Sem lockdown, demandas de saúde além da Covid podem acelerar colapso de hospitais, alertam médicos

Especialistas avaliam que sobreposição entre Covid-19 e doenças por causas externas, como acidentes de trânsito e lesões por armas de fogo, devem gerar pressão máxima na rede hospitalar

Escrito por Theyse Viana , theyse.viana@svm.com.br
Ônibus lotado no terminal de Fortaleza
Legenda: Superlotação do transporte público em Fortaleza é um dos fatores de risco para disseminação da Covid-19
Foto: Camila Lima

“Estamos em março de 2020 de novo”. A expressão tem sido usada por muitos cearenses diante da crescente de casos na segunda onda de Covid-19 no Estado. Especialistas alertam, porém, que há diferenças entre o ano passado e agora: entre elas está a menor adesão da população ao isolamento social, gerando demandas de saúde além do coronavírus e acelerando o colapso da rede de assistência.

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Marco Tulio Ribeiro, professor da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Ceará (UFC), médico de família e comunidade e integrante do Coletivo Rebento, avalia que “ainda não estamos no pico” da segunda onda, mas já temos “um grande problema” quanto à capacidade de atendimento.

“Apesar do aumento da capacidade de internação, principalmente em UTIs, as UPAs e hospitais estão superlotados, tanto na rede privada como na pública. Não há leitos suficientes. Me preocupa muito pensar que nos próximos dias podemos ter pessoas doentes precisando de internação e oxigênio e não teremos”, pontua.

O médico, integrante também do Coletivo Rebento, destaca que apesar das questões econômicas que perpassam um processo de lockdown, “inevitavelmente precisaremos de um” para tentar conter o avanço da Covid-19.

“Com as pessoas em casa, diminui a incidência de doenças por causas externas, como acidentes de trânsito e por arma de fogo. Além disso, ficando menos expostas, estão menos suscetíveis a dengue, resfriados e outras infecções. Estudos mostram que o processo de isolamento, com o uso de máscaras, diminuiu também as doenças respiratórias”, explica Dr. Marco Tulio.

A médica virologista e epidemiologista Caroline Gurgel, também docente da UFC, reforça que essa redução de demanda tem relação direta com a inibição de problemas comportamentais. “Normalmente, as pessoas se aglomeram e há ingestão de bebida alcoólica, e a presença do álcool está relacionada diretamente a causas externas, com o aumento da prevalência de acidentes automobilísticos, de agressões por armas brancas ou de fogo, por exemplo”.

Rua vazia durante lockdown em Mombaça, no Ceará
Legenda: Município de Mombaça, no Sertão Central do Ceará, decretou lockdown no último dia 25 de janeiro
Foto: Wandemberg Belém

Demanda hospitalar reduz no isolamento

Em março passado, primeiro mês da pandemia no Ceará, o Instituto Doutor José Frota (IJF), uma das mais importantes unidades de urgência e emergência do Estado, registrou queda de 50% no número de atendimentos emergenciais por traumas em relação ao mesmo período de 2019.

O padrão se repetiu nas emergências dos Hospitais Geral Dr. César Cals (HGCC), Geral de Fortaleza (HGF), de Messejana (HM), Infantil Albert Sabin (HIAS), de Saúde Mental (HSM) e São José (HSJ): somados, os atendimentos nas unidades caíram de 78.420, em março, abril e maio de 2019, para 52.261 no mesmo trimestre de 2020, uma redução de 33,3%.

85%
foi a queda no número de acolhimentos ambulatoriais em hospitais estaduais, no período de restrições mais rígidas.

No HGF, por exemplo, a média mensal de atendimentos foi de 15.706 em 2019. Em janeiro e fevereiro de 2020, período pré-pandemia, foram 16.804 acolhimentos por mês. Em abril e maio, a média caiu para 2.498.

A diminuição expressiva da quantidade de atendimentos ambulatoriais no isolamento social, no ano passado, também foi contabilizada em hospitais como HGCC, HSJ e Hospital Regional do Sertão Central (HGCC), em Quixeramobim. Os dados são do Integra SUS, da Sesa, com atualização até as 02h17 de segunda-feira (1º).

O professor de Medicina da UFC observa, contudo, que o próprio isolamento social fez crescer a incidência de doenças crônicas, como hipertensão e diabetes, por exemplo. Com a necessidade de acompanhamento, os novos pacientes se somam, agora, aos infectados pelo coronavírus, pressionando o sistema de saúde.

“Já temos demandas corriqueiras sobre diabetes, hipertensão, doenças articulares e cardíacas, e durante o isolamento as pessoas deixaram de fazer atividades físicas, comeram mais, aumentando essas questões. Além de pacientes com transtornos mentais, também. São demandas que coexistem com a Covid, a nível de internações hospitalares”, analisa Dr. Marco Tulio.

Desrespeito às medidas sanitárias

Caroline Gurgel reconhece que num cenário de alta incidência de Covid grave, “outras áreas acabam ficando descobertas”. “Por isso falamos tanto, desde o começo, sobre achatar a curva. Quando falamos de calamidade no serviço de saúde, é sobre não conseguir atender mais casos de Covid nem outras demandas”, pontua.

A professora explica que, em um colapso, a mortalidade por outras doenças naturalmente também cresce.

“Um paciente chega ao hospital com infarto do miocárdio, AVC, e não tem mais profissional, leitos de UTI nem pontos de oxigênio para atendê-lo, porque está tudo ocupado por Covid. Se alguém sofre um acidente de carro, com traumatismo, hemorragia, quem vai atender? Isso é muito sério”, preocupa-se.

Avenida de Fortaleza durante lockdown em 2020
Legenda: Avenida no bairro Aldeota, em Fortaleza, durante lockdown em maio de 2020
Foto: Helene Santos

Para a médica, um dos principais fatores para o desenho de um cenário “tão caótico” é o comportamento negligente da população, que “nem a fiscalização dá mais conta”. “A partir do momento que as pessoas inflam o sistema de saúde, estão condenando todos a não adoecerem mais de nada. Sem a educação do povo, não tem mais como sairmos dessa. Daqui a duas, três semanas, vamos estar enterrando muitas pessoas”, projeta.

Possível novo lockdown

Em entrevista do Diário do Nordeste, na última segunda-feira (1º), a superintendente da Agência de Fiscalização de Fortaleza (Agefis), Laura Jucá, reconheceu que a atuação do órgão no combate ao desrespeito às medidas sanitárias “está muito mais difícil”, devido ao comportamento da população, mas reiterou que a decisão sobre um novo lockdown é do Governo do Estado.

Dr. Cabeto, titular da Sesa, já alertou que a ocupação de leitos públicos e privados é cada vez mais alta no Ceará, inclusive porque a nova cepa de coronavírus causa um período inflamatório mais longo do que a original, prolongando a permanência dos pacientes hospitalizados.

Outra preocupação destacada pelo secretário foi a impossibilidade de transferir pacientes de municípios do interior cearense a Fortaleza, já que a segunda onda afoga ambas as localidades de forma simultânea, exigindo restrições mais rígidas – como o toque de recolher mais abrangente na Capital, por exemplo.

Para Dr. Marco Tulio, a medida “vai diminuir a circulação, mas não será suficiente”.

“Temos uma vacinação ainda incipiente, pessoas desrespeitando o isolamento e ausência de um tratamento eficaz para a Covid. Sabemos do dano à economia, mas em virtude do momento e do possível colapso, devemos, sem dúvida, pensar num lockdown”, avalia o médico.

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