Quais sigilos do governo Bolsonaro podem ser desvendados e em quanto tempo?
As restrições de acesso a documentos de interesse público marcam a gestão Bolsonaro. Com a vitória de Lula, há promessa de quebra dos sigilos. Mas quando e como isso pode ocorrer?
Durante o governo de Jair Bolsonaro (PL) um dos temas de destaque, bastante repercutido na campanha eleitoral, foi o estabelecimento de sigilo em documentos considerados de interesse público. O chamado "sigilo de 100 anos" – ainda que essa nomenclatura não seja de todo adequada – envolve a restrição de acesso, dentre outros, ao cartão de vacinação de Bolsonaro, ao processo contra o ex-ministro da saúde Pazuello e aos dados sobre o acesso dos filhos de Bolsonaro ao Palácio do Planalto.
Na campanha eleitoral, o então candidato do PT e agora presidente eleito, Luiz Inácio Lula da Silva, por diversas vezes repetiu que, ao ganhar a eleição e assumir o poder, iria acabar com o “sigilo de 100 anos” imposto a documentos do governo Bolsonaro.
Dado o resultado da eleição, na qual Lula saiu vitorioso, há expectativas de quando e como a ocultação das informações será revertida.
Nesse contexto, o Diário do Nordeste explica quais são as informações postas em sigilo pela gestão Bolsonaro; se realmente elas têm 100 anos de blindagem; se há como torná-las disponíveis; em quanto tempo isso pode ocorrer e o que Lula realmente poderá fazer diante da imposição de restrição de acesso.
O sigilo é previsto em lei?
O primeiro ponto é que o estabelecimento de sigilo é baseado em prerrogativas da Lei de Acesso à Informação (LAI), uma norma federal, sancionada pela ex-presidente Dilma Rousseff (PT) em 2011 – que vigora desde 2012 – e estabelece o acesso à informação como regra na gestão pública e o sigilo como exceção.
Logo, a imposição de sigilo de forma não justificada e indiscriminada atenta contra a essência da própria norma, criada, sobretudo, para garantir a disponibilidade dos dados públicos.
Em linhas gerais, a LAI (12.527/2011) estabelece como se dará o acesso à informação sob a custódia da administração pública e quais as regras para que alguns dados possam ficar em sigilo, com definição de classificações, prazos e situações de restrição.
Veja também
Quais classificações e prazos?
A LAI prevê situações específicas de sigilo. Uma delas é quando a publicação do dado pode configurar risco ou dano à segurança da sociedade ou do Estado. Assim sendo, a informação, conforme o artigo 24 da LAI, pode ser classificada como ultrassecreta, secreta ou reservada. Para isso os prazos de sigilo são os seguintes:
- Ultrassecreta: 25 anos;
- Secreta: 15 anos; e
- Reservada: 5 anos.
A LAI também aponta quais autoridades podem impor esse sigilo. Logo, não é só o presidente da República que faz essa definição, embora ele possa estabelecer todos os graus de restrição.
O vice-presidente, os ministros, os comandantes da Marinha, do Exército e da Aeronáutica; e os chefes de missões diplomáticas e consulares também podem estabelecer o mais alto grau de sigilo. As demais classificações de restrição podem ser impostas por titulares de autarquias, fundações ou empresas públicas, e por comandantes e chefes dos órgãos públicos.
Um ponto de destaque é que, segundo a LAI, as informações que colocam em risco a segurança do presidente e do vice, e respectivos cônjuges e filhos, serão classificadas como reservadas e, nesse caso específico, ficarão sob sigilo até o término do mandato em exercício ou do último mandato, em caso de reeleição.
Isso responde a uma das questões sobre o suposto “sigilo de 100 anos”. Informações como os gastos de cartão corporativo de Bolsonaro, por exemplo, e as visitas ao Palácio do Planalto, se tiverem sido classificadas pelo governo como reservadas ficarão disponíveis no dia 1º de janeiro de 2023, quando Lula assumir a Presidência.
Isso ocorre automaticamente sem nenhuma intervenção do novo presidente, pois a quebra desse sigilo é prevista na LAI.
Já nos casos de sigilo que ganharam ênfase no governo Bolsonaro como: o acesso ao cartão de vacinação do presidente, o trânsito dos filhos de Bolsonaro no Planalto ou os dados do processo contra o ex-ministro da saúde Eduardo Pazuello, há obstáculos para a quebra da divulgação, pois, Bolsonaro não utilizou a classificação prevista no artigo 24 da LAI como forma de restringir o acesso.
A gestão, na verdade, usou uma “brecha” desta mesma lei, mas prevista no artigo 31, que versa sobre informações de caráter íntimo e privado.
São 100 anos de sigilo?
Segundo o artigo 24 da LAI, nenhuma das informações classificadas tem prazo de 100 anos de sigilo. No máximo, essa restrição é de 25 anos. Mas, por que então Bolsonaro fala em 100 anos de sigilo e, posteriormente, Lula fez a mesma referência?
Para ocultar algumas informações a gestão de Bolsonaro se valeu do artigo 31, cujo um dos itens prevê a possibilidade de estabelecer sigilo quando a divulgação dos dados, mesmo sendo de interesse público, “viola a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem de uma pessoa”.
Nesse caso, a norma indica que essas informações terão o acesso restrito, independentemente de classificação de sigilo, e por no máximo 100 anos, a contar da data de produção.
Segundo a LAI, os dados ficam disponíveis somente à pessoa a que as informações se referem e a agentes públicos legalmente autorizados.
Portanto, não há propriamente um decreto que estabeleça 100 anos de sigilo. O que existe na prática é uma decisão administrativa por parte da gestão Bolsonaro de usar um mecanismo da própria LAI, orientando distintos órgãos a não disponibilizarem informações sob o argumento de serem privadas, mesmo que na prática elas sejam de interesse público.
O que o Governo Bolsonaro colocou em sigilo?
No decorrer da gestão Bolsonaro, esse argumento das “informações privadas” foi usado para tornar sigilosos diversos documentos. Dentre os casos que ganharam evidência estão:
- Cartão de vacinação de Bolsonaro: o documento foi colocado em sigilo, em 2021, em meio à pandemia e no cenário em o presidente questionava reiteradamente a eficácia e segurança dos imunizantes contra a Covid-19;
- Registro de visita de pastores: O Palácio do Planalto impôs, em 2022, sigilo sobre os encontros entre Bolsonaro e os pastores lobistas do Ministério da Educação (MEC). O Gabinete de Segurança Institucional (GSI) justificou que a divulgação dessa informação poderia colocar em risco a vida de Bolsonaro e de seus familiares. Mas, nesse caso, a Controladoria-Geral da União (CGU) se posicionou a favor de informar os registros para atender ao interesse público e o GSI mudou de posição;
- Acesso de filhos de Bolsonaro ao Planalto: A Secretaria-Geral da Presidência, em 2021, impôs sigilo sobre os crachás de acesso ao Palácio do Planalto emitidos em nome de Carlos e Eduardo Bolsonaro, alegando que as informações solicitadas dizem respeito “à intimidade, à vida privada, à honra e à imagem dos familiares do Bolsonaro”;
- Processo sobre Pazuello: O Exército impôs, em 2021 sigilo no processo que apurou a ida do general e ex-ministro da Saúde, Eduardo Pazuello a um ato político no Rio de Janeiro com Bolsonaro e apoiadores. A justificativa é que a divulgação do documento representaria risco aos princípios da hierarquia e da disciplina do Exército;
- Documentos de Laura Bolsonaro: O Exército também impôs sigilo, em 2021, aos documentos de um processo que autorizou a matrícula da filha Bolsonaro, de Laura Bolsonaro, no Colégio Militar de Brasília sem que ela tenha passado por processo seletivo; ação que é prerrogativa para entrar na escola;
- Documentos da vacina Covaxin: O Ministério da Saúde colocou sob sigilo, em 2021, documentos sobre a compra de vacinas indiana Covaxin. O valor da negociação para a Covaxin é de R$ 1,6 bilhão e chegou a ser empenhado pelo Governo Federal. Mas, o acordo acabou suspenso depois que vieram à tona suspeitas de corrupção dentro da pasta da saúde. Em agosto de 2021, uma decisão liminar da Justiça garantiu o acesso aos documentos:
- Processo de Flávio Bolsonaro: A Receita Federal impôs, em 2022, sigilo no processo no qual consta que o órgão atuou para auxiliar a defesa do senador Flávio Bolsonaro, filho do presidente, no caso das “rachadinhas”. O órgão afirma que os documentos possuem informações pessoais.
Como saber quais informações estão em sigilo?
A lista de informações em sigilo no governo Bolsonaro pode ser bem maior. Mas, em todos os casos mencionados anteriormente, o estabelecimento do sigilo só foi descoberto porque, em geral, a imprensa ou instituições de fiscalização, como o parlamento, solicitaram acesso às informações em questão e via resposta de distintos órgão públicos, ficaram sabendo que a gestão Bolsonaro impôs sigilo.
O sigilo não é estabelecido por decreto, como muitos discursos propagam.
Em geral, na prática, ocorre via resposta administrativa de cada órgão e é informada a quem busca os órgão públicos (pela LAI, qualquer cidadão pode solicitar) via sistema de informação da LAI e tem como resposta uma negativa de acesso.
Já a lista das informações sigilosas classificadas como reservada, secreta e ultrassecreta deve ser publicada anualmente em sites por cada órgão da gestão pública federal. Nesse caso, a lista contém a data em que o sigilo passou a vigorar e até quando deve perdurar dentro dos limites impostos pela LAI (5, 15 ou 25 anos).
Como é possível reverter o sigilo?
Cada negativa de acesso à informação pública tem uma forma diferente, e a maneira de revogar não passa necessariamente por estabelecer decreto, como chegou a ser mencionado por Lula. A quebra do sigilo tem relação direta com decisões administrativas.
Logo, explica o advogado, cofundador e coordenador de advocacy da Fiquem Sabendo – agência de dados independente e especializada na LAI –, Bruno Morassutti, todo e qualquer requerente ao receber a negativa pode imediatamente solicitar a reversão da decisão de sigilo.
A pessoa que demanda informação, afirma ele, pode tentar novamente o pedido ou mesmo acionar alguns recursos. A LAI prevê dois:
- um dirigido à autoridade hierarquicamente superior à que negou o acesso e;
- outro é recorrer à Controladoria-Geral da União (CGU), que deve deliberar sobre o acesso ou não.
Na prática, os sigilos em questão podem ser revertidos a qualquer momento, inclusive ainda no governo Bolsonaro. Mas, como o mais provável é que eles sejam mantidos e a negativa persista, assim que Lula assumir ele pode, a partir de decisões administrativas, orientar que os órgãos tornem essas informações públicas e quebrem as restrições de acesso. Desse modo, o sigilo pode cair já a partir do dia 1º de janeiro de 2023.
“As assessorias podem orientar os novos ministros, diretores, para que eles revisem o posicionamento anterior. A administração pública pode alterar esse entendimento tanto se ela for provocada a rever essas decisões como pode fazer isso sem que ninguém peça”.
Mudança na LAI
Outro ponto é que Lula, eleito chefe do Executivo, para tentar aprimorar a LAI e evitar que brechas deixem margens para o tipo de restrição estabelecidas por Bolsonaro, pode modificar o artigo 31 da própria LAI que menciona que o sigilo pode ser de até 100 anos.
“Certamente poderia ter um ponto de melhoria para que esse tipo de decisão (por em sigilo) não fosse tão fácil”, destaca Bruno.
Nesse caso, o presidente pode fazer isso via decreto alterando o anterior que regulamenta a LAI. Ele também pode apresentar um projeto de lei – que precisaria passar pelo Congresso Nacional – tratando pontos específicos sobre sigilo relacionado à privacidade e intimidade.
“Eu diria que quanto mais poder uma pessoa tem, menos privacidade ela acaba tendo. Ninguém é obrigado a construir uma carreira pública, mas a partir do momento que essa pessoa opta pela carreira pública, ela abre mão de algumas privacidades comparadas a pessoas anônimas”.
Ele acrescenta que no caso do presidente da República, devido às responsabilidades e poder do cargo, algumas informações que podem parecer privadas e pessoais no contexto das pessoas anônimas, acabam ganhando o interesse público.
Por isso, informações como o cartão de vacina e o estado de saúde acabam virando demanda para a divulgação.