A busca da Unidade para além das diferenças

Escrito por
Lúcia Helena Galvão producaodiario@svm.com.br
Lúcia Helena Galvão é filósofa
Legenda: Lúcia Helena Galvão é filósofa

Hoje, muito se fala sobre a integração das diferenças; o tema da discriminação racial, sexual e religiosa, entre outras, ocupa as telas da mídia com uma frequência cada vez maior. Parece que, enfim, colocamo-nos de acordo em relação a alguma coisa: toda forma de discriminação deve ser abolida, e isso é justo e necessário. Porém, o tema das diferenças, acredito, deve transbordar essas pautas mais divulgadas e ir além, contemplando outros tipos de discriminação.

Vivemos um momento eminentemente massificado, por exemplo, onde pensar diferente das opiniões “oficiais”, da moda, é algo que toca o inadmissível: logo se é taxado de alienado, “em cima do muro” ou outras adjetivações de mesma natureza. Curioso é lembrar da frase do imperador estoico Marco Aurélio, que dizia: “A morte de um único ser humano me empobrece, pois se trata de um universo único e irrepetível com o qual deixei de travar contato.” Único e irrepetível, cada um de nós? Isso implica dizer que, se cada cidadão brasileiro, por exemplo, se dispusesse a refletir e pensar por si próprio, teríamos algo como duzentos milhões de pontos de vista que, combinados e compostos entre si, dariam origem a um incrível mosaico de visões complementares da realidade, como na composição de diferentes cores em um quadro, ou diferentes notas em uma melodia, o que nos enriqueceria muito!

Mas, infelizmente, não é isso o que vemos acontecer: há uma polarização em duas posições, e esses duzentos milhões de mentes são obrigadas a ajustarem-se a uma ou outra dessas opções; quantos, de fato, estão pensando, neste grupo? 

Quantos estão autorizados a fazê-lo? Ou seja, há outros tipos de “diferenças” que não são de forma alguma respeitadas ou integradas e, estranhamente, não se discute sobre isso.

E quanto aos modos de vida? A versão oficial do estudar /trabalhar/casar/ter filhos/ cuidar dos netos, quando desafiada, também é submetida à crítica implacável da sociedade. Quem resolve estender sua noção de família, tomar para si os filhos da humanidade, trabalhar para eles sem visar riqueza material nem status social, por exemplo, é um excêntrico que está “desperdiçando a sua vida”.

E o que dizer daquele que não quer apenas usar os seus sentidos ao máximo limite para obter cada vez mais prazeres sensoriais através deles, mas que busca outros prazeres oferecidos pelos sentidos internos, como a percepção de que há algo em nós que não pode ser arrastado pelo tempo, e que esse “algo” deve ser desenvolvido e cultivado; a impressão de que todas as coisas guardam em si uma essência imortal e o desejo de aproximar-se desse mistério de todas as coisas para percebê-lo e participar dele; aquele que sente que não há prazer maior do que o prazer do dever cumprido, de servir à vida, de fazer com que os valores humanos venham ao mundo através de nós, o que dizer desse estranho ser humano? Que é um alienado que desperdiça os prazeres “palpáveis” correndo atrás de fantasias...

Enfim, ainda há muitas diferenças a serem integradas antes que possamos entoar um “réquiem” pelas discriminações. E são, todas elas, muito limitantes, sufocantes mesmo e, em geral, “cortam nossas asas”, com seu afã infinito por padronizar escolhas, reações, pensamentos, sentimentos e a vida como um todo. Libertar a autenticidade humana permite o encontro dos elementos em comum, que estão dentro, e não fora, como em um colar, onde todas as contas são atravessadas por um único fio. 

Assim, sendo aquilo que se é, entregando o seu particular recado ao mundo, descobrimo-nos como células, e o Corpo, que tudo harmoniza e justifica, evoca a Unidade.

“O sagrado é a função de dar sentido”, dizia o filósofo Mircea Eliade. Assim, ao encontrar o sentido de cada coisa e compô-las na Unidade, sacralizamos a vida.

Lúcia Helena Galvão é filósofa

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