Pelo direito à escrita na língua portuguesa
Atuando em escolas públicas, dois mestres cearenses se destacam nacionalmente por suas práticas inovadoras
No bairro Bom Jardim, em Fortaleza, José Gilson Lopes Franco conseguiu, por meio da Literatura de Cordel, envolver as turmas de 7º ano para a produção coletiva de sextilhas. Ana Virgínia Domingos de Oliveira, de Quixeramobim, incentivou os alunos do 3º ano do Ensino Médio a escrever, de forma compartilhada, crônicas sobre o cotidiano da cidade onde vivem.
Separados por 212 quilômetros de distância, esses professores de Língua Portuguesa têm percursos semelhantes. Além de cearenses, lecionam em escolas públicas e apresentaram suas práticas inovadoras em sala de aula durante o "Seminário Nacional Escrevendo o Futuro - com a palavra o professor-autor", promovido pelo Fundação Itaú Social. O evento foi realizado em São Paulo e integra as atividades da Olimpíada da Língua Portuguesa.
Com ações desafiadoras, Gilson e Ana Virgínia conseguiram não apenas sensibilizar suas turmas, mas mobilizar toda a escola. A metodologia envolve a sequência didática, na qual professores viram autores de suas práticas.
"Quando eles se inscrevem na Olimpíada, recebem orientações para realizar oficinas de escrita com todos os alunos. A ideia é dar luz a boas experiências nas salas de aulas para que o professor consiga despertar no aluno o direito à escrita", afirma Dianne Melo, gestora do Programa Escrevendo o Futuro, da Fundação Itaú Social.
Foi exatamente esse objetivo que alcançaram os professores Gilson e Ana Virgínia. Selecionados ao lado de oito colegas de outros estados, eles contaram suas experiências, visivelmente emocionados, para uma plateia de educadores de todo o País.
Professor da rede municipal de ensino de Fortaleza, Gilson atua há 11 anos no ofício, sendo dois na Escola de Tempo Integral Dom Antonio de Almeida Lustosa. "Ao perceber que muitos adolescentes do 7º ano apresentavam dificuldades em escrever, propus a sextilha colaborativa. O resultado foi uma delícia: colaborações efervescentes e espaço de afirmação do sujeito, em que cada um quer se manifestar pela fala, cada um se agiganta pela fala", comemora o professor.
O entusiasmo torna-se mais significativo quando Gilson ressalta o contexto social onde está inserida a escola: o Grande Bom Jardim, bairro de altíssima vulnerabilidade social da capital.
Era necessário, portanto, conquistar a atenção dos 114 estudantes. O universo do cordel invadiu a sala de aula, com chapéu de couro, cactos, enxada, potes e chocalho. No entanto, o processo extrapolou as horas-aula, com oficinas aos sábados, domingos e feriados. Foi se espalhando pela escola inteira e envolveu também os pais, muitos analfabetos.
Da prática, surgiu um grupo de Cordel, formado de 15 meninos que se apresentam na própria escola e em outras da rede municipal: "Já tem até agenda de apresentações. O legal é atingir um objetivo e chegar a muitos outros".
Segundo Gilson, houve mudança significativa na disciplina e no abandono da timidez: "A turma tinha uma das piores notas, e hoje é primeiro lugar em matemática e língua portuguesa. Meninos que não liam nem escreviam nada, agora começam a se firmar como sujeito das palavras".
Crônicas
Satisfação profissional e pessoal é também o que rege Ana Virgínia, professora da Escola Estadual de Educação Profissional Dr. José Alves da Silveira, em Quixeramobim. Com 11 anos de profissão, ela confessa ter se emocionado durante a sequência didática com os 44 alunos do 3º ano D do ensino médio. "No dia em que eu vi o aluno mais introspectivo da sala ter coragem de abrir o caderninho e ler o texto dele foi um momento muito, muito bom".
Ana Virgínia se refere à ocasião em que o cronista de Quixeramobim, Bruno Paulino, autor do livro "A menina da chuva", participou de um encontro com a turma: "Foi uma conversa bem aberta com ele, os meninos compartilharam os textos, ele apreciou os textos dos meninos, fez a sua crítica, deu dicas, muita coisa boa aconteceu".
Assim como foi satisfatório todo o processo. Meninos que não conseguiam produzir, obtiveram sucesso a partir da colaboração dos próprios colegas. "A sequência proporcionou que os alunos descobrissem o poder da autoria e da partilha. Houve também mudança no nosso próprio trabalho. A gente aprende a ver outras possibilidades e a criar e adequar as metodologias à realidade de cada turma".
A experiência bem-sucedida foi incorporada a um projeto já existente na escola, o Conexões Literárias. Consta de uma página no Facebook, na qual podem ser lidas as crônicas, e edição anual de um livro com textos dos alunos. Em 2017, a turma de Ana Virgínia publicará a obra "Crônica e cotidiano: um olhar sobre o eu e o mundo".
Tempo é desafio para educadores
Estudar requer tempo. Planejar aulas e projetos ainda mais. Segundo o presidente do Sindicato dos Professores do Estado do Ceará (Apeoc), Anizio Melo, os educadores tiveram avanços por meio da garantia em lei que um terço da carga horária escolar será direcionada para planejamento. Mas os profissionais da educação reclamam que planejar as atividades ainda é um desafio pela ausência de uma melhor carga horária.
Em Fortaleza, em 2013, quando a medida foi aplicada, foi necessário realizar um levantamento para saber a quantidade de professores em sala de aula e a carga horária dedicada às atividades extracurriculares. A implantação de um terço da carga horária voltada ao planejamento gerou algumas carências, mas foram supridas com a contratação de professores substitutos.
"Houve muitos ganhos com a lei pois, no tempo que temos fora de sala de aula, podemos planejar ações futuras ligados à ciência, tecnologia entre outras temáticas", afirma o professor Anizio. Segundo ele, tanto na Capital quanto no Interior as escolas cumprem a lei.
Na avaliação do professor Fernando Nunes, da Escola Estadual de Educação Profissional Júlio França, localizada no município de Bela Cruz, apesar da liberação do tempo por lei, ainda é pouco o que é destino ao planejamento. "Ainda não temos a carga horária suficiente. O trabalho de iniciação científica demanda mais horas. O que ocorre, na maioria das vezes, é que estamos sempre no contra turno e nos fins de semana. O que é mais louvável é que, atualmente, todas as escolas respeitam", explica o educador do Interior.
Nunes foi acompanhando de dois alunos para Nova Iorque onde concorreu no prêmio "Genius Olympiad". O projeto, voltado para a convivência com a seca, ganhou medalha de bronze. "Foi um plano de ações voltado para a elaboração de mandalas de baixo custo, plantio de palma forrageira e dicas do manejo de cisterna", explicar o professor. Na Capital a situação é a mesma.
O professor Lindauro Junior, da Escola Municipal Professor Linhares, no bairro Amadeu Furtado, já deixou de realizar um projeto por conta do acréscimo de 55 minutos para criar uma horta escolar.
Saiba mais
No Brasil
Participaram da Olimpíada de Língua Portuguesa cerca 81 mil professores e cinco milhões de alunos, do 5º ano do EF ao 3º ano do EM.
No Ceará
9.108 professores e 3.582 estudantes se inscreveram na edição da Olimpíada em 2016
Ações
A Secretaria da Educação do Estado do Ceará (Seduc) declarou, em nota, que estimula o protagonismo docente. Conforme a Pasta, existe a valorização dos professores por meio da publicação das produções acadêmicas e literárias, estimulo de produção e a promoção de uma rede de colaboração entre os educadores ao tornar públicas as produções.
O órgão ainda pontua que mais de 500 professores, a cada ano, atuam na condição de orientador de projetos científicos escolares e outros seguem concluindo pós-graduações.
"Isto não é meu trabalho, mas minha realização"
Filho de seu José Wilson, agricultor, aboiador, poeta da roça, "um homem que amava versos", o professor José Gilson Lopes Franco, 48 anos, é natural de Caridade, no sertão do Ceará. Mas foi em Fortaleza que reencontrou suas raízes quando escolheu a literatura de cordel para desenvolver e estimular o ensino da escrita na Escola Dom Antonio de Almeida Lustosa.
A proposta deu tão certo que a ideia do graduado em Letras pela Universidade Estadual do Ceará é continuar nos próximos anos. "Sou outro professor, nos tornamos uma pessoa mais sensível, mais amorosa, mais humana. Ensinar na escola pública não é um mar de rosas, mas quando você ama, você não cansa. Isto não é meu trabalho, mas minha realização", afirma Gilson, que participa da Rede Conectando Saberes, "grupo que reúne os professores mais apaixonados pela educação pública no País".
Para desenvolver os projetos, conta com a colaboração da escola e, sobretudo, da esposa, Mara Rúbia, professora de inglês de escola particular, com quem tem o filho Arthur, 9 anos: "Ela me apoia em tudo, mesmo nas ideias que oneram nosso orçamento. Quero fazer outras como o Ceará literário e o Baú do Cordel".
"Estava aprendendo muito mais do que ensinando".
Foto: Elistênio Alves
Quando foi chamada para desenvolver uma sequência didática pelo programa Escrevendo o Futuro, Ana Virgínia Domingos de Oliveira escolheu o caminho mais difícil: a turma do 3º ano D do ensino médio, que não estava correspondendo as suas expectativas. O resultado desse desafio foi surpreendente: "é muito gratificante mostrar que um simples trabalho pode modificar mais do que uma dinâmica de sala de aula, modifica realmente a vida da gente. É como uma aluna nos revelou, a Jannielly, que o texto dela poderia fazê-la uma pessoa mais humana e é isso que a gente percebe que a escrita nos faz pessoas mais humanas". Aos 28 anos, Ana Virgínia é casada com o professor e radialista Emanuel Santos e tem uma filha de seis anos, a Sophia. Divide o seu tempo entre a família e a dedicação ao magistério na Escola Estadual de Educação Profissional Dr. José Alves da Silveira, em Quixeramobim, onde nasceu.
Graduação em Letras pela Universidade Federal do Ceará, cursa especialização em literatura brasileira e língua portuguesa. Na prática da sala de aula, realiza-se na profissão. Quando o aluno mais tímido da turma leu a crônica dele em voz alta, Virgínia confessa que, neste dia, viu que estava aprendendo muito mais do que ensinando.
*A jornalista viajou a São Paulo a convite do Fundação Itaú Social