População em situação de rua é removida da Praça do Ferreira e tem pertences levados pela prefeitura

Ação descumpre recomendação do Ministério Público do Ceará (MPCE), que já exigiu explicações da gestão municipal quanto ao episódio

Escrito por Theyse Viana , theyse.viana@svm.com.br
Pessoa em situação de rua arruma
Legenda: População em situação de rua amarga falta de moradia e de direitos fundamentais
Foto: Natinho Rodrigues

Entre as diversas marcas históricas da Praça do Ferreira, em Fortaleza, está a de ser abrigo para dezenas de pessoas em situação de rua. Na noite de quinta-feira (23), porém, essa população foi removida do local, junto a pertences que incluíam objetos e documentos pessoais.

Vilanneide Ferreira, integrante da Pastoral do Povo da Rua, estava no local quando a ação ocorreu. Às quintas-feiras, a partir das 18h, a entidade de apoio leva trailers com três banheiros para higienização pessoal das famílias.

“Os fiscais chegaram às 21h. Cortaram os punhos das redes, recolheram colchões, papelões, tudo pro lixo. Acompanhamos em silêncio, controlando os moradores, que ficam revoltados e querem reagir”, descreve.

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Fernanda de Sousa, também integrante da Pastoral, lamenta que “a prática de higienização se repete sem nenhuma retaguarda, sem oferta de espaços e moradias”.

“Enquanto isso, prédios ociosos fechados, sem cumprir sua função social, recursos empregados em ações que não são prioridades. A vida do povo da rua, das famílias, a garantia dos direitos fundamentais devem ser prioridade”, reforça Fernanda.

Em vídeo obtido pelo Diário do Nordeste, uma mulher relata que não estava no local durante a ação, e que os documentos dela e do esposo foram levados. 

Meu esposo deixou a mochila com os documentos, nossas carteiras de trabalho e o título de eleitor. Quando chegamos, uma ‘vizinha’ disse que só não levaram as coisas dela porque ela estava lá. Levaram tudo.

Dispersão descumpre recomendação do MPCE

Em julho deste ano, o Ministério Público do Ceará (MPCE) recomendou que ações policiais e da Guarda Municipal “no sentido de dispersar a população em situação de rua dos locais que costumam ocupar em Fortaleza” deveriam ser evitadas.

A titular da 9º Promotoria de Justiça de Fortaleza, Giovana de Melo, destaca que “as ações acabam por dispersar a população, provocando deslocamentos temporários, e, portanto, comprometendo a realização e os resultados do Censo”.

Para que o Censo tenha a efetividade esperada e os números correspondam à realidade, é essencial que essas pessoas consigam ser acessadas pelos recenseadores, devendo ser evitados quaisquer tipos de dispersões.
Giovana de Melo
Promotora do MPCE

Um dia após a remoção da população da Praça do Ferreira, o MPCE enviou ofício à Secretaria Regional do Centro exigindo explicações acerca do episódio. De acordo com a promotora Giovana de Melo, “o secretário alega total desconhecimento da recomendação”. A resposta ao ofício deve ocorrer em até 10 dias.

“A recomendação foi encaminhada à SDHDS, que realiza o censo, portanto deveria ter articulado com outros órgãos reunião para garantir o efetivo cumprimento. Percebe-se que assim não o fez. A falta de comunicação interna atrapalha o bom andamento das ações”, critica a promotora.

A reportagem solicitou posicionamento da SDHDS sobre o assunto e aguarda retorno.

pessoas em situação de rua em fortaleza
Foto: Fabiane de Paula

Giovana pontua ainda que o Censo para contagem da população em situação de rua de Fortaleza foi dividido em duas fases, quantitativa e qualitativa, e que esta última seria iniciada na próxima semana. A dispersão, então, comprometeu os resultados – “duas ações da prefeitura colidindo entre si”, como ela frisa.

A área pública pode ser usada por qualquer pessoa. Essas ações higienistas que buscam retirar as pessoas das praças devem ser repudiadas e reprovadas. O poder público deve implementar o direito dessas famílias por meio de serviços, e não retirá-las sem dar assistência.

A promotora reforça que os direitos básicos e fundamentais das famílias devem ser assegurados. Ouça.

“Desobstruir” calçadas

A reportagem questionou a Agência de Fiscalização de Fortaleza (Agefis) para saber o motivo da abordagem e da retirada das pessoas em situação de rua da praça, para onde foram encaminhadas e onde foram colocados os pertences delas.

Em nota, a agência informou que a ação, que contou com apoio da Guarda Municipal, teve o objetivo de “ordenar o espaço público e permitir o trânsito livre de pedestres, além de proteger os bens públicos”. 

“A Agefis realizou uma ação de ordenamento no centro da cidade, orientando os moradores de rua a desobstruir o passeio. Os itens removidos foram restituídos”, pontua a nota.

A autarquia complementou, ainda, que o “acompanhamento das pessoas em situação de rua é feito por meio da Secretaria de Direitos Humanos e Desenvolvimento Social (SDHDS)”.

Políticas públicas

Em novembro de 2020, durante a campanha do 2º turno eleitoral, os candidatos à Prefeitura de Fortaleza assinaram, junto ao MPCE, um documento de comprometimento com a causa das pessoas em situação de rua.

Na ocasião, o então candidato Élcio Batista, sociólogo e atual vice-prefeito de Fortaleza, enfatizou que realizar o diagnóstico do perfil dessa população deveria ser “prioridade”, e que “o olhar do prefeito precisa ser direcionado para a redução das desigualdades e para as pessoas mais vulneráveis”.

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