O impacto do aumento da pobreza no abandono escolar e a proteção social como caminho contra a evasão

A falta de uma proteção social integrada para os estudantes de escolas públicas agravou, no cenário de pandemia, o desinteresse pela escola

Escrito por Redação ,
Criança vestida de palhaço vendendo doces na rua
Legenda: Um dos reflexos do crescimento da pobreza é o desinteresse pelo ensino, seja remoto ou presencial, trocado pelo trabalho ou ócio
Foto: Fabiane de Paula

A pandemia escancarou ainda mais um problema que é anterior a ela e que sempre pareceu combatido timidamente, mas, quando o cenário piora, a pressão por uma solução aumenta. Cresce a pobreza nos lares e com ela o imediatismo da fome. Um dos reflexos é o desinteresse pelo ensino, seja remoto ou presencial, trocado pelo trabalho ou ócio.

Seja qual for a situação, será uma maneira de atender ao que se pede de mais essencial: comida e perspectivas. Lamentar não resolve, e especialistas ouvidos pelo Diário do Nordeste apontam que o caminho da proteção social de crianças e adolescentes não se consegue só com a escola.

Os dados mostram que a desigualdade aumentou. No ranking das vantagens, os mais ricos sobem enquanto os mais pobres descem. Em maio de 2021, 56% dos brasileiros (89 milhões de pessoas) declararam que o rendimento de casa reduziu com a pandemia. Os dados são da pesquisa Impactos Primários e Secundários da Covid-19 em Crianças e Adolescentes, lançada pelo Unicef.

Nos lares com crianças e adolescentes, são 64% dizendo que a renda diminuiu. Entre os com renda até um salário mínimo, a perda em renda chega a 80% dos lares. Na outra ponta, a de cima da pirâmide econômica, apenas 31% das famílias com mais de dez salários mínimos viu a sua renda diminuir na pandemia.

O desempenho estudantil ainda está sob medição, cujos dados trarão o dissabor, sugerem especialistas, de ver o impacto negativo do despreparo para o ensino remoto em meio a uma pandemia.

“A pandemia pegou a faixa etária de até 6 anos de uma maneira que não sabemos se dá pra reverter. Há um risco educacional e cognitivo. Nos adolescentes, há outro tipo de risco: a fase da adolescência é complementar a esse desenvolvimento da infância", explica Alesandra Benevides, doutora em Economia e coordenadora do Laboratório de Estudos da Pobreza (LEP) da Universidade Federal do Ceará (UFC) em Sobral. 

Ela prossegue: "O risco de manter adolescentes fora da escola são os riscos que o Brasil tem: a falta de segurança, o envolvimento com facções. É preocupante, porque é um caminho sem volta. Há um risco de segurança da comunidade, que não oferecemos”, alerta.

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Embora reconheça a importância do trabalho de busca ativa nas escolas públicas do Ceará, trazendo alunos de volta à sala, o tempo de ausência cobrará seu preço.

A professora Jakeline Alencar, doutora em Educação e professora na UFC, defende que não basta a volta às aulas. "O aumento da pobreza traz de volta o fantasma da fome, de crianças que vão à escola em situação mais empobrecida. Quando temos isso de volta, o impacto sobre os índices vai acontecer necessariamente".

Não é questão de colocar todo mundo em sala de aula e vomitar conteúdo em cima das crianças: não é sobre uma força-tarefa de conteúdo, mas retomar políticas de proteção da criança pra que possam retomar o desempenho”
Jakeline Alencar
Doutora em Educação e professora na UFC

Criar um ambiente de proteção escolar

Assim como a fome não se resolve apenas com a merenda, para o aprendizado não basta ir à escola, como coloca o professor Rui Aguiar, chefe do escritório do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) em Fortaleza.

“A escola é um ambiente de proteção e precisa ser apoiada. Mas a resposta não pode ser só da escola, mas integrada entre educação, saúde e assistência social", afirma.

E acrescenta: "Se é identificada uma criança fora da escola por conta do trabalho infantil, rematricular a criança e não criar as condições de renda para a família, ela vai voltar a abandonar a escola. A menina grávida, que também precisa ter uma atenção social na escola, ela precisa ter um bom pré-natal garantido, ter acompanhamento da assistência social, então é um todo integrado. Quanto mais complexa a situação, mais atenção aquela criança ou adolescente deve ter”.

Sala de aula vazia
Legenda: A volta ao ensino presencial, que tem ocorrido de forma gradual, deve ser feita com cuidado, acolhimento e menos ansiedade, conforme a doutora Jakeline Alencar
Foto: Natercia Rocha

Quem precisa muito dessa proteção está por aí, em todas as cidades em meio às vulnerabilidades, feito João (nome fictício), 16, que passou um ano e meio sem frequentar a escola. “Minha mãe só conseguiu me botar à noite, então eu deixei de ir, porque era perigoso demais. Pelo bairro mesmo. Só o que tem é violência. Voltei agora, neste ano, porque consegui vaga de manhã”. Ele está com maior atraso curricular que antes: deveria estar no 2º ano do ensino médio, mas ainda cursa o 7º ano do fundamental porque “repeti de ano várias vezes”.

Alesandra Benevides aponta para o Núcleo de Trabalho, Pesquisa e Práticas Sociais (NTTPS), no Ceará, que tem combatido a evasão escolar. “A infrequência já é um aviso para uma futura evasão: quando começa a faltar muito, o diretor de turma é acionado. Essas políticas que já existem precisam ser reforçadas para minimizar essas consequências que o período de afastamento está trazendo”.

A volta ao ensino presencial, que tem ocorrido de forma gradual, deve ser feita com cuidado, acolhimento e menos ansiedade, conforme a doutora Jakeline Alencar.

“Nessa retomada, é preciso ficar claro que a escola não é lugar de ranking ou conteúdo. Ela desenvolve para a cidadania. E a base disso é a acolhida. Para que a escola possa acolher, ver a educação como um bem. A prioridade é o bem-estar da família e das crianças.

E a saída, aponta Rui Aguiar, coordenador da Unicef no Ceará, está nos gestores municipais. "Essa evasão escolar será combatida com a liderança dos prefeitos. Eles precisam fortalecer a atuação integral desses três setores fundamentais: educação, saúde e assistência social. Essa liderança vai permitir programas de complementação de renda, mudanças orçamentárias, ou seja, um outro planejamento. Os prefeitos precisam liderar esse processo agora em novembro, dezembro e janeiro, para que em fevereiro haja melhores condições de proteção social àqueles que estarão reiniciando um ano letivo".

Ações governamentais

Procurada, a Secretaria da Educação (Seduc) informou em nota que, entre outras ações de amparo aos estudantes, realiza ações de busca ativa e permanência do estudante na escola. A pasta destacou ainda o Pacto pela Aprendizagem, programa "que fortalece o regime de colaboração entre o Estado e os 184 municípios cearenses para recuperar a aprendizagem dos estudantes do Ensino Fundamental (1º o 9º ano) diante do contexto de pandemia da Covid-19. 

O órgão cita ainda que, de acordo com dados do Censo 2020, "a rede estadual do Ceará registrou taxa de abandono de 2,9%. Este percentual se torna representativo para o Estado, considerando que em 2019 a taxa de abandono foi de 3,8%. Isso reforça o trabalho e o esforço para manter o acesso e engajamento dos estudantes. No ano de 2007, 16,4% dos alunos abandonavam os estudos. A redução ao longo do período, portanto, foi de 13,5 pontos percentuais".

Os dados de abandono do Censo Escolar de 2021, divulgados pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), ainda não estão disponíveis.

 

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