Legislativo Judiciário Executivo

Teletrabalho na Defensoria: o que está em jogo na votação sobre trabalho remoto de defensores

Proposta que regulamenta a atuação também de forma remota no órgão deve ser retomada no Conselho Superior da instituição

Escrito por Luana Barros , luana.barros@svm.com.br
Defensoria Pública
Legenda: A Defensoria Pública implementou o trabalho remoto durante a pandemia de Covid-19, mas retomou a atuação presencial no dia 7 de março
Foto: JL Rosa/SVM

A necessidade de viajar junto à mãe para consultas em Fortaleza fez com que a técnica de enfermagem Vanessa Rayane precisasse do atendimento da Defensoria Pública do Estado. Monitorada por meio da tornozeleira eletrônica e sem poder deixar a cidade do Crato, ela precisava de autorização judicial cada vez que precisava acompanhar a mãe, Francisca Evalmiza Queiroz. 

Com as restrições impostas pela pandemia de Covid-19 - que tornaram remoto o atendimento de defensores e defensoras públicas -, o contato com a Defensoria foi feito por whatsapp e telefone. 

O atendimento remoto permitiu, inclusive, que ela ficasse mais tranquila quanto aos riscos de transmissão de Covid-19, já que a mãe, por conta de problemas renais, estava mais vulnerável à doença. "Tive muita assistência. Não tive dificuldade", conta ela sobre o processo. 

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Morando em Maracanaú, a costureira Elisangela Rodrigues teve uma experiência diferente. O filho dela está no sistema prisional há três anos e ela acompanha o processo por meio da Defensoria Pública. "Eu insistia sempre. (Mais) de doze tentativas, só teve duas vezes que consegui falar (com a instituição)", relata. 

Em uma das situações, ela acessou os canais virtuais durante três dias para ser atendida. "Quando atendem, são vagas as informações. (...) Não tem como falar com o defensor, tem que ligar novamente para saber", conta. 

Apesar de opostos, os dois casos são exemplos da forma como a Defensoria Pública precisou se adaptar durante a pandemia de Covid-19 e a vigência das medidas restritivas para continuar atendendo o público assistido pelo órgão. Agora, o trabalho remoto, também conhecido como teletrabalho, volta à pauta da instituição - que retornou ao atendimento presencial em março - para discussão sobre se mantém essa modalidade na rotina ou não. 

Discussão sobre forma de trabalho

O Conselho Superior da Defensoria Pública-Geral pode retomar, nesta sexta-feira (20), a votação a respeito da regulamentação do trabalho remoto. Proposta por um dos conselheiros, o defensor Francisco Rubens de Lima Júnior, a medida permitiria aos defensores públicos escolherem se querem trabalhar de forma remota ou se prosseguem com a rotina presencial - medida que teria impacto direto no atendimento à população. 

A iniciativa tem gerado críticas da sociedade civil organizada. Em nota assinada por mais de 70 entidades, a possibilidade de teletrabalho foi caracterizada como uma "grave ameaça" e que, se aprovada, pode indicar um "distanciamento cada vez maior" entre a Defensoria e o público assistido pelo órgão. 

Quem defende a proposta, por outro lado, fala da importância de regulamentar o trabalho remoto como mais uma modalidade de atendimento ao público - não excluindo o presencial -, mas também como parte da rotina processual de defensores públicos. Entre os argumentos, está a possibilidade de aumento de produtividade e maior celeridade no atendimento.

Discussão no Conselho Superior

Formado por sete conselheiros, incluindo a Defensora Pública-Geral, Elizabeth Chagas, o Conselho Superior da Defensoria Pública é responsável pelas atividades consultivas e normativas dentro do órgão. 

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Era prevista para o último dia 6 de maio a votação da proposta que regulamenta o teletrabalho na Defensoria Pública. Contudo, o adiamento ocorreu após a Associação dos Defensores Públicos do Estado do Ceará (ADPEC) - que tem assento no Conselho, mas não tem direito a voto - pedir o sobrestamento da pauta. Três conselheiros resolveram aguardar a manifestação da entidade antes de votar.

Com o adiamento, os quatro conselheiros que já haviam apresentado o voto podem mudar o posicionamento, incluindo o relator, Jorge Bheron Rocha. A princípio, ele votou por rejeitar a proposta e propôs a criação de Comissão de Estudos para a temática com a presença de defensores e sociedade civil, no que foi acompanhado por três conselheiros.

A expectativa é de que o assunto volte à pauta da sessão desta sexta-feira (20). Apesar de, em tese, haver votos suficientes para a rejeição, a possibilidade de mudança nas avaliações dos conselheiros torna a situação indefinida. 

Por outro lado, por meio da assessoria de imprensa, a Administração Superior da Defensoria Geral informou que "não coaduna com a proposta apresentada de teletrabalho", inclusive com o voto pela rejeição de Elizabeth Chagas. No momento, todo o trabalho e atendimentos realizados pelo órgão estão em regime presencial. 

Barreiras para atendimento

Entidades que acompanham públicos assistidos pela Defensoria relatam barreiras que já dificultavam o pleno acesso desta população aos serviços, como a distância até as sedes do órgão e a quantidade limitada de fichas para o atendimento. 

A implementação do teletrabalho como permanente, no entanto, é vista com muitas ressalvas por movimentos da sociedade civil organizada pelo potencial de "distanciamento" que pode trazer entre defensores e assistidos. 

"Restringe mais ainda o acesso de quem precisa do serviço. Esse é um público marcado por diversas dificuldades no acesso. As pesquisas mostram que pessoas das classes D e E não acessam a internet todo dia, usam a internet de alguém. Não tem esse suporte. E esse é o público da Defensoria, o público que tem direitos violados e que precisa de serviço jurídico".
Lúcia Albuquerque
Coordenadora do Centro de Defesa da Vida Herbert de Sousa (CDVHS)

Localizado no Grande Bom Jardim, o Centro de Defesa da Vida Herbert de Sousa foi uma das entidades a assinar nota contrária à regulamentação do teletrabalho. Lúcia Albuquerque relata as dificuldades encontradas pela população durante a pandemia de Covid-19 na busca pelo agendamento e atendimento - principalmente pela falta de acesso ou de conhecimento sobre o ambiente virtual. 

Integrante da Rede de Mulheres Negras do Ceará, Luciana Lindenmeyer aponta que a medida pode distanciar a Defensoria, que já tem "um déficit com a população". Ela cita, por exemplo, as dificuldades de interiorização e de garantir a presença da Defensoria em todas as comarcas.  

"A pandemia foi uma exceção, não pode virar uma regra. (...) Tem muito a se avançar no sistema como um todo, para ficar gastando energia para implementar o teletrabalho", critica.  

Vulnerabilidade digital

Os vulneráveis digitais são a maior preocupação quando se fala da permanência do trabalho remoto para defensores e defensoras. São pessoas sem acesso diário à internet, que não possuem os equipamentos necessários ou mesmo que têm barreiras de conhecimento para a utilização dessas ferramentas. 

Co-fundadora do movimento Mães da Periferia de Vítimas por Violência Policial do Estado do Ceará, Edna Carla afirma que eventual teletrabalho feito pela Defensoria "não tem condição de assistir a periferia". "Muitas das mães não conseguem comprar a alimentação, quanto mais ter um celular para ter acesso a internet, videochamada, whatsapp", afirma. 

Edna é a mãe de Alef Souza Cavalcante, uma das vítimas da Chacina do Curió, ocorrida em 2015 em Fortaleza. Ela fala sobre como a espera é "adoecedora" e que a implementação do trabalho remoto pode piorar a situação para todas as mães que esperam a resolução de casos semelhantes ao dela. 

"A Defensoria jamais pode ser teletrabalho, a não ser porque a vítima não queira ir lá, prefira ficar no lugar que está. Muitas das mães querem ser ouvidas. Embora tenham certeza da impunidade, precisam ser ouvidas". 
Edna Carla
Co-fundadora do movimento Mães da Periferia de Vítimas por Violência Policial do Estado do Ceará

Integrante do Coletivo Vozes, que também assina a nota, Alessandra Felix relata que precisou acionar a Ouvidoria da Defensoria para conseguir um canal de comunicação com a defensora que acompanha o processo do filho - que está no sistema prisional. "Mesmo eu tendo toda uma rede, porque estou engajada com os movimentos sociais, mesmo sendo uma mãe que se organiza, eu tive dificuldades de acessar a Defensoria", explica.

Ela cita casos de familiares que não conseguiam acessar as ferramentas, enquanto outros, mesmo conseguindo, não obtinham resposta. "Se for aprovada, ficamos preocupados com a garantia de direitos. (...) Vai se criar um abismo social", afirma. 

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Defesa da regulação

Diretora parlamentar da ADPEC, a defensora pública Kelviane Barros afirma que o atendimento à população vulnerável digital é um dos pontos em que é preciso "tomar muito cuidado" dentro da implementação do teletrabalho, mas defende que essa seja uma modalidade regulada pela Defensoria Pública. 

Ela afirma que mesmo que a atual proposta em discussão não seja aprovada, a ADPEC defende que o Conselho Superior "regule a possibilidade de teletrabalho como uma modalidade a mais (de atendimento) e não como única possibilidade". 

Além desse cuidado, outras etapas da atuação do defensor também devem continuar presenciais, como a inspeção em unidades prisionais e a realização de audiências de custódia, entre outros, completa a defensora. 

Ela cita que outros órgãos do sistema de Justiça, como o próprio Tribunal de Justiça do Ceará (TJCE), já conta com mecanismos no âmbito digital, como atendimentos e realização de audiências por meio virtual. 

Barros diz ainda que houve, durante a pandemia, "depoimentos de que o uso da tecnologia facilitou muitas vezes o atendimento" de defensores e que traz vantagens sobre o trabalho realizado exclusivamente de forma presencial. 

"Parte do público assistido tem acesso, pode se adaptar bem ao novo modelo. Temos àqueles que cuidam de outras pessoas, que trabalham o dia todo ou que tem outras atividades que não permite deslocamento. (...) Com esse formato, as pessoas poderiam ser atendidas de onde estivessem". 
Kelviane Barros
Diretora parlamentar da ADPEC e defensora pública

Sobre a possibilidade de distanciamento, a defensora afirma que a intenção é que "seja uma escolha do atendido ser presencial ou virtualmente". "Vamos manter o contato com o público e trazer mais uma modalidade (de atendimento)", completa. 

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