Volta de viagens intermunicipais pode acelerar efeito "bumerangue"

Circulação de ônibus entre cidades cearenses estará autorizada, a partir da próxima sexta-feira (10), pela Fase 3 de retomada das atividades; especialistas alertam sobre risco de ampliar a disseminação da Covid-19

Escrito por Theyse Viana , theyse.viana@svm.com.br
Legenda: Terminal Rodoviário passa por higienização antes de começar a receber as viagens intermunicipais a partir da próxima sexta-feira (10)
Foto: Natinho Rodrigues

Os números gerais podem apontar para uma melhora no cenário da Covid-19 no Ceará, mas, se observados sob uma lupa territorial, mostram que o avanço da doença não cessou. A taxa de transmissão permanece média ou alta em 181 dos 184 municípios do Estado, sendo maior nas regiões do Litoral Leste/Jaguaribe, do Cariri e do Sertão Central. Os riscos podem aumentar diante da decisão do Governo do Estado de liberar o transporte intermunicipal de passageiros, no próximo dia 10 - medida vista por especialistas como "precipitada".

Um dos maiores perigos do aumento da circulação de pessoas entre Fortaleza e o interior é a aceleração do "efeito bumerangue", o "leva-e-traz" do vírus entre as localidades. No Ceará, o risco foi identificado pelo Comitê Científico de Combate ao Coronavírus no Nordeste, em boletim divulgado neste mês. Sérgio Rezende, um dos coordenadores do grupo, aponta que "pelas estradas do Estado, o vírus logo chegou a Crato e Juazeiro do Norte". "Pessoas nos municípios menores adoecem, não têm um sistema de saúde tão bom, voltam às capitais e fazem com que casos e mortes aumentem de novo", analisa.

A implantação de barreiras sanitárias nas estradas, o reforço das equipes de saúde e instalações hospitalares e o decreto de lockdown em municípios com situações mais críticas são medidas sugeridas pelo Comitê. Quanto ao transporte intermunicipal, Sérgio Rezende indica que "os ônibus limitem o número de passageiros", e que "todos sejam obrigados a usar máscaras". Além disso, "oferecer álcool em gel na entrada dos transportes" deve ser cuidado complementar para evitar a disseminação do novo coronavírus.

De acordo com Newton Fialho, gerente da Socicam, empresa que administra o Terminal Rodoviário de Fortaleza, um plano de biossegurança vem sendo adotado desde o início da pandemia nos espaços do equipamento, com instalação de pias, tótens de álcool em gel e intensificação da limpeza. As medidas sanitárias no interior dos veículos de transporte coletivo, porém, cabem a cada uma das empresas. "Elas adotarão protocolos individuais, conforme as regras de reabertura, e a fiscalização caberá aos órgãos estaduais. Se os passageiros tiverem consciência, o retorno será tranquilo", pontua.

A reportagem procurou três das principais empresas de transporte rodoviário intermunicipal e interestadual de passageiros que atuam no Ceará, a fim de saber que medidas de segurança sanitária serão tomadas. A maior parte das companhias afirmou que "não irá se pronunciar no momento". Outras duas não atenderam as chamadas de telefone.

Atualmente, a movimentação de passageiros na Rodoviária de Fortaleza está até 97% abaixo da registrada em períodos normais, quadro que, para Newton, não será revertido "da noite pro dia". "Não existe uma demanda represada de passageiros pra viagens. Mesmo com a liberação do transporte interestadual, a demanda ainda é muito baixa. Com o intermunicipal, dia 10, não será diferente, deve chegar a cerca de 10% do normal. Isso não vai voltar aos patamares regulares até o fim do ano", projeta o gerente da Socicam.

Cuidados

Antes de a pandemia chegar ao Ceará, o terminal registrava até 406 partidas de ônibus por dia. Do total, 343 viagens tinham como destino outros municípios cearenses, e 63 partiam para outros estados. Desde março, o cenário mudou totalmente: hoje, a média diária é de 13 partidas.

A gerente de produto Ticiana Romcy, de 41 anos, viajava a cada 10 dias, de ônibus, de Fortaleza para cidades do interior, para atividades de trabalho. Com a pandemia de Covid-19, a rotina foi quebrada - e, mesmo com a volta do transporte intermunicipal, não deve retornar.

"Ônibus é um lugar de contato com muitas pessoas, de tocar nas coisas. O que me deixaria mais segura é se as poltronas fossem individualizadas, pra tentar manter a distância, e fossem exigidos a máscara e o álcool em gel. Mas ainda assim não me sinto 100% segura, até porque moro com meus pais", relata.

Rigor nas viagens

Durante anúncio do novo decreto de retomada das atividades econômicas, sábado (4), o governador Camilo Santana (PT) alertou que as viagens devem seguir "rigoroso protocolo sanitário". Conforme Hélio Leitão, presidente da Agência Reguladora do Ceará (Arce), responsável por fiscalizar o sistema, as vistorias "serão intensificadas, principalmente nos embarques e no decorrer do trajeto". Empresas de ônibus e terminais rodoviários que descumprirem as determinações do decreto estadual estarão sujeitos a multa e, em "casos mais drásticos", proibição de funcionamento.

Medição da temperatura dos passageiros antes do embarque, proibindo a viagem de quem estiver com temperatura igual ou superior 37,8°C; uso obrigatório de máscaras de proteção por passageiros e funcionários por toda a viagem; limpeza e desinfecção obrigatórias dos veículos antes e ao término de cada viagem; priorização da venda de passagens por meios digitais; vedação ao transporte de pessoas em pé no veículo; e garantia do distanciamento mínimo de dois metros nos terminais são os pontos a serem verificados pela Arce.

Para Sayonara Cidade, presidenta do Conselho das Secretarias Municipais de Saúde do Ceará (Cosems/CE), a liberação das viagens intermunicipais é "precipitada". "Não era o momento, porque estamos vendo um aumento de casos na Região do Cariri, e uma taxa muito alta na Região Norte. Vejo isso com preocupação. Não teremos mais como controlar o fluxo de passageiros. É um risco grande", avalia.

A volta do transporte coletivo entre cidades, segundo ela, deveria ser considerada, no mínimo, "daqui a duas semanas", ou adiada "pelo menos para a Região do Cariri". Questionada sobre a possibilidade de colapso da rede de saúde pública no interior, Sayonara garante que esta "não é uma preocupação". "Em todo o interior, houve crescimento de leitos, sobretudo de UTI".

Para Emille Sampaio, mestra em Saúde Pública e professora do curso de Medicina da Universidade Federal do Cariri (UFCA), a "fragilidade" na rede de saúde do interior, a possibilidade de uma nova onda de contaminação na Capital e da disseminação da doença em cidades ainda pouco afetadas preocupam. "Temos situações epidemiológicas distintas no Estado: regiões com controle maior e outras com franca ascensão da curva. E não há serviços hospitalares estruturados suficientes", pontua.

A médica ratifica que a liberação do transporte intermunicipal de passageiros gera uma "perda de controle". "Estudos comprovam que pessoas já infectadas, mas ainda assintomáticas, transmitem a doença. Se alguém viajar assim, quando chegar ao destino e apresentar sintomas, já terá infectado outros passageiros. Precisamos reforçar a vigilância e insistir nas medidas sanitárias que evitem a contaminação", alerta - frisando que Crato e Juazeiro do Norte, por serem maiores, são, hoje, os municípios que "mais preocupam".

A Secretaria da Saúde do Estado (Sesa), através de nota, explicou que, "desde o princípio do processo de reabertura, vem acompanhando de perto os dados epidemiológicos da pandemia em todos os municípios e regiões do Estado, a fim de respaldar as decisões de Governo".

E que, desta forma, a partir de 10 de julho, fica autorizado o retorno do serviço de transporte intermunicipal de passageiros no Estado, regular e complementar, e que ele deverá operar em conformidade com as orientações das autoridades da saúde, já citadas na matéria, como medição de temperatura, uso de máscara, venda online de passagens, dentre outros.

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