'Eles perguntam pela mãe direto': Ceará tem 5,6 mil crianças e adolescentes órfãos da Covid-19
A estimativa é baseada em estudo da revista científica The Lancet. Rastro de ausências deixado pela pandemia exige ações assistenciais profundas e a longo prazo
Em 24 horas, Alana e Alan ficaram órfãos. Dois de uma vez. Ela aos 9, ele aos 4. A Covid levou a mãe embora tão rápido que o vazio ainda preenche a despedida – eles ainda perguntam por Rosana Pereira, 31, enquanto se juntam aos cerca de 5,6 mil crianças e adolescentes do Ceará que perderam pai, mãe ou os dois na pandemia.
A estimativa é da Câmara Temática de Assistência Social do Consórcio Nordeste, baseada em estudo da revista científica The Lancet, que estimou uma multidão de 113.150 brasileiros e brasileiras cujos pais morreram de Covid entre março de 2020 e abril de 2021. Se considerados avôs e avós tutores, o número sobe para 130.363 órfãos.
“A gente pensava que era uma virose, mas deu uma pneumonia, ela foi pra UPA com dor nas costas e não voltou mais. Chegou lá 10h, 11h já tava intubada. Morreu com 24 horas”, relembra a mãe de Rosana, a dona de casa Maria de Lourdes Pereira, 63, agora responsável pelos netos
Eles perguntam por ela direto, sentem muito, sofrem, choram. Eles estão indo pro colégio, faço todo sacrifício. O que precisar eu faço por eles. Só não dou vida boa porque não tenho emprego.
Após a morte da filha, Lourdes amarga dores múltiplas – a da perda, da saudade, da tristeza pelos netos e das contas que não fecham, já que a idosa não pode mais “lavar roupa pra fora” nem fazer os bicos de faxina que complementavam a renda. Hoje, ela, o marido e os netos vivem dos R$ 375 do Bolsa Família.
“Tem dias que o bichinho de 4 anos pede leite e não tem. As coisas tão muito difíceis, você tá vendo, né?”, diz, lembrando da perversa e profunda crise sanitária, social e econômica que assola a população do Ceará.
O alívio da rotina dela, de Alana e Alan vem a cada duas semanas, quando os dois entram no rodízio da rede municipal de educação e vão às aulas presenciais na escola. “No colégio eles estudam, se distraem com outras crianças, comem…” Três soluções em uma.
“Um dos maiores traumas da vida é a orfandade”
Nem 4 nem 9, mas 1 ano e 4 meses. Esse foi o tempo de convivência que Alice teve com a mãe, Nayara Laurindo, morta aos 33 pelo coronavírus, em agosto deste ano – uma partida que deixou a vida de quem ficou “difícil de todas as maneiras”, como desabafa Maria do Socorro Lopes, 55, mãe da jovem.
“Foi uma mudança muito brusca. Está sendo difícil psicologicamente e de todas as maneiras. A Nayara era minha filha única”, revela Socorro, com a voz embargada pela falta, mas sustentada pela missão de criar a neta. São as avós materna, paterna e o pai que cuidam, agora, da menina, hoje com 1 ano e 7 meses.
Ainda não há um levantamento oficial que dê conta de quantas crianças e adolescentes ficaram órfãos pela Covid: os 5.610 no Ceará são apenas uma aproximação estatística cruzando nascimentos e mortes, e não alcança os profundos efeitos sociais, emocionais, educacionais e econômicos das perdas.
Ângela Pinheiro, professora da Universidade Federal do Ceará (UFC) e integrante do Núcleo Cearense de Estudos e Pesquisas sobre a Criança (Nucepec), aponta que é necessária uma busca ativa desses órfãos por meio das instituições de educação, assistência social e saúde.
Há uma quantidade enorme de crianças que não serão encontradas. Há de haver um auxílio financeiro a longo prazo e atendimento socioemocional urgente para elas: um dos maiores traumas da vida é a orfandade.
A pesquisadora frisa que o mapeamento desses meninos e meninas que tiveram vínculos tão importantes rompidos poderia ser feito também por meio dos CRAS e CREAS, mas que “a defasagem no número de equipamentos torna inviável”.
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Outra preocupação, como cita Ângela, é o risco de “hiper institucionalização” dos pequenos. “O perigo é pegar essas crianças e colocá-las numa instituição, privando-as, em geral, do convívio familiar e comunitário. O sistema de Justiça também precisa ser incluído nesse trabalho”, sentencia.
A professora reforça que é preciso dar visibilidade à ferida que vive já aberta há 19 meses. “Há órfãos desde março de 2020. Como eles estão vivendo? Existe uma omissão imensa. Poucas pessoas têm conhecimento dessa dimensão tão grave da pandemia”, lamenta.
“Desinteressados, apáticos e distantes”
Um dos efeitos da orfandade gerada pela Covid incide sobre a educação. A professora Wilma Melo, que atua numa escola privada de Fortaleza, aponta que o luto na infância afeta diretamente o desempenho escolar e as habilidades sociais de crianças e adolescentes.
Perder pai ou mãe não passa pela cabeça deles. Ficam muito desinteressados, apáticos, distantes.
O retorno às aulas presenciais, segundo ela, tem sido uma forma de amortecer os impactos das partidas. “É algo importante pra criança enfrentar a situação, socializar novamente. O isolamento vinha mais forte após essas perdas”, avalia, reforçando a necessidade de atenção à saúde emocional dos alunos.
Na rede pública, os impactos “são enormes e vêm em ondas”, como pontua Iane Nobre, coordenadora de Gestão Pedagógica do Ensino Médio. A principal preocupação hoje, segundo ela, é com o engajamento dos alunos.
Precisamos de um processo de mobilização constante, pra que o aluno permaneça na escola. Mas, pra aprender, ele precisa estar bem, estar inteiro.
De acordo com a Secretaria Estadual da Educação (Seduc), “cada escola teve autonomia para adaptar as orientações ao seu contexto”, e não há levantamento da quantidade de alunos órfãos. Iane, porém, confirma que “são muitos, do Estado inteiro”.
Diante disso, o foco dos profissionais da educação e da psicologia, sobretudo no momento de retorno das atividades presenciais, têm sido as competências emocionais dos estudantes, abordadas principalmente pelos professores diretores de turma.
“Muitas vezes, as aulas voltadas às questões socioemocionais eram o único momento de escuta para esses alunos, de desabafo. E, dentro disso, sempre aparecia também o luto”, lamenta a gestora.
Busca ativa dos órfãos
A professora Ângela Pinheiro, do Nucepec, afirma que está sendo formado um grupo de trabalho, envolvendo autoridades políticas, profissionais de saúde, acadêmicos e organizações não-governamentais para fomentar a busca ativa pelos órfãos da pandemia.
O mesmo grupo elaborou e enviou um documento à CPI da Covid sobre a urgência de um olhar atento à orfandade, uma vez que o desamparo de crianças e adolescentes deve aprofundar os impactos da pandemia no Ceará.
O sociólogo Adriano Almeida, que atua no Centro de Defesa da Vida Herbert de Souza, no Grande Bom Jardim (GBJ), aponta que milhares de crianças e adolescentes estão sujeitas à instabilidade do cenário desenhado pela Covid – mas que “não há dados atualizados sobre o desenho das famílias de pessoas que morreram”.
Só no GBJ, segundo ele, são cerca de 49 mil crianças de até 11 anos e mais de 29 mil pessoas de até 17 anos de idade. “A pandemia agravou as principais mazelas da nossa sociedade, desde ações, passando pela desigualdade, concentração de renda, desemprego, pelo extermínio da população pobre, preta e periférica”, observa.
Quem mora no local ainda convive com a falta de infraestrutura desde o assentamento das famílias até o baixo orçamento em que “84% dos moradores vivem com até um salário mínimo”, como dimensiona Adriano Almeida.
Esse desenho apontava que o território seria avassalado por um desastre sanitário, tanto que somamos 684 mortes por Covid só no território do BJ
As vítimas da Covid-19 somam-se àquelas que perderam a vida para a violência - a falta de dados sobre o cenário local, então, dificulta a elaboração de ações eficientes para melhorar a situação. “O município faz uma agenda homogênea pela cidade, mas os surtos acontecem localmente: quanto mais precarizado é o bairro em estrutura urbanística, mais será afetado”, conclui Adriano Almeida.
Cenário nacional
Os órfãos da pandemia com até seis anos no Brasil são cerca de 12.211 crianças que perderam um dos pais para a Covid-19 no período entre 16 de março de 2020 a 24 de setembro deste ano. Os dados são da Associação Nacional dos Registradores de Pessoas Naturais (Arpen) com base na análise de CPFs dos pais nos registros de nascimentos e de óbitos feitos nos 7.645 Cartórios de Registro Civil do País.
Os registros avaliados são desde 2015, quando passou-se a emitir o CPF diretamente nas certidões de nascimento das crianças recém-nascidas em todo o território nacional.
Pais faleceram antes do nascimento de seus filhos, enquanto 64 crianças, até a idade de seis anos, perderam pai e mãe vítimas da Covid-19.
O detalhamento das informações levantadas pela Arpen-Brasil mostram que 25,6% das crianças de até seis anos que perderam um dos pais na pandemia não tinham completado um ano. Já 18,2% tinham um ano de idade, 18,2% dois anos de idade, 14,5% três anos, 11,4% 4 anos, 7,8% 5 anos e 2,5% 6 anos. São Paulo, Goiás, Rio de Janeiro, Ceará e Paraná registraram mais óbitos de pais com filhos nesta idade.