“Se morrer, não consigo nem um caixão”: falta de documentos impede acesso de cearenses à vacinação

Sem certidão de nascimento, RG ou CPF, parcela invisível da população tem direitos básicos à saúde, educação e emprego negados

Escrito por Redação , metro@svm.com.br
Falta de documentos afeta acesso à vacinação
Legenda: Antônia perdeu todos os documentos em um incêndio há cerca de 25 anos
Foto: Arquivo pessoal

A chegada da vez para ser vacinado contra a Covid-19 ainda é aguardada, com ansiedade, por muitos cearenses – mas outros milhares sequer constam na fila de espera, invisíveis diante da falta de certidão de nascimento, RG, CPF e todos os documentos pessoais.

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No sangue de Antônia Eva Venâncio, 49, já deveriam circular os anticorpos da imunização, mas a dona de casa sequer tem previsão de quando poderá ser vacinada, já que perdeu todos os documentos num incêndio, há cerca de 25 anos, e não consegue se cadastrar.

Não posso nem me consultar. Meu remédio pra pressão compro na farmácia, não consigo receber no posto, porque não tenho documento.

O extravio da certidão de nascimento, da cédula de identidade e do restante da documentação se deu no município de Apuiarés. Antes disso, Antônia conseguiu registrar os filhos, que tentam, hoje, ajudar a mãe a recuperar a cidadania.

“Já fui com minha menina mais velha no fórum, no Conselho Tutelar, em todo canto atrás disso, mas nunca deu certo. Meu registro foi feito em Apuiarés, mas o cartório diz que não existe”, lamenta a dona de casa, vivendo num limbo de negação de direitos básicos.

“Eu não existo no mundo”

Falta de documentos afeta acesso à vacinação
Legenda: Aos 20 anos, Ezequiel não possui nenhum documento pessoal
Foto: Arquivo pessoal

As duas décadas de invisibilidade e de negação de direitos básicos, como à educação, preenchem a fala de Ezequiel dos Santos Matos, 20, de desesperança. Nascido em Fortaleza e criado pela avó, o jovem chegou a desistir dos estudos por vergonha.

Ezequiel conseguiu se matricular na rede pública após auxílio do Conselho Tutelar, mas permanecer estudando se tornou inviável, já que sequer conseguia a carteira de estudante para utilizar o transporte público.

Tudo precisa de documentos: pra ir ao médico, pra estudar, pra tirar a CNH, pra se internar, pra se enterrar, até pra arrancar um dente. Sem eles, eu não existo no mundo. Se eu morrer, não tenho direito nem a um caixão.

Criado pela avó após perder os pais, o jovem “nunca encontrou” a própria certidão de nascimento, e aguarda conclusão do processo que abriu junto à Defensoria Pública do Estado. Um mandado chegou a ser expedido pela Justiça, mas a ausência do nome dos avós no documento o invalidou.

“Desde 2013 que estamos nessa peleja. Cartão do SUS eu fiz no posto, depois de muita briga. Hoje, é mais fácil pegar coronavírus e morrer do que conseguir a vacina. Tenho muita vontade de trabalhar, arranjar um emprego, sou esforçado. Mas sem documento, não consigo”, lamenta Ezequiel.

Acesso à vacinação

A exigência de CPF para garantir imunizante contra a Covid-19 é prevista no Plano de Operacionalização da Vacinação, do Ministério da Saúde, “para possibilitar a identificação, o controle, a segurança e o monitoramento das pessoas vacinadas”. O texto não aborda a situação de cidadãos sem documentos.

Em Fortaleza, o Caminhão do Cidadão, unidade móvel da Secretaria da Proteção Social (SPS), voltou, nesta semana, a percorrer bairros da cidade com serviço de emissão de documentos. O atendimento é feito das 8h às 16h, sob agendamento pelo usuário, na própria comunidade. Por dia, são ofertadas 70 vagas.

As rotas semanais são divulgadas no site da SPS (www.sps.ce.gov.br) e na página da secretaria no Instagram (@spsceara)

A titular da Pasta, Socorro França, estima, com base em dados do IBGE, que cerca de 348 mil cearenses não têm registro civil. “Esse dado nos revela que 3,8% dos cearenses não podem acessar benefícios e serviços de cidadania. Precisamos avançar”.

Outros direitos fundamentais

Segundo Natali Massilon Pontes, supervisora do Núcleo de Atendimento e Petição Inicial (Napi) da Defensoria, o problema do sub-registro tende a afetar várias gerações de uma mesma família.

“São pessoas que não têm acesso à informação, e essa ausência do registro passa de pai e mãe para filho e netos. Essas pessoas vivem totalmente à margem, sem escolaridade, sem cuidados médicos, sem qualquer direito oferecido pelo Estado”, lamenta.

O registro de nascimento “é o documento mais importante na vida de uma pessoa”, como reforça a defensora, já que ele é exigido para emissão de todos os demais documentos pessoais, como RG, CPF e Carteira de Trabalho.

Sem o registro, não há acesso à escola ou ao SUS. Isso prejudica até na hora da morte. A pessoa é enterrada como indigente.

Natalie pontua, ainda, que o número de cearenses sem certidão de nascimento deve ser bem maior do que a estimativa oficial, já que “até para contabilizar essas pessoas é difícil, porque muitas nem chegam a um órgão público para se informar”.

Ceará tem altas taxas de sub-registro

No Ceará, dos 134.656 nascidos vivos em 2018, cerca de 4,9 mil (3,67%) não foram registrados no mesmo ano nem no primeiro trimestre do ano seguinte. A estimativa é do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), divulgada em dezembro de 2020.

O prazo legal para registrar um recém-nascido é de 45 dias. A taxa de sub-registro de cearenses é a 3ª maior do Nordeste e superior à do Brasil, onde 2,37% dos 2,9 milhões de nascidos vivos não entraram para os registros cartoriais no período ideal.

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Em Fortaleza, a taxa é maior que a do Estado: a estimativa é de que 36.277 pessoas nasceram em 2018, mas 1.581 (4,36%) não entraram para os registros cartoriais no mesmo ano nem nos 3 primeiros meses do ano seguinte.

O sub-registro de nascimentos, como pontua o IBGE, é importante “para sinalizar quão distante o País está de cumprir com a exigência básica de reconhecer o recém-nascido como cidadão, e, consequentemente, fortalecer as ações de políticas públicas voltadas para o aumento de tais registros”.

Como emitir certidão de nascimento tardia

Em Fortaleza, três unidades do Núcleo de Petição Inicial da Defensoria atendem cidadãos que precisam recuperar ou emitir a certidão de nascimento, nos bairros Engenheiro Luciano Cavalcante, Mucuripe e João XXIII.

Para obter informações sobre o que é preciso para acessar o serviço, é possível enviar e-mail para napi@defensoria.ce.def.br ou entrar em contato pelo telefone (85) 98895-5513. Mensagens de WhatsApp devem ser enviadas de 8h às 12h ou 13h às 16h.

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