Luto coletivo: religiões convertem dor em solidariedade e empatia

Espírita, católico, umbandista, evangélico e muçulmano narram como têm lidado com perdas próprias e alheias causadas pela pandemia; fé na existência de vida além do corpo une e ameniza as dores nas diferentes crenças

Escrito por Theyse Viana , theyse.viana@svm.com.br
cemitério
Legenda: A Covid-19 causou mais de 9 mil mortos no Ceará. A convivência com o luto é amenizada pela fé
Foto: Camila Lima

Janeiro, fevereiro, pandemia, novembro. Para muitos, a sensação é de que a presença arrebatadora da Covid-19, desde março, lhes rouba o tempo, as vontades, os encontros. As vivências. Mas, para outros tantos, a doença tem levado consigo algo ainda mais impossível de repor: a presença de quem se ama. Só no Ceará, mais de 9 mil famílias já amargam essa dor - que, de tão grande, se tornou coletiva, e em muitos casos é amenizada pela fé.

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A mãe de santo Telma Lima, 44, da Tenda Espiritualista Mãe Tutu, lamenta em cada poro a partida de "filhos", de amigos e de conhecidos, durante "esses tempos de caos". "Tive muitas pessoas queridas que desencarnaram, e estou com um amigo internado por Covid. É um misto de sentimentos. Olha quantas dores, quanta gente sofrendo, quantas perdas. Como não mergulhar nisso, como não ter um olhar sensível? Muitas vezes eu não tinha condição de rezar um Pai Nosso, mas sempre segui com vontade de emanar pro Universo o desejo de conforto a mim e aos outros".

Oriunda de uma família católica e praticante da umbanda há 15 anos, Mãe Telma explica que, em meio à diversidade de crenças dentro da religião, está o respeito pelos mortos e a certeza de que "todo espírito é infinito". "Quando a gente deixa esse corpo, vai pra outro plano. A umbanda não acredita que 'morreu, acabou'. O Dia de Finados, para nós, é todos os dias, porque o respeito àqueles que já partiram é muito forte em nós", reforça a mãe de santo.

A ideia é similar à encontrada no espiritismo, como explica Carlos Airton da Silva, trabalhador do Centro Espírita Casa de Miramez. "O que morre é apenas o corpo físico, o orgânico. O que se chama de morte é apenas uma viagem, um 'até breve', pois quando dormimos, estando em condições de equilíbrio emocional, nos encontramos com aqueles que já regressaram ao mundo espiritual".

Sintonia

A fé, então, é um conforto em meio a um cenário de luto coletivo, mas não anula o direito de sentir. "Nós nos damos o direito de sofrer, ter saudade, chorar, mas sabemos que a qualquer hora ou dia, vamos estar com aquele ente querido. Através da mediunidade, eles muitas vezes vêm nos visitar, dizer como é que estão. Por isso, mesmo em meio a esse caos, procuro me sintonizar com energias boas. É um esforço diário", reconhece Mãe Telma.

A entrega à fé como forma de consolar e ser consolado é, segundo o padre Washington Vieira, o fundamento da crença cristã católica. "Diante dessa pandemia que roubou tantas pessoas, inclusive paroquianos nossos que faleceram por conta da Covid, a igreja deve se motivar a esperar em Deus e confiar nEle, seguindo as orientações sanitárias, tendo os cuidados consigo e com os irmãos, mas mantendo um coração firme, esperançoso", pontua.

Solidariedade

Para o vigário paroquial da Paróquia Nossa Senhora dos Prazeres, em Caucaia, o luto se torna coletivo diante da empatia que se tem pela dor alheia, e deve se transformar em solidariedade entre os fiéis. "Para as famílias dos paroquianos que se foram na pandemia, está sendo um tempo muito difícil, porque não puderam velar os seus entes queridos. Foi um tempo de desânimo, luto e tristeza, mas também de praticar a compaixão, sofrer com o outro, acolher, escutar, rezar, estar próximo", frisa o padre Vieira.

O pastor Alan Luz, da Igreja Apostólica Filhos da Luz, complementa que este momento de luto coletivo "pede que as pessoas adotem vários tipos de comportamento, como solidariedade e amor ao próximo". "A forma como nos portamos em relação ao outro, como temos um olhar mais humano, nos aproxima mais de Jesus. Não temos como escolher a forma como cada um vai partir, mas por mais trágica que seja, dentro da nossa fé sabemos que a pessoa completou a missão", aponta.

E, assim como Mãe Telma, o pastor alerta que viver o luto é necessário. "Negá-lo é assinar uma carta de adoecimento. Lidar com a morte faz parte do ciclo da vida, todavia não é fácil. Não foi fácil pra Maria ver Jesus morrer, mesmo sabendo da missão dele. O luto precisa ser sentido. Mas quando temos nossa fé, nossa crença, é um alívio pros dias difíceis", salienta, endossado também por Carlos Airton.

"É também um tempo importante para ressignificarmos a nossa vida e os nossos relacionamentos, compreender verdadeiramente que essa vida no corpo físico é breve e que cada dia é um momento importante para fazermos o melhor no que nos é possível. Que o amar o próximo como a nós mesmo é a lei maior", complementa o espírita, afirmando que isso é ainda mais necessário porque "estamos vivendo, pelo no plano físico, uma pandemia; e pelo plano espiritual, um processo de reordenamento da população espiritual do planeta".

Cuidar

Confiar que tudo acontece sob a permissão do Deus no qual acreditam é também a forma como os muçulmanos, seguidores do islamismo, lidam com as perdas. "A morte de um parente dói, mas a gente tem sempre que ter essa lembrança: nós somos de Alá e a pra ele devemos retornar. Uma coisa é você se revoltar contra o decreto de Alá, outra coisa é sentir dor e tristeza, que são reflexos da misericórdia que Alá colocou no nosso coração", detalha Yahya Simões, 31, que integra o Centro Islâmico do Ceará.

A crença nessa sujeição às vontades de Alá ajuda os seguidores a compreenderem as vivências e perdas impostas pela pandemia - contudo, não os isenta das responsabilidades consigo e com os outros. "O muçulmano, antes de tudo, tem que cuidar dos seus: do próximo, do vizinho, dos compatriotas. Do mesmo jeito que não quero que a doença aconteça comigo e com a minha família, vou adotar os meios pra que não aconteça com o outro. Mas quem vai ficar doente, se recuperar ou partir, no fim de tudo, está na mão de Alá", pondera.

Morada

Assim como na umbanda de Mãe Telma e no espiritismo de Carlos, o islamismo de Yahya "não tem data específica para lembrar de seus mortos", e "todos os dias são para suplicar que os entes queridos tenham uma boa morada no paraíso", como pontua o muçulmano. O trio se une ainda ao cristianismo do padre Washington e do pastor Alan, já que todos pregam, via de regra, a empatia e o amor aos irmãos, para ajudá-los a superar as dores individuais e coletivas. As crenças e culturas, então, são distintas, mas os tempos - e a música - trazem um pedido universal: "ó mestre, fazei que eu procure mais consolar que ser consolado (...) / pois é dando que se recebe / e é morrendo que se vive para a vida eterna."

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