O que está em jogo no julgamento dos acusados pelos ataques de 8 de janeiro
Vidraças, móveis, janelas, documentos e obras raras foram alguns dos patrimônios destruídos nos atentados
Cem dias após os atentados terroristas aos Três Poderes da República, em Brasília, o Supremo Tribunal Federal (STF) começa nesta terça-feira (18) o julgamento das 100 primeiras denúncias contra pessoas envolvidas nos atos golpistas de 8 de janeiro.
Apesar de ser apenas o pontapé inicial do processo de responsabilização dos envolvidos, a reposta da mais importante Corte do País deve servir de exemplo para inibir possíveis novos ataques que busquem colocar em risco a democracia brasileira.
Por isso, especialistas ouvidos pela reportagem estão otimistas com a possibilidade dos ministros acatarem a maioria dos processos e tornarem os investigados réus por crimes como associação criminosa armada, abolição violenta do Estado Democrático de Direito, golpe de Estado, dano qualificado e deterioração de patrimônio tombado, entre outros.
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No dia 8 de janeiro, apoiadores do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) inconformados com a vitória do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) nas eleições de 2022 invadiram e depredaram as sedes do Congresso Nacional, do Supremo e do Palácio do Planalto, causando um prejuízo de aproximadamente R$ 20 milhões aos cofres públicos.
O caso ganhou repercussão internacional, com veículos como o americano New York Times, o britânico The Guardian e o francês Le Monde comparando o episódio ao ataque que ocorreu no Capitólio dos Estados Unidos, em 6 de janeiro de 2021, após a derrota de Donald Trump nas eleições presidenciais dos EUA em 2020.
Agora, autoridades, empresários, políticos e radicais investigados por incitarem, financiarem ou participarem dos atentados golpistas podem responder criminalmente pelos crimes.
Para Luciana Santana, professora da Universidade Federal de Alagoas (Ufal) e pesquisadora do Observatório das eleições (INCT/UFMG), não se pode minizar os atentados que ocorreram em 8 de janeiro ao confudí-los com uma manifestação. Diante disso, é necessário que o Poder Judiciário dê uma resposta à altura do ocorrido.
"É um momento importante e estou bastante otimista de que o STF vai acatar (as denúncias). A gente não pode normalizar nem achar que foi uma simples manifestação. Pelo contrário, foi um atentado criminoso a todos os Três Poderes da República. E foi algo que não aconteceu da noite para o dia, foi algo planejado, reforçado pelos vários questionamentos do papel das instituições, da democracia, do processo eleitoral, da legitimidade do resultado das eleições de 2022. Então, a abertura desses processos mostra que há um comprometimento do Estado Brasileiro em dar uma resposta à sociedade em relação a esses crimes, para que não se repita novamente"
Trâmite no STF
A partir desta terça, o plenário da Corte vai julgar se acata ou não as acusações apresentadas pela Procuradoria-Geral da República (PGR). Caso sejam aceitas, os acusados viram réus no STF e podem ser condenados pelos crimes contra a democracia.
O jugalmento das 100 primeiras denúncias será realizado de forma virtual, das 0h desta terça até as 23h59 da próxima segunda-feira (24). Assim, os ministros votam a favor ou contra a abertura dos processos por meio da plataforma digital da Corte. Por isso, as sustentações orais das defesas foram recebidas até segunda (17).
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Ao todo, há 1.390 denúncias no âmbito dos inquéritos que investigam os atentados antidemocráticos de 8 de janeiro. As ações que começarão a ser julgadas nesta terça dizem respeito aos investigados que continuam presos. Atualmente, 294 envolvidos estão reclusos no sistema penitenciário do Distrito Federal por ainda apresentarem risco, conforme dados da Secretaria de Administração Penitenciária do Distrito Federal (Seape-DF).
Do total de denúncias apresentadas pela PGR ao STF, 1.150 pessoas são acusadas de incitarem os atos e outras 239 são enquadradas como executoras dos atentados. Além disso, um agente público é investigado por omissão.
Presidente da Comissão de Direito Eleitoral da Ordem dos Advogados do Brasil secção Ceará (OAB-CE), Fernandes Neto explica que nesse primeiro momento o STF ainda não irá julgar os crimes, e sim se as denúncias têm elementos suficientes para virarem processos.
"Nesse primeiro momento do julgamento no STF os ministros vão avaliar se as denúncias apresentadas contra essas 100 pessoas têm condições de processabilidade. Se há crime, em tese, indícios de autoria e materialidade. Nesse primeiro momento, não vai se condenar nenhuma dessas pessoas. Vai se avaliar se há provas suficientes de autoria e materialidade dos crimes, como associação criminosa, dano ao patrimônio público, abolição do Estado Democrático de Direito", explica Fernandes Neto.
Para o presidente da Comissão de Direto Eleitoral da OAB-CE, o maior desafio do Supremo vai ser manter a celeridade das ações na fase de instrução processual, caso as denúncias sejam aceitas. É nessa fase que Corte intima testemunhas, recolhe provas, abre diligências, faz acareações, entre outras medidas. Por isso, ele acredita que a Corte deve convocar juízes de outros tribunais para ajudarem.
"Essa deve ser a maior ação, o maior número de processos, que o STF enfrentará como originário. Aí fica a dúvida quanto a instrução, porque a partir da denúncia as partes irão apresentar sua defesa, serão ouvidas testemunhas, provas serão apresentadas para o Tribunal analisar definitivmente. Geralmente, leva um bom tempo nessa instrução. O STF pode determinar uma força tarefa de juízes federais para realizar a instrução desses processos, como foi feito no mensalão, por exemplo. Ou seja, os juízes colherão as provas, ouvirão testemunhas, farão a preparação do processo para julgamento. Feito isso, o processo será remetido para ser julgado pelo plenário do STF. Na medida que a admissibilidade está sendo analisada pelo plenário da Corte, o julgamento será pelo plenário também"
O peso das decisões
Fernandes Neto acredita que muitas das denúncias apresentadas devem ser acatadas pelo STF porque a Corte foi um dos poderes diretamente atacados. Além disso, ele reforça que o entendimento do STF a ser apresentado nas ações deve sanar possíveis dubiedades jurídicas em processos envolvendo ataques à Democracia.
A mesma opinião é compartilhada pelos cientistas políticos ouvidos pela reportagem. Para o professor universitário e pesquisador do Laboratório de Estudos sobre Política Eleições e Mídia (Lepem) da Universidade Federal do Ceará (UFC), Cleyton Monte, as decisões do STF sobre os ataques antidemocráticos devem virar referência nacional e no mundo afora, já que vários países reconheceram a gravidade dos atentados golpistas no Brasil.
"Esse julgamento vai ser tratado como uma resposta das instituições a um ataque contra a democracia. Então, a imprensa vai cobrar, a sociedade civil vai cobrar, a comunidade internacional vai cobrar. Vai ser acompanhado por muita gente e por atores que pressionam por resultados, como autoridades internacionais, partidos. (...) O Brasil é democracia de massa, de grande escala, então o mundo todo está de olho porque pode impactar em outros países"
Monte acredita, inclusive, que o próprio ex-presidente Jair Bolsonaro pode vir a ser arrolado nos processos e responsabilizado por incitar os atos. Com a volta de Bolsonaro ao Brasil no último dia 30 de março, o ministro Alexandre de Moraes determinou que o ex-mandatário preste esclarecimentos sobre declarações dadas no dia 10 de janeiro, quando teria incitado a perpetração de crimes contra o Estado de Direito. Ele deve ser ouvido em até 10 dias, contados a partir da determinação de Moraes – que ocorreu no dia 14 deste mês.
"Ele deve entrar, mesmo que não seja acusado formalmente. É quase impossível os discurso dele contra ministros, as falas contra as urnas, as atitudes não entrarem como peça no processo. Então, o Bolsonarismo (que vai além de Bolsonaro) vai entrar no banco dos réus", complementa o pesquisador do Lepem.
A professora Luciana Santana também acredita na possibilidade de o ex-presidente responder pelos atentados judicialmente, assim como outras lideranças políticas. Ela pondera, no entanto, que nem todos os políticos envolvidos devem ser responsabilizados com a mesma celeridade, devido ao foro privilegiado que alguns conseguiram ao serem eleitos no ano passado.
"Quem tem foro privilegiado é mais difícil de acontecer essa responsabilização de forma mais imediata. Isso não significa que não vai acontecer. De toda forma, a depender do resultado, pode ser remetido às próprias instituções a que esses políticos fazem parte. Eu acredito que hoje seja muito mais factível a responsabilização daqueles que não estão em cargos público eletivos, como empresários, outras pessoas que tinham interesses diretos na eleição de Bolsonaro e nessa reivindicações"
Presos
Logo após os ataques em Brasília, 1,4 mil pessoas foram presas por envolvimento nos atos. De lá para cá, mais de 1.100 presos foram liberados pelo ministro Alexandre de Moraes, relator dos inquéritos no STF, e seguiram com tornozeleira eletrônica. Atualmente, apenas 294 continuam reclusos no sistema penitenciário do Distrito Federal por ainda apresentarem risco, conforme dados da Secretaria de Administração Penitenciária do Distrito Federal (Seape-DF) atualizados até 31 de março.
A cearense Francisca Hildete Ferreira, de 61 anos, é uma dessas pessoas que continuam presas por participação nos ataques antidemocráticos. Ela é a única investigada do Ceará que segue detida. A denúncia contra ela, inclusive, está entre as 100 primeiras que serão analisadas pelo STF a partir de terça.
Outros 24 cearenses envolvidos nos atentados terroristas foram liberados da prisão pelo ministro Alexandre de Moraes, com medidas cautelares e tornozeleiras eletrônicas.
São eles:
- Alfredo Antonio Dieter
- Anna Carolina Vieira Cintra Marques Vasconcellos
- Antonia Rachel de Sousa
- Carlos Daniel Aragão de Araújo
- Cecília Barroso da Costa
- Edislane Alves Pereira
- Francisco Idevan Rodrigues
- Joseneth Sousa do Nascimento
- Kelson de Saouza Lima
- Lincoln da Silva Eugênio
- Lucimar Fraklin Soares de Siqueira
- Marcos Fernando de Oliveira Costa
- Maria Silveli Teixeira Lima
- Maria Vitória Mesquisa da Costa
- Natália Santos Oliveira
- Paulo Jorge Gomes
- Pedro Roberto Nunes Campos
- Regina Maria de Azevedo
- Reinaldo Pereira da Silva
- Renata Aparecida Ferreira de Oliveira
- Romário Garcia Rodrigues
- Sebastião José Bezerra Neto
- Tiago Pereira do Nascimento
- Wenderson Luiz Brandão Barros