentos da sociedade civil organizada pelo potencial de "distanciamento" que pode trazer entre defensores e assistidos.
"Restringe mais ainda o acesso de quem precisa do serviço. Esse é um público marcado por diversas dificuldades no acesso. As pesquisas mostram que pessoas das classes D e E não acessam a internet todo dia, usam a internet de alguém. Não tem esse suporte. E esse é o público da Defensoria, o público que tem direitos violados e que precisa de serviço jurídico".
Localizado no Grande Bom Jardim, o Centro de Defesa da Vida Herbert de Sousa foi uma das entidades a assinar nota contrária à regulamentação do teletrabalho. Lúcia Albuquerque relata as dificuldades encontradas pela população durante a pandemia de Covid-19 na busca pelo agendamento e atendimento - principalmente pela falta de acesso ou de conhecimento sobre o ambiente virtual.
Integrante da Rede de Mulheres Negras do Ceará, Luciana Lindenmeyer aponta que a medida pode distanciar a Defensoria, que já tem "um déficit com a população". Ela cita, por exemplo, as dificuldades de interiorização e de garantir a presença da Defensoria em todas as comarcas.
"A pandemia foi uma exceção, não pode virar uma regra. (...) Tem muito a se avançar no sistema como um todo, para ficar gastando energia para implementar o teletrabalho", critica.
Vulnerabilidade digital
Os vulneráveis digitais são a maior preocupação quando se fala da permanência do trabalho remoto para defensores e defensoras. São pessoas sem acesso diário à internet, que não possuem os equipamentos necessários ou mesmo que têm barreiras de conhecimento para a utilização dessas ferramentas.
Co-fundadora do movimento Mães da Periferia de Vítimas por Violência Policial do Estado do Ceará, Edna Carla afirma que eventual teletrabalho feito pela Defensoria "não tem condição de assistir a periferia". "Muitas das mães não conseguem comprar a alimentação, quanto mais ter um celular para ter acesso a internet, videochamada, whatsapp", afirma.
Edna é a mãe de Alef Souza Cavalcante, uma das vítimas da Chacina do Curió, ocorrida em 2015 em Fortaleza. Ela fala sobre como a espera é "adoecedora" e que a implementação do trabalho remoto pode piorar a situação para todas as mães que esperam a resolução de casos semelhantes ao dela.
"A Defensoria jamais pode ser teletrabalho, a não ser porque a vítima não queira ir lá, prefira ficar no lugar que está. Muitas das mães querem ser ouvidas. Embora tenham certeza da impunidade, precisam ser ouvidas".
Integrante do Coletivo Vozes, que também assina a nota, Alessandra Felix relata que precisou acionar a Ouvidoria da Defensoria para conseguir um canal de comunicação com a defensora que acompanha o processo do filho - que está no sistema prisional. "Mesmo eu tendo toda uma rede, porque estou engajada com os movimentos sociais, mesmo sendo uma mãe que se organiza, eu tive dificuldades de acessar a Defensoria", explica.
Ela cita casos de familiares que não conseguiam acessar as ferramentas, enquanto outros, mesmo conseguindo, não obtinham resposta. "Se for aprovada, ficamos preocupados com a garantia de direitos. (...) Vai se criar um abismo social", afirma.
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Defesa da regulação
Diretora parlamentar da ADPEC, a defensora pública Kelviane Barros afirma que o atendimento à população vulnerável digital é um dos pontos em que é preciso "tomar muito cuidado" dentro da implementação do teletrabalho, mas defende que essa seja uma modalidade regulada pela Defensoria Pública.
Ela afirma que mesmo que a atual proposta em discussão não seja aprovada, a ADPEC defende que o Conselho Superior "regule a possibilidade de teletrabalho como uma modalidade a mais (de atendimento) e não como única possibilidade".
Além desse cuidado, outras etapas da atuação do defensor também devem continuar presenciais, como a inspeção em unidades prisionais e a realização de audiências de custódia, entre outros, completa a defensora.
Ela cita que outros órgãos do sistema de Justiça, como o próprio Tribunal de Justiça do Ceará (TJCE), já conta com mecanismos no âmbito digital, como atendimentos e realização de audiências por meio virtual.
Barros diz ainda que houve, durante a pandemia, "depoimentos de que o uso da tecnologia facilitou muitas vezes o atendimento" de defensores e que traz vantagens sobre o trabalho realizado exclusivamente de forma presencial.
"Parte do público assistido tem acesso, pode se adaptar bem ao novo modelo. Temos àqueles que cuidam de outras pessoas, que trabalham o dia todo ou que tem outras atividades que não permite deslocamento. (...) Com esse formato, as pessoas poderiam ser atendidas de onde estivessem".
Sobre a possibilidade de distanciamento, a defensora afirma que a intenção é que "seja uma escolha do atendido ser presencial ou virtualmente". "Vamos manter o contato com o público e trazer mais uma modalidade (de atendimento)", completa.